Algarve, uma seca de ideias

  • Rui Veríssimo Baptista
  • 26 Janeiro 2024

Cortar é mais fácil do que planear, mas planear é mais inteligente.

Sim, vamos mesmo ter de mudar os nossos comportamentos. Mas que comportamentos? Lavar menos o carro? Lavar menos as ruas? Aproveitar mais as águas residuais? Ir ao mar buscar água? Melhorar a eficiência na distribuição da rede publica e de rega? Melhorar isto e aquilo e o outro? Usar melhor e desperdiçar menos? Sem dúvida que sim, mas ainda que tenhamos de reduzir o tempo no duche, devemos, no entanto, aumentar a lavagem de algumas cabeças com responsabilidade na gestão da água. Em matéria de água há hoje verdades absolutas e inquestionáveis que merecem, no mínimo, serem afogadas.

Ao contrário do que é percecionado pela população em geral, Portugal, na sua região continental, é um país rico em recursos hídricos. Dados do Plano Nacional da Água indicam que Portugal tem uma precipitação média anual de 915mm, maior do que em alguns países mais a norte na Europa. Por exemplo, a Alemanha tem uma precipitação média de 880mm/ano. A Espanha, país com o qual muitas vezes nos comparamos em questões de água, tem um valor significativamente mais baixo, cerca de 650mm/ano. O problema de Portugal tem a ver com a sazonalidade, característica do clima mediterrânico, e com a distribuição espacial.

Durante um ano médio em Portugal Continental apenas cerca de 11% das escorrências são utilizadas nos vários setores da atividade económica, sendo a agricultura o maior utilizador, com cerca de 70% daquele valor. Para se ter uma referência dimensional, de mais fácil perceção, o consumo anual numa campanha de rega em Alqueva representa cerca de 1.3% do total das escorrências médias que atravessam o território.

Mais décima, menos décima, é irrelevante o preciosismo, percebemos por aqui que o discurso da falta de água em Portugal deve no mínimo ser questionado, mesmo com os cenários catastróficos decorrentes das alterações climáticas. Perante estes números a pergunta subsiste, temos mesmo falta de água em Portugal? Nalguns nalgumas regiões sim, mas em Portugal não.

Em Portugal desaprendemos de planear, e Algarve é o paradigma desta enorme incompetência. Pergunto-me muitas vezes se não serão os fundos comunitários em grande parte responsáveis por esta realidade. Para todos os problemas atiram-se os milhões. O sistema político é refém da taxa de execução. A realização de obras pontuais, independentes de uma visão de conjunto, e compatíveis com os timings e dinâmicas dos programas de financiamento, possibilitam a salvaguarda da taxa de execução, e o ciclo político, dependente do ciclo financeiro, agradece.

Obviamente que um dia a água seria um gravíssimo problema no Algarve. Fala-se num corte de 25% na agricultura, mais do que noutros setores, que anda pelos 15%. Não conheço as medidas de contingência em cima da mesa, mas todas elas serão baseadas nos cortes, vai-se falar em não lavar ruas, não regar os campos de golfe, não usar aqui para pôr ali, lavar menos os carros, menos tempo no duche, etc. Mais coisa menos coisa será este o padrão. O que caracteriza todas estas medidas? Para além de colocarem setores uns contra os outros, só servem para hoje, não resolvem nada, apesar de serem a única hipótese e de, por isso, terem de ser tomadas.

Por vezes fico a pensar que a única forma de Portugal poder ter uma solução integrada para a questão da água é mesmo continuar a não chover, porque até aquelas medidas vão deixar de ter nexo, porque pura e simplesmente já não dá para cortar mais. Pode ser que se altere a abordagem. Se chover o assunto morre e daqui a uns tempos, poucos infelizmente, o problema voltará porque nada foi feito, mas, entretanto, o investimento baixou, muitos agricultores faliram, e os fogos apareceram ainda com mais força.

Alqueva é um sucesso inspirador. É sem dúvida o projeto produtivo mais bem-sucedido em tempo de democracia. Mudou e estruturou uma região e mostrou que a água tem um papel central no desenvolvimento sustentável. Mostrou igualmente que o desenvolvimento é possível em contexto de alterações climáticas. Não existindo provavelmente faria com que Silves estivesse em Beja. Naturalmente que expandir este modelo é necessário transportar a água onde ela está disponível para as zonas deficitárias e armazená-la. Sendo este cenário tão possível, como se explica que a tutela da água não manifeste qualquer interesse em fazer um estudo de dimensão nacional? Com tantos milhões da bazuca não seria possível juntar uns trocos? Isto é muito revelador…

É imperioso aumentar a oferta nas zonas em risco porque é possível. A dessalinização faz parte da solução, mas não é a solução. Da mesma forma a utilização das ApR é uma solução muito interessante para algumas zonas, mas também não são a solução, em especial nos territórios do interior, sem pessoas. Melhorar a eficiência dos sistemas de adução, públicos e de rega, é imperioso, mas também não é suficiente de per si para ser a solução. Muitas outras possibilidades, genericamente resumidas em novas atitudes, fazem parte da solução, mas não são igualmente a solução. Transvasar água tem um potencial enorme devido ao muito recurso disponível e que em muitos casos corre para o mar sem a melhor utilização. Todas juntas sim, são a solução. E sim, é possível criar uma “auto estrada da água em Portugal” que produza riqueza e preserve os ecossistemas e a biodiversidade. Ponha-se a engenharia e a academia a estudar modelos de reforço da oferta sustentáveis a pensar no futuro. Analisem-se custos de investimentos e avaliem-se todos os impactes ambientais, inclusivamente os que decorrem de nada se fazer. E, muito importante, não esquecer que caro é o que não se paga e que cortar é mais fácil do que planear, mas planear é mais inteligente.

  • Rui Veríssimo Baptista
  • Membro do Observatório da agricultura da SEDES– Associação para o Desenvolvimento Económico e Social

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Algarve, uma seca de ideias

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião