Regular e supervisionar a banca, uma nota preocupante
O Governo está a preparar uma reforma na supervisão, que pode tirar a política macroprudencial do Banco de Portugal. O economista Nuno Garoupa discorre sobre o tema e elenca os vícios do atual modelo.
Em todas as economias modernas, regulamos e supervisionamos a banca. São muitos os fundamentos económicos da intervenção de autoridades de regulação e de supervisão, entre outras, na atividade de intermediação financeira em geral e na bancária em particular. Podemos mesmo dizer que, em teoria, esses fundamentos são consensuais entre os especialistas de diferentes tendências ideológicas. Falamos das imperfeições ou falhas de mercado. O argumento primordial é que o mercado bancário (mercado de intermediação financeira, mais genericamente, mas usarei o mercado bancário neste ensaio para facilitar a exposição) sofre de um conjunto de propriedades que prejudicam um equilíbrio eficiente. Citam-se, usualmente, externalidades (com grande destaque para o risco sistémico), informação assimétrica, natureza de bem público (por exemplo, na provisão de informação) e não convexidades (que podem induzir concentração e cartelização).
Frente a este conjunto de falhas de mercado, existe um potencial conjunto de atritos ou falhas de regulação e supervisão. Estas podem ser fundamentalmente de dois tipos. Temos, pois, falhas de eficácia quando a autoridade de regulação e supervisão não tem os meios, a informação ou o capital humano para corrigir as falhas de mercado. E podemos ter falhas por captura da autoridade de regulação e supervisão pelos regulados ou pelo Governo. Neste caso, as falhas de mercado agravam-se, porque a autoridade de regulação e supervisão não pretende melhorias de eficiência ou bem-estar, mas antes promover os interesses de um grupo particular (daí a chamada problemática da escolha pública). Em termos teóricos, o debate entre economistas divide aqueles que entendem que as falhas de mercado são mais significativas e, consequentemente, exigem mais regulação e supervisão e aqueles que, pelo contrário, defendem que as falhas de regulação são muito mais preocupantes e, coerentemente, exigem precisamente menos regulação e supervisão.
Não surpreende que a resposta ao equilíbrio entre falhas de mercado e falhas de regulação possa depender de sensibilidades ideológicas (isto é, preferências individuais agregadas por algum mecanismo – democrático ou não – que gera preferências sociais), assim como do contexto institucional. Consequentemente, encontramos exemplos diferentes de desenhos regulatórios. Seguindo trabalho recente do economista Mário Coutinho dos Santos, podemos usar a seguinte taxonomia:
- O modelo tradicional, no qual o banco central conduz a política monetária e também regula e supervisiona os bancos.
- Um modelo em que as funções reguladoras e de supervisão são segregadas do banco central e atribuídas a uma autoridade independente.
- Um último modelo em que existe uma partilha das responsabilidades de regulação e supervisão bancária entre o banco central e uma (ou mais) autoridade(s) independente(s) de regulação e supervisão.
Nenhum dos três modelos tem apenas custos ou apenas benefícios, mas cada um responde ao trade-off identificado entre falhas de mercado e falhas de regulação. Por exemplo, a partilha da regulação e supervisão entre duas autoridades (banco central e outra) pode diminuir a probabilidade de falha de regulação por captura (porque as duas autoridades controlam-se mutuamente), mas tem custos administrativos adicionais óbvios e pode dificultar a correção de falhas de mercado (por exemplo, porque exige a coordenação de duas agências especializadas).
Outro exemplo, na área da cartelização e poder de mercado, a alocação de responsabilidades em temas de concorrência ao banco central, em detrimento da autoridade da concorrência, pode melhorar a regulação e supervisão do mercado bancário (pela integração de funções), mas prejudicar os objetivos concorrenciais (quer pela sua subordinação a outros objetivos regulatórios do banco central, quer por este ignorar os efeitos que a menor concorrência bancária possa ter noutros setores da economia fora da sua jurisdição).
