Dignidade Energética
A criação de uma "dignidade energética" de acesso universal, à semelhança do que foi feito no passado com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou com a escola pública, deve ser um desígnio nacional.
Todos os anos, em Portugal, quando o inverno se instala e as temperaturas diminuem, os responsáveis nacionais abordam a questão da pobreza energética e discutem no espaço mediático como vão combatê-la. Nesse período, surgem sempre várias ideias e planos para erradicar este problema nacional. Se a isso adicionarmos o contexto de um inverno que antecede eleições legislativas, a propaganda de soluções parece não ter limites.
No entanto, a pobreza energética não pode ser resolvida dessa forma. Antes de tudo, é crucial analisarmos com profundidade a situação portuguesa, comparando-a com outros países desenvolvidos, para só então considerarmos as medidas que podem ser aplicadas com o objetivo de eliminar ou minimizar a pobreza energética que, em 2024, não deveria ser sequer uma preocupação.
De acordo com diversos índices internacionais, Portugal apresenta uma das piores performances no que diz respeito à pobreza energética. Por exemplo, segundo os insuspeitos dados da Eurostat, Portugal ocupa o quinto lugar entre os países europeus onde as pessoas têm menos condições económicas para manter as suas casas devidamente aquecidas. Quando analisamos a pobreza energética como um todo e a comparamos com outros países europeus, a situação é ainda mais preocupante. Em Portugal, quase dois milhões de pessoas (19%) vivem em condições de pobreza energética, das quais 700.000 estão em situação de pobreza energética extrema, isto é, vivem em condições que põem a sua saúde e qualidade de vida em sério risco. Na União Europeia, apenas Bulgária (34%), Lituânia (28%), Grécia (23%) e Chipre (22%) apresentam dados piores que Portugal.
Ao longo dos últimos anos, vários programas foram lançados com o intuito de promover a reabilitação e sustentabilidade em edifícios e moradias, melhorar a eficiência energética e aproximar as camadas sociais mais desfavorecidas das tecnologias de produção renovável. No entanto, esses esforços frequentemente esbarraram em burocracias na seleção dos projetos elegíveis, tem existido uma perspetiva equivocada de que as pessoas e instituições em situação de pobreza energética devem financiar antecipadamente os projetos para depois serem ressarcidas financeiramente, além de muitos outros erros na escolha do que deve ou não deve ser prioridade neste importante desafio. Por tudo isto, a redução dessas desigualdades energéticas não tem ocorrido na última década à velocidade desejada por todos.
A pobreza energética não pode ser combatida apenas com políticas e fundos públicos (“a fundo perdido”), sejam nacionais ou europeus. Deve envolver o conhecimento técnico e o investimento (com a respetiva remuneração) de entidades privadas e de cariz social.
A abordagem não deve ser apenas punitiva, devemos reconhecer e premiar aqueles que, através de suas ações, melhoram a eficiência energética nos seus edifícios. A redução de impostos locais ou nacionais pode ser uma dessas formas de reconhecimento e premiação. Na verdade, o estado ou mesmo o poder local, não tem de ser sempre punitivo quando se fala de energia e ambiente, neste caso pode e deve premiar bons comportamentos individuais e coletivos.
Numa sociedade cada vez mais eletrificada e descarbonizada é também fundamental considerar medidas a curto prazo, reduzindo a despesa com energia (elétrica e calor) para as famílias mais desfavorecidas. Para isso será necessário aumentar o número de consumidores beneficiários da tarifa social de energia. Uma simples e eficaz medida poderia ser considerada para este efeito. Permitir que a potência contratada de eletricidade até 10,35 kW e o consumo anual de gás natural até 800 m3 sejam considerados elegíveis para o acesso à tarifa social. Atualmente, apenas são elegíveis potências contratadas de eletricidade até 6,9 kW e consumo anual de gás natural até 500 m3.
Agora nas questões fiscais e também como medida de curto prazo, devia ampliar-se o consumo de energia elétrica sujeita a IVA reduzido de 6%, passando de 100 kWh para 200 kWh por mês. Isto permitiria que muitos mais consumidores vissem aplicado IVA reduzido nos seus consumos, libertando algum do peso financeiro que os consumidores domésticos sentem no preço da eletricidade.
É, contudo, simultaneamente necessário garantir um investimento contínuo sustentável (independente de programas da UE) por parte das instituições públicas e privadas para a melhoria das habitações e serviços em termos de arrefecimento e aquecimento. E, neste caso, é fundamental a criação de um fundo nacional misto (público e privado) para financiar, sem excessiva burocracia ou análises demasiado detalhadas, a construção de unidades de autoconsumo de energia renovável em regime de autoconsumo coletivo (ACC) e comunidades de energia renovável (CER) em bairros mais desfavorecidos, em escolas e em outras entidades públicas que atualmente não apresentam condições de equilíbrio climático adequadas ao seu funcionamento.
Finalmente, é crucial apostarmos seriamente na literacia energética dos portugueses. Existem várias decisões individuais relacionadas com o consumo de eletricidade em habitações e empresas que, apesar de parecerem pequenas mudanças de comportamento, têm um impacto significativo na sustentabilidade financeira e energética de todos. Por exemplo, é importante ensinar quando se deve ou não ligar determinados eletrodomésticos, qual a classe de vidros mais eficaz para o conforto climático e que tipo de iluminação deve ser escolhida de acordo com as nossas necessidades. Muitas vezes, o benefício a longo prazo compensa um investimento inicial mais elevado. Uma população mais informada sobre estes temas específicos relacionados com a energia, está mais próxima de garantir condições de dignidade energética mais elevadas.
Se países como Alemanha, Suécia, Dinamarca e Países Baixos conseguiram praticamente eliminar a pobreza energética em pouco tempo, Portugal deve ter a ambição de fazer o mesmo. Embora a nossa situação económica possa não ser tão robusta como estes países, apresentamos uma vantagem competitiva em termos de características climáticas que não pode ser esquecida.
A criação e desenvolvimento de uma “dignidade energética” transversal e de acesso universal, à semelhança do que foi feito no passado com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ou com a escola pública, deve ser um desígnio nacional, livre de ideologias ou disputas partidárias, sem marketing político de angariação de votos. Deve ser um esforço conjunto de toda a sociedade, assegurando que todos os portugueses possam enfrentar o inverno com o conforto que a primavera traz consigo.
(Este espaço de opinião é pessoal, não vinculando as entidades com as quais o autor tem relação profissional ou associativa)
Ricardo Nunes é Economista, Chief Strategy Officer do OMIP, membro do Observatório de Energia da Sedes e membro do Conselho de Energia da CIP.
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