As regras ininteligíveis da Comissão Europeia
Ao longo dos últimos anos, os comunicados da CE têm-se tornado progressivamente mais difusos e a tendência tem sido a de incluírem interpretações para todos os gostos.
Douglass North, autor do clássico “Institutions, Institutional Change and Economic Performance”, prémio Nobel da Economia em 1993, e um dos principais pensadores da escola do novo institucionalismo económico, tornou-se célebre pela importância que atribuía ao conceito de “instituições” enquanto regras. Na sua opinião, havia claramente que distinguir entre instituições (regras), organizações (intervenientes) e aquilo a que ele chamava de preços relativos (incentivos).
Segundo a sua tese, era deste tripé fundacional que dependia em larga medida o sucesso económico de um país a médio e a longo prazo. Para North, instituições fortes, que ajudassem a atenuar os atritos do dia-a-dia, de regras que reduzissem a incerteza, tornariam a economia mais forte.
A tese, que ainda hoje perdura como um dos mais relevantes contributos da ciência económica, deveria ser de leitura “obrigatória” para todos os titulares de cargos públicos. Talvez assim se evitassem os atropelos institucionais que frequentemente vislumbramos, designadamente em Portugal, e talvez assim se pudesse trabalhar no sentido de regras mais simples. De regras que toda a gente conseguisse compreender.
O problema das regras não é um exclusivo de Portugal. Como bem sabemos, a governação institucional da União Europeia, e da zona euro em particular, também constitui matéria complexa. Há responsabilidades que estão concentradas na Comissão Europeia (CE) e esta, por sua vez, tem de acomodar uma composição representativa (e igualmente complexa) de todos os países que a compõem. Ao mesmo tempo, há responsabilidades que permanecem nos parlamentos nacionais, mas que dependem cada vez mais da CE. E, por fim, há responsabilidades que não se entende bem a quem cabem, mas que na dúvida tendem a ser atribuídas à CE.
Ou seja, a Comissão Europeia é cada vez mais o centro executivo das políticas nacionais e transnacionais na Europa, umas definidas nos parlamentos nacionais, outras no Parlamento Europeu, e outras não se sabe bem onde, que os países vão adoptando. Por tudo isto, caberia à CE definir regras claras de implementação dessas políticas, que toda a gente compreendesse, porque não é apenas de regras que falamos; falamos também das políticas que vão sendo moldadas (ou toldadas!) pela sua própria implementação. A isto se chama, na literatura da administração pública, de administration-as-politics. Infelizmente, sucede que a CE, em vez de simplificar, tende a complicar.
Ao longo dos últimos anos, os comunicados da CE têm-se tornado progressivamente mais difusos e a tendência tem sido a de incluírem interpretações para todos os gostos. Na verdade, aqueles que eu tenho tido oportunidade de acompanhar, os que se referem à situação macroeconómica e orçamental portuguesa, são paradigmáticos do que se não deve fazer.
Os comunicados são imprecisos, levantam dúvidas e não raras vezes carecem até de redacção e de semântica adequadas. Sem surpresa, as conferências de imprensa que acompanham os comunicados oficiais vão reflectindo isto mesmo: ora temos o polícia bom (habitualmente, monsieur Moscovici) ora temos também o polícia mau (Dombrovskis ou Dijsselbloem).
Às vezes, a confusão que resulta sobre a aplicação das regras é tal que dá mesmo vontade de perguntar: será escrito e feito de propósito? Na realidade, é bem provável que assim seja, porque numa CE cada vez mais política – ou, nas palavras do comissário Moedas, “assumidamente política” – a complexidade das regras, fomentando a sua inaplicabilidade, torna-se um belíssimo expediente a fim de ultrapassar as dificuldades de coordenação política que de um modo geral se sentem na Europa.
Admitindo que o problema está nas regras, a bonança que hoje se sente na Europa seria um bom mote para a revisão de alguns critérios do Tratado Orçamental, que tornassem mais clara a sua aplicação, e que não obrigassem a CE às piruetas dos últimos anos, que apenas a descredibilizam. Por exemplo, será que faz sentido manter como critério de ajustamento orçamental o saldo estrutural? Parece-me que não. Primeiro, porque ninguém o entende. Segundo, porque ninguém o entende, ninguém se põe de acordo quanto a ele. Terceiro, porque ninguém se põe de acordo, ninguém o aplica.
Evidentemente, estou a exagerar um bocadinho. Há uns que são mais prevaricadores (ou mais “ratos”) que outros. Mas não deixa de ser notável que, percorrendo os planos de estabilidade dos últimos anos (os deste governo e os do anterior), os números do saldo estrutural mudam sistematicamente. Uma razão está no denominador que o assiste: o PIB potencial, ele próprio alvo de frequente revisão e sujeito à subjectividade de cada freguês. A outra razão está na aplicação de diferentes metodologias que assistem o seu cálculo e que, no caso do actual Governo, até já mereceram a censura do Conselho de Finanças Públicas por não acompanharem a metodologia comum estabelecida no Código de Conduta para a implementação do Pacto de Estabilidade e Crescimento (ler o relatório nº10/2016, p.20).
Descartados o PIB potencial e o saldo estrutural, também deveria ser eliminado o ajustamento orçamental associado ao hiato do produto (outra abstracção a evitar). Manter-se-ia apenas o saldo nominal de um défice até 3% do PIB e ao mesmo tempo, para não baixar a guarda em matéria orçamental, elevar-se-ia a critério central o equilíbrio do saldo corrente do Estado (isto é, o saldo orçamental do Estado, incluindo o pagamento de juros, mas antes de considerada a despesa líquida de capital – ou seja, o investimento).
A chamada “cláusula de investimento” da CE ficaria assim automaticamente confinada, podendo até ser reforçada em tempos de recessão – assumindo o equilíbrio corrente dos países beneficiários e uma definição convencional de recessão –, de modo a eliminar a arbitrariedade que a mesma, na sua conceptualização actual, encerra. Uma arbitrariedade que deposita excessiva discricionariedade nas mãos de um órgão executivo sobre o qual não existe o devido escrutínio democrático e que me parece uma má ideia. Quanto à regra da dívida pública, tirando o nome que lhe deram (“ajustamento estrutural linear mínimo”!), parece-me bem, porque a dívida pública, representando a manifestação plena de todos os excessos passados, tem mesmo de ser contida.
É, pois, altura para pensar e corrigir o que está mal. Mas sem ilusões nem demagogias, porque os tempos, ao contrário do que vai parecendo, não estão para aventuras.
Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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