Em resumo, não há arquiteturas institucionais perfeitas e a sua evolução depende dos problemas encontrados, das perceções das autoridades públicas e das mudanças tecnológicas. No caso de uma pequena economia integrada numa união económica, como é o caso português, acrescem considerações e pressões do espaço económico a que pertence.
Precisamente o caso português pede alguma reflexão
Pode estar em curso uma alteração no modelo institucional e organizacional da regulação e da supervisão financeira (digo “pode”, porque já tivemos uma experiência idêntica em 2009, que não produziu qualquer mudança relevante). Importa, pois, perceber que falhas de mercado e falhas de regulação (eficácia ou captura) pretendemos corrigir. Precisamos deste exercício de identificação para depois discutir a arquitetura atual e a mudança institucional proposta.
Comecemos, então, pelos factos, da forma mais objetiva possível e deixando as interpretações, tanto quanto possível, para depois. Qualquer reflexão sobre o estado da regulação e supervisão bancária deve iniciar-se com um balanço dos últimos anos.
Primeiro, genericamente, até meados de 2014, a banca portuguesa era considerada de forma positiva, apreciada como uma referência internacional, um exemplo de modernização e desenvolvimento, um polo de inovação e um orgulho nacional (por mera curiosidade e de forma completamente aleatória, eis alguns títulos sugestivos: “Bancos portugueses estão capazes de resistir a eventual crise financeira”, RTP, 15 de julho de 2010; “Situação saudável da banca portuguesa aplaudida por analistas em França”, RTP, 23 de julho de 2010; “Bancos portugueses apresentam níveis de reputação acima da média mundial (…) apresentando o desempenho financeiro como a dimensão mais forte”, Jornal de Notícias, 13 de fevereiro de 2011; “Os bancos portugueses têm estruturas de capitais fortes”, Notícias Sapo, 6 de fevereiro de 2012; “Bancos portugueses apresentam balanços mais limpos e indicadores mais fortes”, Público, 5 de maio de 2014).
Os elogios e os encómios não eram apenas na comunicação social (que, note-se, até hoje ainda não explicou como persistiu genericamente durante tanto tempo na sua análise laudatória). Constam de muitos documentos oficiais já posteriores à crise de 2008. E, inclusivamente, são partilhados ou divulgados por instituições como a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, já em vigência da troika.
Em 2011, no discurso oficial, Portugal não era nem a Grécia, nem a Espanha, nem a Irlanda porque precisamente tinha uma banca forte, saudável, sólida e bem gerida. Reconheciam-se certos problemas de financiamento externo a exigir alguma atenção, incluindo uma linha especial de 12 mil milhões de euros para ajuda no contexto da intervenção da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional, mas tudo absolutamente natural e decorrente da falta de liquidez no contexto internacional. Falava-se apenas de encorajar as margens de segurança da banca nacional e de reforçar a supervisão do Banco de Portugal (veja-se Diário de Notícias, 4 de maio de 2011).
Aliás, no mesmo tom otimista, dizia-se, em junho de 2014, que os bancos já tinham devolvido uma grande parte do dinheiro da troika, mais de dois mil milhões (Jornal de Negócios, 25 de junho de 2014).
Em 2011, no discurso oficial, Portugal não era nem a Grécia, nem a Espanha, nem a Irlanda porque precisamente tinha uma banca forte, saudável, sólida e bem gerida.
Podemos dizer, em síntese, que, até ao colapso do BES e à famosa resolução de 3 de agosto de 2014, imperava um discurso, quer das autoridades nacionais e internacionais, quer da banca e da comunicação social especializada, muito favorável e, podemos adiantar agora, bastante irrealista.
