Bagão Félix e João Leão defendem que a dívida deve continuar a baixar, temem o impacto da instabilidade política nas contas públicas e gostavam de ver um entendimento orçamental entre PS e PSD.
O ECO juntou dois ex-ministros das Finanças para um debate sobre as principais prioridades orçamentais e fiscais do país, o ECOfin, em parceria com a Yunit Consulting. António Bagão Félix e João Leão consideram que é necessário manter a redução da dívida pública, ainda que possa ser feita a um ritmo menor, antecipando o aumento da despesa provocado pelo envelhecimento da população. O antigo governante do CDS considera as previsões de crescimento da Aliança Democrática um “ato de fé” e o do PS pede uma reforma da lei de enquadramento orçamental. Ambos defendem um entendimento entre os dois maiores partidos, para não ficarem sequestrados por posições extremistas.
Portugal fechou 2023 com uma dívida pública de 98,7%, afastando-se do grupo dos países mais endividados da Zona Euro. Ainda assim, para João Leão e António Bagão Félix o caminho não pode ser interrompido. “Temos um ligeiro abrandamento da economia, mas não afetou ainda o mercado de trabalho em Portugal e na Europa. Estamos praticamente em pleno emprego. Nestas condições únicas, nem o próprio Keynes desafiava para medidas muito expansionistas, ainda por cima quando temos também uma situação de controlo de inflação pela frente”, defende João Leão.
“Estes anos, enquanto temos as contas equilibradas, podem ser decisivos para reduzir a dívida pública para o novo marco de 90% do PIB que foi criado com as novas regras da governação económica europeia. Ficaríamos com uma dívida igual ou ligeiramente abaixo da média da União Europeia”, acrescenta o sucessor de Mário Centeno na pasta das Finanças.
“É importante chamar a atenção que é talvez a última oportunidade que temos para reduzir a dívida. Temos desafios muito grandes a médio prazo, nomeadamente o envelhecimento da população”, sublinha João Leão. “Eu admito que daqui a cinco ou dez anos, quando os desafios demográficos começarem a ser muito mais pesados, seja cada vez mais difícil o país ter esta capacidade de manter equilíbrios orçamentais como tem agora”, acrescenta. Considera, por isso, que “faria sentido o país caminhar para uma situação onde não tem de ter excedentes, mas pode ter uma situação próxima do equilíbrio orçamental“.
É importante chamar a atenção que é talvez a última oportunidade que temos para reduzir a dívida. Temos desafios muito grandes a médio prazo, nomeadamente o envelhecimento da população.
António Bagão Félix concorda que é necessário manter o esforço de redução do endividamento, ainda que defenda que o Estado deva partilhar as receitas inesperadas que a inflação lhe deu. “A dívida pública, apesar de tudo, está elevada e eu acho que é um ato de justiça geracional continuar com o objetivo de reduzir a dívida pública. A dívida pública é paga pelas próximas gerações. E nesse sentido, tudo o que seja desonerar algo desse peso deve ser encarado geracionalmente, socialmente e politicamente como positivo”, salienta.
No entanto, esse caminho deve ser feito “não com a mesma velocidade” e “não deve haver excedentes”. O antigo ministro das Finanças refere que “o Estado foi o grande beneficiário”, da subida dos preços, do lado das receitas, “em particular dos impostos indiretos, mas também dos diretos, em particular do IRS, por causa do quase pleno emprego em que estamos”. Perante este benefício “mecânico”, defende mesmo que “o Estado deveria ser o principal pagador do windfall tax [imposto sobre lucros imprevistos]”.
O Estado deveria ser o principal pagador do ‘windfall tax’.
“Como é que o Estado pode pagar o seu windfall tax? Como o Estado não pode criar um imposto sobre si mesmo, uma solução equilibrada era fazer uma redistribuição desses ganhos, tal como tem sido feito”, aponta Bagão Félix. “Com alguma redução fiscal, até pelos efeitos que tem na economia, e também pela via não fiscal, porque uma parte importante dos portugueses não paga IRS e qualquer redistribuição tem que ser pela via da subvenção“, defende. Sempre “mantendo contas equilibradas, de maneira a que a dívida pública possa continuar a ter este movimento descendente”.
João Leão observa que a inflação tem “um impacto imediato na melhoria das contas públicas” pelo lado da receita, mas no ano seguinte a despesa aumenta com a subida dos salários e a atualização das pensões. “O bolo da despesa com pensões, que é a parte mais importante do Estado, vai aumentar 6% com a atualização. Mais a dinâmica de tendência de envelhecimento da população, vai aumentar cerca de 8%, o que é muito acima do que vai aumentar a receita do Estado”, prevê.
Lei de enquadramento orçamental fragiliza o país
Sem maioria absoluta à vista e com uma fragmentação do voto à direita, a estabilidade política após as eleições de 10 de março não é garantida. Algo que preocupa ambos os ex-titulares da pasta das Finanças.
“Preocupa-me a instabilidade política, a dois níveis. Por um lado, ao nível da execução do próprio PRR. Há ali muitas metas que é preciso cumprir e aprovar, para que o país consiga executar o PRR e receber o respetivo financiamento europeu”, afirma João Leão. Por outro lado, há outra dimensão que me preocupa, que é termos uma lei de enquadramento financeiro que fragiliza muito o país numa situação de governo minoritário”.
