José Couto, presidente da Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel, está “receoso” com a diminuição da procura desde outubro e desafia Autoeuropa a comprar mais componentes em Portugal.
Apesar de terem atingido valores máximos no ano passado, com uma faturação à volta de 14,6 mil milhões de euros, dos quais 12.433 milhões na exportação, os industriais portugueses de componentes para automóveis sentem um abrandamento da procura desde o início do outono e preparam-se para “adaptar o chão-de-fábrica” ao recuo das encomendas. Ainda assim, acreditam que será possível “manter o aparato industrial, quer ao nível da mão-de-obra quer dos equipamentos”.
Ultrapassada a fase mais crítica provocada pela instabilidade no Mar Vermelho e numa altura em que várias fabricantes portuguesas estão a alterar projetos de investimento para os EUA, o presidente da AFIA – Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel, José Couto, dramatiza a manutenção do nível de emprego à volta dos 63 mil trabalhadores – “a partir do momento em que se perde, é difícil de recuperar” – e pressiona a Autoeuropa para aumentar a compra de componentes nacionais para a fábrica de Palmela, que diz ser “pouco” para a capacidade instalada em Portugal.
Os atrasos nas entregas de mercadorias, devido à mudança de rota para evitar o Mar Vermelho, obrigaram no início do ano várias construtoras automóveis europeias a parar ou a programar a produção, atrasando o processo de entrega e planeamento de empresas portuguesas. Como está agora a situação no terreno?
O efeito da alteração de rotas e dos atrasos na entrega dos contentores e das mercadorias notou-se também em Portugal. O efeito foi um bocado mitigado. Embora tenhamos tido baixas de encomendas, não houve paragem de empresas. Agora o que temos é uma logística diferente, em alguns casos mais demorada, com mais dias de navegação e com um prazo maior para entrega. Mas já incorporámos esses desvios e neste momento a situação está normalizada. Isto no caso das mercadorias que importamos. Nas exportações, como a esmagadora maioria são para a Europa não temos tido grandes problemas nas nossas entregas. Para os EUA também não tem havido grande problema.
Já no caso das mercadorias que os nossos clientes têm de importar [da Ásia], isso tem um efeito dominó. Isto é, o efeito no nosso cliente, mais tarde ou mais cedo, tem um efeito no seu fornecedor, nomeadamente em Portugal. Ao fim de uma primeira fase em que se notou esse tipo de problemas, tudo se encaixou. Com mais demora, mas neste momento as coisas estão a correr normalmente.
As encomendas que baixaram por esse efeito já foram retomadas?
Houve um ajustamento das encomendas por parte dos nossos clientes. Isso houve. Agora estamos numa fase em que já ultrapassámos esses problemas. Os construtores automóveis já retomaram a produção normal. Neste momento não é pelo Mar Vermelho que circula a maior parte das mercadorias; aquilo que vem da Ásia e do Médio Oriente está a fazer um desvio pela rota de África. As construtoras já incorporaram não só esses prazos como esses custos.
Os efeitos da alteração de rotas e dos atrasos na entrega dos contentores e das mercadorias por causa da crise no Mar Vermelho notou-se também em Portugal. O efeito foi um bocado mitigado. Embora tenhamos tido baixas de encomendas, não houve paragem de empresas.
Dizem que a indústria de componentes automóveis enfrenta “desafios e cenários pouco entusiasmantes para o ano em curso”. Em que fatores assenta esse pessimismo?
Estamos à espera que a produção de automóveis encolha. O feedback que temos neste momento dos nossos clientes é que o mercado pode encolher, nomeadamente na Europa. Deixámos de crescer a dois dígitos [as exportações subiram 14% em 2023, para um valor recorde de 12.433 milhões de euros] e a nossa melhor expectativa neste momento é que em todo o ano se possa crescer à volta de 5%. O mercado está a encolher, há uma diminuição também nalguns casos até da produção de automóveis elétricos, que baixaram as vendas. E baixando a procura há uma diminuição da produção. Em janeiro só crescemos 0,3% e estamos um pouco receosos. A nossa estimativa para as exportações do setor no total do ano de 2024 é que pode andar entre 0% e 5%.
É uma amplitude grande.
É verdade. Estávamos a contar que o mês de janeiro ficasse um pouco acima, por volta de 1%. Não conseguimos ainda chegar a números mais redondos e mais concretos [sobre o que se irá passar daqui para a frente]. No ano passado tivemos um primeiro mês bom, este ano não foi tão bom. Mas temos de esperar.
Desde quando é que estão a sentir essa desaceleração nas encomendas?
Em dezembro, já tivemos um mês mau, a diminuir [-2,8% em termos homólogos]. Mas desde outubro que se nota uma diminuição da procura, também com o agudizar de todos os conflitos que temos tido à volta da Europa. Isto tem reflexos nos consumidores, naquilo que faz com decidam ou não investir em bens como um automóvel. Em janeiro, voltámos a crescer a uma taxa positiva, mas 0,3% é 0%. Não nos anima.
Como é que as empresas portuguesas se vão adaptar a esta redução da procura?
Vamos ter de adaptar o chão-de-fábrica, aquilo que acontece na produção, a este recuo. A tentativa é manter sempre o aparato industrial, quer ao nível da mão-de-obra quer dos equipamentos. Se mantivermos esta expectativa de crescimento somos capazes de não desinvestir e de mantermos o nível de produção. Acabámos o ano com 63 mil trabalhadores – o mesmo efetivo que tínhamos nos dois anos anteriores –, embora tenhamos crescido 14% nas exportações. Houve um ganho de produtividade, não houve um reforço da intensidade tecnológica nas empresas, portanto isso foi bom. E acreditamos neste momento que somos capazes de manter esse nível de empregabilidade e encontrar soluções para mitigar esses custos que vêm por diminuição da produção.