Apesar das tendências negativas dos lucros reportados e do crédito malparado assinalado depois de 2009 por alguns especialistas e académicos, o panorama oficial foi sempre positivo e pouco crítico, quer da regulação e supervisão, quer da gestão dos grandes bancos. Rumores sobre as debilidades do Banco Espírito Santo, por exemplo, foram sistematicamente negados pelos reguladores e supervisores, autoridades políticas e comentadores especializados.
O Presidente da República e o primeiro-ministro insistiram sempre na solidez do dito banco (“Cavaco diz que portugueses podem confiar no BES (…) Banco de Portugal tem atuado muito bem”, TVI, 21 de julho de 2014; “Passos Coelho diz que depositantes podem confiar no BES”, Diário de Notícias, 11 de julho de 2014; “Passos Coelho deu carta de conforto a Carlos Costa”, Observador, 28 de novembro de 2014).
As notícias ocasionais sobre os problemas de financiamento do BANIF ou da CGD, assim como sobre a situação do Montepio Geral, foram sempre episódios isolados e sem qualquer continuidade no conjunto de preocupações económicas e financeiras do país até 2014.
Segundo, neste momento e com base na informação publicada nos meios de comunicação social, os contribuintes terão já pagado quase 15 mil milhões de euros para salvar a banca portuguesa do colapso. Os números que circulam referem-se apenas a custos diretos. Evidentemente não estimam os custos de oportunidade e, ainda menos, as distorções na afetação de recursos decorrentes das medidas de resolução e das sucessivas intervenções.
Apesar da magnitude do número — 15 mil milhões –, ele estará significativamente subestimado. Haveria ainda que acrescentar os famosos swaps, onde os tais 440 milhões mais juros a pagar ao Banco Santander foram agora transformados num empréstimo de 2,3 mil milhões a pagar em 15 anos com um juro “favorável”. Só no caso do BES/Novo Banco, existem cerca de 1500 processos em tribunal e o Banco de Portugal terá pagado, até ao momento, 10 milhões de euros em assessorias técnicas (incluindo quase 0,5 milhões a Sérgio Monteiro para coadjuvar a venda do Novo Banco e cerca de 4 milhões a uma conhecida sociedade de advogados de Lisboa).
Recentemente, o Fundo Monetário Internacional reconheceu alguns progressos, mas indicou que a eficiência da banca portuguesa continua muito longe da média europeia e criticou a estrutura de governança prevalecente no setor (Dinheiro Vivo, 19 de abril de 2017).
Terceiro, sendo anunciado em vários casos concretos que, fundamentalmente, temos um assunto de polícia, em maio de 2017, com referência a gestão danosa ou qualquer outro crime na banca, a contabilidade aponta para o seguinte número de condenações transitadas em julgado: BPN-0; BPP-0; BES-0; BANIF-0; CGD-0; Montepio-0; swaps-0.
Bem sei que é uma contabilidade provisória, mas também podemos adivinhar que não vamos ter números definitivos antes de 2025 ou por aí. E, não antevendo qualquer reforma profunda do Ministério Público (tema que não se encontra na agenda política do momento), podemos especular que a contabilidade final das condenações transitadas em julgado não ficará muito longe dos números atuais.
Quarto, em termos de impacto nos reguladores, o governador do Banco de Portugal foi substituído em junho de 2010 (tendo o anterior governador sido nomeado vice-presidente do Banco Central Europeu, num mandato que durará oito anos e onde é responsável pela supervisão bancária). O governador nomeado em 2010 foi reconduzindo em julho de 2015 (apesar do Governo de Pedro Passos Coelho defender a não recondução dos reguladores como um princípio basilar da independência regulatória no texto da Lei 67/2013, lei-quadro das entidades reguladoras).
Na Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, o presidente desta autoridade teve de esperar onze meses para ser substituído e, mais recentemente, foi nomeado pelo Governo de António Costa para responsável pela reforma da supervisão financeira (janeiro de 2017).