“O Parlamento pode reunir-se num dia e decidir coisas, num leilão completo entre os diferentes partidos, e ninguém assume a responsabilidade porque ninguém está lá com um horizonte de governação significativo. Está tudo a pensar nas eventuais próximas eleições, dada a instabilidade que existe no país”, teme o economista, que a partir de março integrará o Tribunal de Contas Europeu.
A nossa lei de enquadramento orçamental não está preparada para situações como a que temos agora de alta pulverização do sistema político.
“Por exemplo, o Governo minoritário em França tem uma grande capacidade de assegurar a estabilidade nas medidas com impacto financeiro. Em Portugal não temos isso. Precisávamos de uma alteração profunda da Lei de Enquadramento Orçamental”, defende João Leão.
“A única coisa que a nossa Constituição tem é a parte da lei travão. Mas a lei travão é facilmente contornável porque só nos proíbe de autorizar despesa ou medidas com impacto no próprio ano, mas eu posso sempre fazer começar o impacto a 1 de janeiro do ano seguinte”, lembra o ex-ministro das Finanças e vice-reitor do ISCTE, acrescentando que “a nossa lei de enquadramento orçamental não está preparada para situações como a que temos agora de alta pulverização do sistema político“.
Entendimento orçamental entre PS e PSD
“Essa é uma das grandes preocupações que podem resultar deste ato eleitoral”, concorda António Bagão Félix. “É muito provável que estejamos confrontados com um governo de minoria absoluta. E isso leva a uma barganha orçamental que é, a certa altura, incontrolável”, afirma. “Como me dizia com uma certa piada o meu querido amigo professor Miguel Beleza, que já cá não está e foi também ministro das Finanças: “António eu nunca vou à casa de banho no Conselho de Ministros, senão quando regresso a despesa pública já aumentou“.
“O leilão da despesa, além de ser inevitável num ambiente eleitoral e não é só cá, traz consigo um aspeto que me preocupa bastante mais que é o de ninguém falar de uma reforma estrutural da despesa pública“, acrescenta António Bagão Félix, que deveria passar por um acordo entre o PS e o PSD. Gostaria também de vê-los a aprovar orçamentos uns dos outros, mas reconhece que “o ambiente, que se tornou maniqueísta, não é propício”.
João Leão também considera que “não se deve excluir a possibilidade” de os dois partidos viabilizarem orçamentos do Estado. “Devia haver uma avaliação por parte dos principais protagonistas para não haver o risco de ficarem sequestrados por posições mais extremistas“, diz.
Cenário macroeconómico da AD é um “ato de fé”
Os cenários macroeconómicos dos dois principais partidos já são conhecidos. A Aliança Democrática (AD) estima que as medidas do seu programa económico permitam acelerar o crescimento do PIB a taxas que começam nos 2,5% em 2025 e vão até 3,4% em 2028. O PS ainda não apresentou o programa, mas aponta como referência as previsões que constam no último Programa de Estabilidade entregue a Bruxelas em abril, onde se estima uma evolução do PIB de 2% em 2025, de 1,9% em 2026 e de 1,8% em 2027.
António Bagão Félix sublinha que “os dois principais partidos portugueses crescentemente se têm aproximado de uma apresentação cuidada do ponto de vista técnico ou macroeconómico” dos seus programas. Considera a opção do PS em se basear no Programa de Estabilidade uma atitude “razoável e conservadora”. Um conservadorismo “que, aliás, caracteriza muito as previsões dos últimos anos, que são por vezes até excessivamente conservadoras, para terem um ganho político” quando anunciam o resultado final.
Um [cenário macroeconómico] é demasiado conservador e o outro demasiado programático e de ato de vontade. Se tivesse de escolher, talvez ficasse entre os dois.
O cenário macroeconómico da AD é descrito pelo antigo ministro das Finanças e da Segurança Social como “um ato de fé”. “Um é demasiado conservador e o outro demasiado programático e de ato de vontade. Se tivesse de escolher, talvez ficasse entre os dois”, afirma. António Bagão Félix nota que “desde o ano 2000, ou seja, neste século, em termos de média anual, o PIB cresceu 0,8%, e que entre 2014 e 2023 cresceu a uma média de 1,24%. São apenas fatores históricos para compreender porque, no meu ponto de vista, se deve ser cauteloso no excesso de voluntarismo e otimismo”.
João Leão também considera positivo que a Aliança Democrática já tenha apresentado o seu cenário macroeconómico e as medidas, e elogia “que se defina que passado quatro anos a dívida deve ficar abaixo dos 90%“. No entanto, também duvida das metas de evolução do PIB previstas.
Mesmo olhando para as previsões que são feitas pelo FMI até 2028, elas não incluem nenhum país da Europa que cresça a taxas média acima de 3%, incluindo os países de Leste. Ou seja, é difícil justificar internacionalmente e perante os credores.
“Do ponto de vista económico, e o que alimenta depois a dinâmica de crescimento das receitas prevista, é um cenário que me parece otimista. Em termos internacionais, quando se vier a discutir um Programa de Estabilidade, é difícil um cenário de taxas de crescimento muito acima dos 2%, como se apresenta para os últimos anos“.
O futuro membro português do Tribunal de Contas também recorre ao passado para assinalar que “Portugal cresceu 2,1% desde 2015, em média (1,4% na Zona Euro)”. “Mesmo olhando para as previsões que são feitas pelo FMI até 2028, elas não incluem nenhum país da Europa que cresça a taxas médias acima de 3%, incluindo os países de Leste. Ou seja, é difícil justificar internacionalmente e perante os credores“, aponta.
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Ex-ministros Leão e Bagão defendem entendimento orçamental entre PS e PSD após eleições
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