Vera Eiró, presidente da ERSAR, não afasta hipótese de os cortes até 50% no consumo de água no Algarve serem agravados, caso os resultados fiquem aquém.
Os algarvios terão que resistir às pressões da seca e da escassez de água, agravadas, este ano, com as medidas de contingência e de caráter extraordinário, decretadas pelo Governo para limitar os consumos deste recurso até ao final do ano. Os cortes vão até aos 50% e abrangem o setor urbano, turismo e agrícola, mas para a presidente da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), não é de excluir o risco destas restrições serem agravadas, caso os resultados fiquem aquém dos objetivos.
É ainda no Algarve que vai nascer a primeira dessalinizadora de Portugal continental. A obra, cujo concurso já foi lançado, deve ficar concluída em 2026, tal como prevê o Plano de Recuperação e Resiliência, que financia parte do investimento. Mas, para Vera Eiró “a dessalinizadora é uma apólice de seguro“, sendo necessário que se mantenha a aposta na eficiência e a reutilização das águas tratadas.
O tema da seca voltou a estar no centro do debate, desta vez muito mais cedo do que é suposto. Em 2023, deu uma entrevista ao Capital Verde, na qual disse que a situação crítica vivida em 2022 poderia voltar a repetir-se. Estamos perante essa situação?
Do ponto de vista do impacto que esta seca tem na utilização da água, no caso da região do Algarve… é mais impactante do que aquilo que aconteceu em 2022. Isto é uma longa história que se tem vindo a repetir e a agudizar e, portanto, aquilo que sabemos é que há fenómenos climatéricos que são agudos em algumas zonas do nosso território e que implicam a seca meteorológica e seca hidrológica. [No Algarve] a situação agudizou-se este ano. Isto é algo que já conhecemos. Claro que agora o cenário é mais crítico do que aquilo que se estava a antecipar, mas a verdade é que a escassez de água nalgumas zonas do território nacional é o novo normal.
Esta escassez de água é derivada somente das alterações climáticas ou existe alguma responsabilidade a ser atribuída ao tipo de gestão das entidades responsáveis por este recurso?
Só se sente escassez quando há usos que não podem ser satisfeitos. Portanto, a escassez de água é, por um lado, a circunstância de haver pouca água, mas que está acompanhada da circunstância de haver pouca água para os usos que queremos fazer dela. E isso eu acho que é um ponto muito importante para compreendermos também a situação que está a ser vivida no Algarve. Há escassez, mas essa escassez também está associada ao uso que é feito de água no Algarve: urbano, turístico e agrícola. Se isto é um problema de falta de água ou é um problema de gestão? Eu acho que a resposta é dupla. Há falta de água para os usos que queremos fazer dela e, portanto, temos que gerir a água que temos. Quando há escassez, temos que fazer escolhas.
Há falta de água para os usos que queremos fazer dela e, portanto, temos que gerir a água que temos. Quando há escassez, temos que fazer escolhas
O Governo anunciou um pacote com 46 medidas que têm como objetivo aumentar a disponibilidade de água até o final do ano. Faz sentido todos os anos estarmos a rever estas medidas, ao invés de apostarmos em soluções mais a longo prazo?
Quando estamos numa situação de contingência, que esperamos que não se repita, temos que ter planos de contingência e arranjar formas de, em curto espaço de tempo, conseguir gerir a água que temos. Ganhar tempo até que chova novamente. Em sede de medidas de contingência, não há outra alternativa se não aquela que aconteceu agora no Algarve. As medidas a médio/longo prazo estão a ser implementadas, mas a curtíssimo prazo é preciso diminuir a procura para garantir que a água dura mais tempo. As reservas que temos, sejam elas superficiais, sejam elas subterrâneas, têm que se prolongar no tempo para satisfazer as necessidades prioritárias das pessoas que moram no Algarve, das pessoas que nos visitam e das pessoas que desenvolvem a sua atividade económica também assente na utilização de água.