Apesar de alguma polémica sobre a dita nomeação, penso que faz todo o sentido como exercício de autoavaliação, uma vez que o próprio esteve à frente da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários todo o período do colapso bancário (tendo substituído o anterior presidente quando este decidiu assumir funções governamentais em julho de 2005 como Ministro das Finanças).
Quanto aos restantes responsáveis, temos apenas uma tradicional dança de cadeiras, sem qualquer relação direta com a evolução da crise bancária. Note-se que o vice-governador responsável pela supervisão prudencial manteve as mesmas funções praticamente todo o período relevante (2006-2014). Um outro vice-governador foi para a CGD em junho de 2011, após sete anos no Banco de Portugal. Tendo sido dispensado pelo Governo de António Costa no verão de 2016 (com alguma controvérsia), regressou ao Banco de Portugal, onde agora acumula várias funções, incluindo a de Presidente da Valora (a “fábrica do dinheiro” do Banco de Portugal). Um administrador do BANIF (nomeado pelo poder político) foi para vice-governador em setembro de 2014, mas acabou por demitir-se em colisão com o governador em março de 2016. Um administrador de um banco liquidatário (intervencionado pelo Estado na sequência da resolução de agosto de 2014) foi também nomeado para administrador do Banco de Portugal em junho de 2016. Um supervisor saiu para uma auditora (logo após a resolução do Banco Espírito Santo), mas regressou ao regulador ao sabor das conveniências pessoais. Um outro supervisor, vindo de um banco privado (BCP), foi diretamente do regulador e supervisor para a administração da CGD em fevereiro de 2017. O novo homem forte da CGD já tinha aceitado um convite para vice-governador, segundo a comunicação social (Observador e Expresso, 16 de novembro de 2016).
Em conclusão, regulador e regulado, supervisor e supervisionado, tudo parece ser a mesma coisa e não oferecer grandes preocupações às autoridades (o Banco Central Europeu acabou por impor um período de nojo mais prologando a um dos supervisores nomeado para a nova administração da CGD).
Alguém mais cínico poderia ser tentado a dizer que o fenómeno da porta giratória, felizmente, não existe na realidade portuguesa. Alguns jornais da especialidade mencionaram o assunto (por exemplo, Jornal de Negócios, 5 de fevereiro de 2017, e ECO Economia Online, 6 de fevereiro de 2017), mas sem grande repercussão no espaço público.
Em conclusão, regulador e regulado, supervisor e supervisionado, tudo parece ser a mesma coisa e não oferecer grandes preocupações às autoridades (o Banco Central Europeu acabou por impor um período de nojo mais prologando a um dos supervisores nomeado para a nova administração da CGD). Alguém mais cínico poderia ser tentado a dizer que o fenómeno da porta giratória, felizmente, não existe na realidade portuguesa.
Finalmente, não havendo grande discussão pública sobre a natureza exata das falhas do regulador e supervisor, os partidos políticos limitaram-se a umas Comissões Parlamentares de Inquérito sem grandes consequências práticas e, mais recentemente, a umas propostas legislativas muito técnicas, de importância algo duvidosa. Na verdade, os diplomas aprovados a 7 de abril de 2017 são pequenos ajustes para remendar aquilo que tem sido identificado como prioritário.
De forma mais particular, os diplomas em causa pretendem reforçar o poder da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários na supervisão dos auditores, forçar mais colaboração entre supervisores do setor bancário, estabelecer novas regras para os concursos para diretores do Banco de Portugal, estabelecer maior controle de concessão de créditos a acionistas dos bancos, desenvolver novas regras de comercialização de produtos financeiros, entre outros aspetos. Nenhum dos diplomas aprovado pretende responder às alegadas falhas de regulação.
Na verdade, o que aconteceu entre 2005 e 2016 em termos de regulação e supervisão bancária não foi até hoje objeto de qualquer reflexão profunda. Não há qualquer livro branco sobre o assunto. Não há qualquer documento oficial que objetivamente explique e discuta a natureza exata das falhas de regulação. Estamos a falar de falhas de eficácia? Ou estamos a falar de falhas por captura? Alternativamente, agravaram-se mesmo as falhas de mercado?
