Quem tudo quer, tudo perde: a assunção de dívidas fiscais por terceiros

  • Manuel Sequeira e Rita Folhadela
  • 5 Março 2024

É urgente a revisão desta estratégia, tornando o processo de assunção de dívidas por terceiros mais acessível e menos dispendioso, para se promover uma recuperação eficiente das dívidas ao Estado.

A legislação tributária procura assegurar a eficácia na recolha de impostos, fundamental para o financiamento das despesas do Estado. No entanto, a posição do legislador sobre a assunção de dívidas fiscais por terceiros denota uma prudência excessiva que desincentiva o pagamento de dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT). Sobretudo em períodos de crise e/ou recuperação económica – e Portugal está quase sempre num ou noutro – precisamos de mais flexibilidade e pragmatismo do Estado.

A lei permite aos contribuintes assumir obrigações fiscais de outros contribuintes, incluindo quando existe um plano prestacional aprovado num plano de recuperação (em processo de insolvência ou em processo especial de revitalização), desde que haja autorização do devedor original e comprovativo de interesse legítimo. Ora, o n.º 9 do artigo 196.º do CPPT, embora aparentemente vantajoso, limita essa possibilidade quando exige que o terceiro interessado forneça novas garantias (uma fiança bancária, caução, seguro-caução, hipoteca ou qualquer meio suscetível de assegurar os créditos da AT).

Esta exigência de novas garantias, que visar salvaguardar os créditos da AT, desmotiva quaisquer potenciais interessados, devido ao injustificado duplo benefício que atribui à AT: que não só passa a ter um património adicional (do terceiro interessado) a responder pela dívida, como ainda exige um privilégio (garantia) para assegurar o seu pagamento face aos demais credores do terceiro que se predispõe a assumir a dívida. A isto acresce ainda o encargo suplementar que a prestação de qualquer garantia acarreta, pelo pagamento ao Estado de imposto do selo (incluindo garantias perante a AT).

Repare-se que, mesmo quando devedor original não forneceu garantias, qualquer interessado que queira assumir dívidas fiscais tem essa obrigação, ficando em situação menos favorável do que o devedor inicial. Tal não só cria uma desigualdade entre os contribuintes devedores, mas também desencoraja a assunção de dívidas por terceiros, em prejuízo do pagamento mais eficaz das dívidas fiscais.

Mas há mais. Uma vez proposta a assunção de dívida com acordo do devedor originário (e prestadas garantias), a assunção da dívida – ainda assim – não é um processo automático. A AT tem a discricionariedade na aceitação. Além disso, mesmo após ter sido aceite pela AT, a assunção da dívida nunca implica a exoneração do devedor original. Ou seja, o devedor inicial permanece vinculado à obrigação fiscal até que a dívida seja integralmente liquidada (nem mesmo quando o novo devedor tenha prestado uma garantia idónea e o devedor original esteja insolvente e não tenha prestado garantias). E não, não é possível pedir a exoneração (n.º 10 do artigo 196.º do CPPT).

Esta abordagem legislativa pode ser vista como um reflexo da tradicional cautela do Estado na cobrança de dívidas fiscais. Recorde-se que, tratando-se de dívidas de empresas, os seus administradores já estão sujeitos a processos de reversão, caso as dívidas não sejam pagas.

Esta postura é excessivamente conservadora e desajustada às realidades económicas e sociais atuais. A assunção de dívidas por terceiros (ainda que não liberatória), nos mesmos termos do devedor originário, já é suficiente para acautelar os interesses das AT (que passa a ter dois patrimónios a responder pela mesma dívida).

O problema agrava-se quando o devedor originário tenha o seu plano de prestações definido nos termos de um plano de recuperação (aprovado em insolvência ou em processo especial de revitalização). Ao contrário do que acontece com todas as outras dívidas perante privados, o terceiro que queira assumir a dívida fiscal não pode manter o plano de pagamentos aprovado para o devedor original. Apesar de a lei parecer expressa nesse sentido, a verdade é que o terceiro interessado tem de solicitar uma dupla autorização à AT: para (i) a assunção da dívida e (ii) beneficiar do plano prestacional em vigor para o devedor originário, o que não é aceite pela AT, porque esse terceiro não está em processo de recuperação! Portanto, qualquer plano prestacional aceite pela AT para o terceiro, será substancialmente reduzido: em vez de ter um plano com 150 prestações, poderá, com sorte (e no máximo), beneficiar de um plano de 60 prestações.

O resultado é óbvio. São raríssimas em Portugal as assunções de dívidas fiscais por terceiros. Nesta fase de recuperação económica, em que se privilegia a reestruturação de empresas, esperava-se maior flexibilidade e maleabilidade na recuperação de dívidas pelo Estado, especialmente quando a liquidez e a capacidade de pagamento dos contribuintes (devedores originários) podem estar seriamente comprometidas, o que, naturalmente, também compromete a recuperação do crédito fiscal.

Assim, é urgente a revisão desta estratégia, tornando o processo de assunção de dívidas por terceiros mais acessível e menos dispendioso, para se promover uma recuperação eficiente das dívidas ao Estado.

Embora a proteção dos interesses fiscais seja indiscutivelmente crucial, é essencial que a legislação tributária seja equilibrada, pragmática e menos burocrática, de modo a não desencorajar soluções potencialmente proveitosas tanto para a AT como para os contribuintes

  • Manuel Sequeira
  • Associado sénior da área de Corporate M&A da PLMJ
  • Rita Folhadela
  • Associada sénior da área de Resolução de Litígios da PLMJ

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