Acredita que é possível o setor manter este número de trabalhadores em 2024, mesmo com essa redução das encomendas?
Sim. A não ser que exista uma queda significativa, seremos capazes de manter este número entre os 62 e os 63 mil trabalhadores. É importante que se mantenha porque o investimento destas 350 empresas em recursos humanos é significativo. É muito exigente do ponto de vista da formação, da capacidade de desenvolver sistematicamente competências nas equipas. Isto é um investimento não tangível que gostaríamos de guardar porque é isto que nos dá a mola para enfrentarmos os novos desafios tecnológicos propostos pelos clientes. A partir do momento em que se perde, é difícil de recuperar. Até porque percebemos que o nosso mercado é cada vez mais estreito porque formamos pessoas com competências que também podem ser utilizadas noutras indústrias. O mercado é assim e é bom que isto aconteça. As nossas equipas são cada vez mais competentes e isso tem uma influência muito positiva nos outros setores que procuram a competitividade como referência.
Não há neste momento nem antecipa que haja empresas do setor em lay-off nos próximos tempos?
O que temos neste momento é um movimento normal. Pode haver empresas com alguns problemas, mas é um movimento normal. Neste momento, estamos focados em manter este nível de produção e com estes trabalhadores.
É importante manter o nível de emprego à volta dos 63 mil trabalhadores. Isto é um investimento não tangível que gostaríamos de guardar porque é isto que nos dá a mola para enfrentarmos os novos desafios tecnológicos propostos pelos clientes. A partir do momento em que se perde, é difícil de recuperar.
No primeiro mês de 2024, registaram quebras de encomendas provenientes de Espanha (-5,8%) e de França (-23,1%), respetivamente o primeiro e o terceiro mercados mais relevantes para a indústria portuguesa. O que está a acontecer?
Em França pode ter sido uma questão momentânea e não ter um significado tão grave como parece. No caso francês há mesmo uma queda da produção, mas em Espanha pode não haver. O mix da oferta no mercado pode ter-se alterado. Neste caso, várias empresas podem ter sido afetadas por um desvio do consumo. Um mês não dá para avaliar o que está a acontecer. Na América houve um aumento da procura, mas não conseguimos tirar grandes conclusões.
Por exemplo, a Alemanha aumentou as compras a Portugal em 11,6% em janeiro, mas isso pode não significar grande coisa. Temos de ver se este aumento é consolidado ou se tem a ver com a venda de alguns modelos relativamente a outros. Ainda é uma leitura muito deficiente. O Reino Unido aumentou em quase 14% as compras e não temos explicação para isso. Por outro lado, é evidente que a Suécia está a aumentar nos últimos meses com alguma consistência, o que pode ser pela penetração das empresas portuguesas na Volvo – e isso é importante.
Mas só no final do primeiro trimestre poderemos ver as tendências e ter uma noção mais exata e global. Pode haver uma mudança do mix de oferta em termos de modelos no mercado. A entrada de um modelo no mercado pode ter o efeito perverso de as vendas ainda não estarem condizentes com a novidade.
Exportaram 12.433 milhões de euros em 2023. Têm alguma meta definida até ao final da década?
Gostávamos até que o nosso valor de exportações pudesse cair, por ser utilizada [a produção] em Portugal. Isso significaria que estávamos a oferecer mais componentes às empresas que estão instaladas em Portugal ou que se instalavam aqui novas OEM [Original Equipment Manufacturer], novos construtores automóveis. Já manifestámos à Autoeuropa que gostaríamos que aumentasse a compra de componentes nacionais, que houvesse um reforço importante aí porque é um valor reduzido. Achamos que é pouco para aquilo que está instalado em Portugal. Foi um tema que desenvolvemos durante o ano de 2023 [na altura da suspensão da produção devido à falta de peças de um fornecedor esloveno] e precisamos de voltar a esse tema.
Já manifestámos à Autoeuropa que gostaríamos que aumentasse a compra de componentes nacionais, que houvesse um reforço importante aí porque é um valor reduzido. Achamos que é pouco para aquilo que está instalado em Portugal.
A indústria nacional está preparada para produzir componentes para carros elétricos?
Até há bem pouco tempo produzíamos componentes para 98% dos automóveis produzidos na Europa e têm de estar lá também os carros elétricos. O aumento das encomendas em elétricos é um facto. Esperemos continuar nesta senda de estarmos em quase todos os veículos produzidos na Europa. Isso significa responder à procura dos clientes e sermos capazes de acompanhar esta evolução. Nos elétricos não é só a questão da bateria [que muda]; são mais leves, têm novos materiais, equipamentos novos, hardwares e softwares diferentes. É uma alteração significativa de produção e de componentes. É tudo novo. Muitas vezes olhamos para um carro e parece igual ao que era há cinco anos, mas é totalmente diferente.
E as empresas portuguesas acompanharam essa mudança?
Obviamente. Senão estaríamos a produzir menos porque a indústria dos automóveis elétricos aumentou significativamente a sua quota de mercado.
Quanto vale essa componente elétrica nas exportações portuguesas?
Ainda não temos esse feedback. Gostaríamos de saber quanto é que nós contribuímos para a produção de automóveis elétricos na Europa, mas ainda não é fácil fazer essa estimativa.
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