No seu discurso de 9 de março, o ministro das Finanças reconhece falhas de regulação em abstrato, mas não aponta nenhuma em concreto. Quer uma regulação eficaz e anuncia que o Governo irá propor um novo modelo de autoridades supervisoras, mas em nenhum momento oferece uma explicação para a ineficácia do modelo anterior.
O discurso do ministro das Finanças simboliza o ponto fundamental do atual debate em curso – vamos avançar com reformas (nota-se, claro, que o Governo de Pedro Passos Coelho não apresentou nenhuma proposta nesse sentido), mas sem fazer nenhum diagnóstico concreto e sem explicar o que aconteceu. E percebe-se porque estamos assim: a opção por avançar com reformas institucionais sem um diagnóstico claro e completo é a única forma de tentar mudar alguma coisa sem responsabilizar ninguém.
Havendo falhas de regulação em abstrato, abre-se o debate sobre modelos alternativos, mas, não havendo falhas de regulação em concreto, foge-se de identificar as debilidades dos reguladores atuais. Se não foram eficazes, porque falharam a sua missão? Se foram capturados, quem os capturou? E se não há falhas de regulação em concreto, para que necessitamos de uma nova arquitetura? Eis as questões óbvias das quais o atual debate pretende fugir.
Ora, esta forma de enquadrar o tema levanta um problema metodológico. Vamos avançar com modelos alternativos sem saber a que falhas de regulação pretendemos exatamente responder. E assim chegamos à proposta atual do metarregulador.
Neste momento, não conhecemos ainda o conteúdo do relatório encomendado a uma equipa liderada pelo ex-presidente da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários. Mas os contornos genéricos são já conhecidos e comunicados. Por um lado, retiraram-se ao Banco de Portugal poderes de autoridade macroprudencial (situação já rejeitada pelo Banco de Portugal, segundo notícias publicadas no dia 23 de março de 2017) e poderes de entidade de resolução (ou seja, se um banco deve ou não ser resolvido e depois o que fazer com as entidades criadas como resultado da intervenção).
Por outro lado, cria-se o novo Conselho de Supervisão e Estabilidade Financeira, onde estarão representados todos os reguladores e supervisores e o Governo, sendo presidido por um “independente”, nas palavras do ministro das Finanças. Tal afirmação dificulta a compreensão do que se pretende, pois, nos termos da lei-quadro dos reguladores, todos são supostamente independentes (mais especificamente, independentes do Governo e independentes do sector regulado).
Vamos avançar com modelos alternativos sem saber a que falhas de regulação pretendemos exatamente responder.
Apesar de faltarem os detalhes — e the devil is always in the details –, a proposta geral oferece-nos alguns comentários gerais. Aliás, não parece que os detalhes, a serem conhecidos mais tarde, possam alterar muito significativamente a linha geral da proposta ou a sua filosofia.
Desde logo, percebe-se que se pretendem retirar poderes ao Banco de Portugal, mas sem mexer diretamente nele. Se houve falhas de regulação e supervisão no Banco de Portugal, deveríamos começar por enumerá-las taxativamente e apurar responsabilidades. Depois, discutir as reformas internas do Banco de Portugal e a solução para as possíveis lacunas legislativas, a fim de solucionar essas falhas de regulação (sejam de eficácia, sejam por captura). E, só no limite, devem ser retirados poderes ao Banco de Portugal, eventualmente uma vez clarificado que as ditas falhas não podem ser resolvidas de outra forma.
Portanto, a presente proposta é, no mínimo, estranha e metodologicamente espantosa. Não são apuradas responsabilidades do Banco de Portugal, não são diagnosticadas específica e detalhadamente as falhas de regulação, não se mexe na estrutura interna do Banco de Portugal, mas retiram-se poderes.