Há um efeito que se espera que resulte destas medidas, e que tem a ver com a valorização da água. Tem a ver com a necessidade de todos começarmos a olhar para a água como um bem e darmos valor àquilo que temos. Não a desperdiçarmos e utilizá-la só para o que é essencial. Esta situação acaba por, espero eu, ter esse benefício de colocarmos a água no topo das nossas prioridades, porque realmente sem água ficamos numa situação absolutamente catastrófica. Não é só no Algarve. É uma mensagem para todo o país. Neste momento, a região do Algarve é a que está a sofrer mais e, considerando aquilo que são as perspetivas, vai continuar a sofrer com as alterações climáticas. Mas outras zonas [do país] podem vir a estar na mesma situação. Portugal inteiro tem que olhar para a forma como gerimos a nossa água e valorizá-la de forma a garantir a sustentabilidade da gestão deste bem.
A revisão de tarifas de abastecimento de água em baixa é uma das 46 medidas do Governo para o Algarve. Segundo a Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL), os aumentos deverão ser entre 15 a 50%, tendo por base uma proposta da ERSAR. Estes aumentos são suficientes tendo em conta os preços que têm vindo a ser praticados nos anos anteriores?
Estes aumentos estão pensados para uma lógica de contingência onde é preciso induzir comportamentos. Uma das formas para induzir comportamentos, e tornar claro que é preciso gastar menos, é através do preço. Quando se aumenta o preço há uma tendência natural, e humana, para se gastar menos.
Propusemos o mesmo tipo de aumento para todos os municípios, independentemente da solução base que tem de tarifários. Em média, os tarifários do Algarve estão 20% abaixo da média nacional. Os aumentos são proporcionais ao tarifário que têm e são em percentual.
A ERSAR também recomendou aos municípios para não alterarem o valor do tarifário dos consumos menores. Os primeiros cinco metros cúbicos de consumo — que são aquilo que dizemos que é a água do banho e tudo e do duche — não vão sofrer aumentos. A partir dos 15 metros cúbicos, temos aumentos substanciais de 30% e de 50%. É uma medida temporária. Os municípios em geral concordaram.
Não foram ainda implementados volumes máximos que podem ser consumidos por cada agregado. E digo “ainda” porque não sabemos se estas medidas de poupança vão ter o resultado que se pretende. Se não tiverem o resultado pretendido a nível de poupança, se não houver chuva substancial, pode vir a ser necessário aplicar medidas mais agravadas.
Os agricultores têm pedido, sucessivamente, outras soluções, nomeadamente os transvases de água a partir do Douro ou do Alqueva, ou a construção de mais barragens. Estas soluções são economicamente e ambientalmente viáveis?
Do ponto de vista técnico, é preciso cuidado na forma como são pensados os transvases. Quando pensamos na gestão da água, a medida que utilizamos é da bacia hidrográfica. Um transvase implica deixarmos esta gestão por bacia e fazermos uma gestão diferente. A Agência Portuguesa do Ambiente estudará seguramente estas matérias e verificará qual é que é a melhor solução.
O que vemos é que há novas origens de água, nomeadamente, na reutilização de água. Isto é, a água residual tratada que é reutilizada para outros fins que não o consumo humano. E há um potencial imenso em Portugal continental para isso. Temos 700 mil milhões de metros cúbicos de água residual tratada que podemos canalizar e utilizar noutras atividades. É preciso começar a olhar para a água pensando em todas as atividades. A água residual no ciclo urbano da água pode servir à agricultura para retirar a pressão do setor noutras origens da água, que devem ser utilizadas para abastecimento humano.
A futura dessalinizadora de Albufeira está previsto ficar concluída em 2026, mas estima-se que esta infraestrutura produza anualmente o equivalente ao que se perde atualmente na rede pública. Faz sentido esta aposta tendo em conta os níveis atuais de perdas de água?
A origem de água em Portugal que ainda está por explorar é a eficiência. Se nos focarmos em combater perdas, vai haver ganhos muito relevantes. No Algarve, as perdas reais de água, em 2023, foram cerca de 15 hectómetros cúbicos de água, 21% de perdas reais.