A criação de um metarregulador também levanta imensas questões de desenho institucional. Não se percebe porque o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (criado em 2000) e o Comité Nacional de Estabilidade Financeira (criado em julho de 2007) falharam até ao momento. Se o seu mero reforço é insuficiente e se o seu papel nos últimos dez anos não foi o previsto pelos seus criadores, então a sua existência levanta as maiores dúvidas.
Aliás, a multiplicidade de instituições não parece assustar o Governo. Antes de avançar para uma nova instituição, o normal seria uma avaliação retrospetiva sobre o papel destas duas instituições e, insistindo de novo, o cabal apuramento de responsabilidades. De forma muito interessante, os inspiradores destes conselhos nacionais justificaram a sua criação precisamente com os mesmos argumentos que presidem agora ao nascimento do metarregulador.
Partindo do pressuposto de que as falhas de regulação destas duas instituições são falhas de eficácia, a questão pertinente é onde erraram as previsões do legislador anterior? Se erraram, então porque acertam agora? Porque só agora se fazem as tais melhorias na coordenação e eficácia destas instituições?
Finalmente, defende-se a inclusão do Governo no metarregulador. Trata-se óbvia e simplesmente de governamentalizar autoridades independentes. Não há outra forma de explicar e entender a proposta. Por muito que o Governo insista na semântica da independência. Uma autoridade reguladora independente nunca poderá estar sujeita ou tutelada, parcial ou completamente, por uma outra autoridade onde está presente o Governo (o que estimula de forma clara e assumida uma falha por captura). Aliás, a ênfase na personalidade “independente” para presidir à nova autoridade faz temer o pior. Qual a diferença entre essa personalidade “independente” e todos os “independentes” que estão nos conselhos reguladores das várias autoridades?
Mais recentemente, o ministro das Finanças insistiu no modelo italiano com poderes reforçados como justificação para a proposta . Acontece que o modelo italiano não produziu resultados consistentemente positivos. E o “reforço de poderes” traduz-se fundamentalmente numa governamentalização da regulação e supervisão do mercado bancário.
Sejamos claros. A inclusão do Governo no metarregulador poderia fazer sentido noutro contexto. Por exemplo, se a intenção for introduzir uma mudança de paradigma, então a proposta teria coerência e seria até corajosa. Tratando-se, pois, de abandonar o modelo de autoridades reguladoras independentes e de regressar ao modelo de controlo governamental vigente nos anos 80, a proposta seria de saudar. Só que o Governo nega essa mudança, provavelmente porque ela viola o Direito da União Europeia e criaria problemas sérios com o Banco Central Europeu. Assim sendo, fica a ideia de que se pretende uma mudança de paradigma, sem discussão explícita e transparente sobre o assunto.
O atual modelo de autoridades reguladoras foi importado da Europa (originalmente, vindo dos Estados Unidos por mão dos economistas). Todos sabemos que ele responde à necessidade de equilibrar um conjunto de objetivos contraditórios.
- Dotar o Estado do capital humano, especialização e conhecimento técnico adequados a uma regulação e supervisão eficaz dos mercados.
- Limitar a governamentalização e a partidarização das intervenções do Estado na economia. Em particular, evitar que a regulação e supervisão dos mercados esteja sujeita aos calendários eleitorais.
- Assegurar a prestação de contas que simultaneamente dissuada a captura, quer pelos interesses políticos, quer pelos interesses das indústrias reguladas.
O atual modelo de autoridades reguladoras foi importado da Europa (originalmente, vindo dos Estados Unidos por mão dos economistas). Todos sabemos que ele responde à necessidade de equilibrar um conjunto de objetivos contraditórios.
O modelo de direções-gerais responde a um conjunto de preocupações completamente distintas. Por um lado, a subordinação da regulação e supervisão de mercados aos interesses do Estado, tal como são interpretados pelo Governo democraticamente eleito. Nesse sentido, pretende-se expressamente a governamentalização da regulação e supervisão económica e financeira. Por outro lado, não existe qualquer preocupação com a prestação de contas através de qualquer outro mecanismo fora do Governo.
A subordinação do Banco de Portugal e restantes reguladores e supervisores a uma entidade governamentalizada, ainda que presidida por uma personalidade “independente”, apenas se compreende no modelo de direções-gerais, pois viola os princípios mais elementares do modelo de agências ou autoridades reguladoras. Em síntese, a proposta carece de coerência no atual modelo regulatório português, onde autoridades independentes não podem estar sujeitas de forma alguma a instituições onde o Governo interfere com a sua presença nos conselhos reguladores. Mesmo que isso seja em nome de uma qualquer responsabilidade última pela estabilidade financeira.
Paralelamente, não é rigoroso argumentar que esta mudança institucional recupera uma proposta de 2009. O projeto de 2009 introduzia um modelo de twin peaks, em detrimento do atual modelo tripartido (Banco de Portugal, Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, Instituto de Seguros de Portugal): o Banco de Portugal perdia certas competências de supervisão comportamental para a nova instituição resultante da fusão da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários com o Instituto de Seguros de Portugal. Era um modelo decalcado da Holanda. Não havia nenhum metarregulador naquele projeto. Aliás, num comentário à importação do modelo de twin peaks, o jurista Calvão da Silva defendia a concentração da coordenação numa única instituição, o Banco de Portugal, não um metarregulador governamentalizado.
Curiosamente, o modelo de twin peaks já tinha sido considerado pelo Governo em 2000 (Público, 28 de setembro de 2009). Nove anos depois voltou a ser discutido. O documento colocado à discussão pública sofria das limitações já identificadas na atual proposta. Não fazendo qualquer diagnóstico das insuficiências concretas do modelo tripartido, avançava com as vantagens do novo modelo.
Apesar da reação genericamente positiva dos vários atores, o projeto foi abandonado em 2010. O único impacto relevante foi a mudança de designação do Instituto de Seguros de Portugal para Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, com o decreto-lei 1/2015, aprovado em resultado da nova lei-quadro das entidades reguladoras.
Até ao momento, nenhuma fonte oficial argumentou que, estando vigente o modelo de twin peaks no período 2010-2017, a história bancária teria sido significativamente diferente, quer na regulação, quer na supervisão.
Sendo um interessante exercício de análise contrafactual que ajudaria à identificação das falhas regulatórias, talvez produzisse a frustrante conclusão de que não teria tido qualquer impacto importante ou relevante.
Parece-me, pois, que a atual reflexão sobre a regulação e supervisão bancária em Portugal enferma de três vícios importantes.
- Não há um diagnóstico claro e consensual sobre as falhas de regulação no período 2005-2016. São falhas de eficácia? São falhas por captura? Sendo assim, procuram-se soluções para problemas não identificados de forma transparente. Evita-se qualquer apuramento de responsabilidades. E sugerem-se reformas com base em meras perceções dos responsáveis políticos, não há qualquer avaliação retrospetiva, inclusivamente ignora-se o debate de 2009 (que, aparentemente, tem origem em 2000, há quase duas décadas).
- Aposta-se em alterar a regulação e supervisão bancária sem reformar a estrutura interna do Banco de Portugal. Parece a receita ideal para criar novas entropias institucionais a jusante, sem resolver as limitações regulatórias a montante.
- A opção injustificada por um metarregulador nos moldes anunciados (ainda que de forma genérica até ao momento) governamentaliza a regulação e supervisão bancária num modelo contrário ao atualmente vigente, quer em Portugal, quer na Europa. Porém, o Governo foge dessa discussão, socorrendo-se de álibis semânticos (tal como personalidades “independentes”) ou mantendo uma panóplia de instituições consequentemente irrelevantes (Conselho Nacional de Supervisores Financeiros e Comité Nacional de Estabilidade Financeira).
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