É significativo.
É muito significativo se pensarmos que a dessalinizadora vai produzir 16 hectómetros cúbicos. É significativo se pensarmos que as medidas de combate à seca almejam alcançar uma poupança no consumo urbano de 11 hectómetros cúbicos. As perdas, em bom rigor, são uma oportunidade, porque se atacarmos as perdas, temos aqui ganhos muito relevantes. Temos que ir por aí, claramente. A dessalinização é uma apólice de seguro.
Mas não é só no consumo urbano que há perdas. As perdas do consumo urbano são medidas pela ERSAR, mas há outros setores nos quais há muitas perdas, e não há uma entidade que tenha dados tão robustos relativamente ao consumo urbano como a ERSAR tem. Antes da dessalinizadora, que implica custos de CAPEX [investimento] e de operação [OPEX] relevantes, era realmente importante ponderarmos o tema das perdas. Até porque a água dessalinizada vai entrar numa rede que tem perdas.
É um ciclo.
É um ciclo. Está a haver muito investimento nessa matéria, e os municípios no Algarve têm estado ocupados e preocupados com a questão das perdas. Mas é preciso fazer muito mais, e essa questão é clara para todos.
Neste momento, a região do Algarve é a que está a sofrer mais e, considerando aquilo que são as perspetivas, vai continuar a sofrer com as alterações climáticas. Mas outras zonas [do país] podem vir a estar na mesma situação.
Mas a situação de seca não é de agora. Em Espanha, e até na Madeira, a solução já existe há mais tempo. Não fazia sentido ter sido adotada mais cedo?
Sempre que há discussão sobre os temas da água, há acusações mútuas: porque não foi feito? E depois procura-se responsabilizar quem não o fez. E, com toda a franqueza, acho que no ponto em que estamos, devíamos abandonar esse discurso porque acho que temos que fazer, e fazer agora. Estarmos sistematicamente a olhar para trás e para o que não foi feito, às vezes dá-nos a desculpa para não fazer agora, e não podemos ter essa desculpa em 2024.
Já se sabe que impactos a futura dessalinizadora terá na fatura do consumidor final?
Houve um aumento de capacidade da dessalinizadora e, portanto, com esse aumento de capacidade, há um montante relevante de investimento que não está incluído no Plano e Recuperação e Resiliência [45 milhões de euros]. Cerca de 39 milhões de euros.
A dessalinizadora é uma solução de sistema que vai beneficiar todos os utilizadores de água da região do Algarve, porque vai retirar pressão das águas superficiais e também das águas subterrâneas. Havendo este benefício comum, tem que haver de alguma forma uma repartição no que diz respeito tanto ao custo do investimento como ao custo da operação, que é elevado. É muito mais caro produzir a água do mar do que captar a água numa albufeira e tratá-la. Daqui a uns anos estes custos diminuem porque a tecnologia está sempre a avançar, e isto é um custo intimamente relacionado com o consumo energético. O que temos dito é que a dessalinizadora é necessária, mas dentro de um conjunto de remédios: a eficiência e a reutilização.
Mas é preciso repartir os custos por todos os utilizadores de água. Tanto o CAPEX como o OPEX não devem ser levados na íntegra à tarifa doméstica, e isso significa que temos mesmo que medir todos os usos de água. Não é só o consumo urbano. Fora o consumo urbano, os usos são estimados e são volumes demasiado elevados para estarem a ser medidos por estimativa.
Então, neste momento, ainda não se sabem valores concretos sobre a forma como este investimento se vai repercutir sobre a fatura dos consumidores.
A informação veiculada para a emissão destes pareceres [da ERSAR] ainda não continha o mix de financiamento. Sabemos que vai haver [aumentos], e essa tem sido a mensagem da Águas de Portugal e da Águas do Algarve, e que também já veicularam junto do Governo.
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“Pode vir a ser necessário” agravar medidas no Algarve
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