Regulamento da Inteligência Artificial: não vale a pena fingir que ele não existe

E é um erro pensar que este Regulamento é apenas mais uma burocraciazinha que apareceu pelo caminho, uma espécie de novo RGPD. Haverá similitudes, mas é muito mais do que isso.

O novo Regulamento da Inteligência Artificial (IA) da União Europeia está prestes a entrar em vigor. Não é perfeito, podia ser melhor, terá os seus impactos na competitividade da Europa, mas é o que temos.

E por muitos defeitos que o Regulamento tenha, e tem, algo de positivo ele traz: obriga as lideranças empresariais a assumir um papel activo na definição e avaliação das estratégias de IA, deixando de a delegar nos departamentos de TI e marketing, como se a IA fosse apenas uma excêntrica ferramenta de optimização.

Nem que seja pelo quadro sancionatório: nos casos mais graves, as multas podem ir até 35 milhões de euros ou a 7 % do volume de negócios anual a nível mundial. Ou pelos riscos reputacionais envolvidos na violação das normas do Regulamento: perda de confiança dos consumidores, impacto na imagem e na marca e até pressão dos investidores num tempo de activismo judicial.

Talvez isto sirva para chamar a atenção dos órgãos de gestão das nossas empresas.

Sempre me surpreendi, aliás, com essa tendência de deixar a IA nas mãos dos departamentos de IT e de marketing.

A IA é uma das maiores revoluções tecnológicas que a Humanidade alguma vez conheceu, capaz de revolucionar sectores de actividade, modelos de negócio e culturas organizacionais; capaz por isso de condenar uma empresa à irrelevância ou elevá-la à liderança do mercado.

É por isso que a integração de IA implica considerações estratégicas, éticas, regulatórias e de gestão de mudança que vão muito além da sua dimensão operacional. Como irá a IA influenciar o posicionamento competitivo da empresa? Como podem ser equilibrados os imperativos de inovação tecnológica com a responsabilidade ética e social? E como assegurar que a empresa não só se adapta às mudanças regulatórias em curso, mas também se antecipa às futuras exigências legais e sociais?

Se isto não é assunto para ocupar Conselhos de Administração, o que é?

É por isso hora de as empresas se prepararem para cumprir com este Regulamento, porque ele veio para ficar.

E não vale a pena pensar que ele só se aplica a alguns: qualquer empresa que utilize, desenvolva ou importe modelos e sistemas de IA tem de olhar para o Regulamento.

E é um erro pensar que este Regulamento é apenas mais uma burocraciazinha que apareceu pelo caminho, uma espécie de novo RGPD, que pode continuar a ser assegurado pelos departamentos habituais. Haverá similitudes, mas é muito mais do que isso.

Basta pensar nas implicações geopolíticas da inteligência artificial para perceber que o que temos aqui, e o que nos espera no futuro regulatório, não é apenas uma checklist de compliance, mas algo de muito mais transformador e estratégico.

Há uns meses, convidado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos para, em conjunto com a Maria Manuel Mota, entrevistar Yuval Noah Harari, ouvi-o dizer que sem regulação da IA, as hipóteses de as democracias sobreviverem são muito baixas”. Não sei se estou de acordo com Harari neste diagnóstico, como então referi, mas ele dá pelo menos conta do impacto potencial da IA e do quanto a regulação se transformará para poder de alguma forma acomodá-lo.

Se é assim, os órgãos de gestão das empresas que desenvolvem ou que utilizam sistemas de IA não podem continuar a ignorar o assunto, como se o impacto das violações do novo Regulamento fosse coisa menor. Não é. E quando começarmos a ver acções judiciais contra empresas, pela forma como utilizam sistemas e modelos de inteligência artificial de forma não rigorosa, será tarde demais para as trancas à porta.

O que fazer? Três coisas essenciais.

Em primeiro lugar, trazer este assunto para as discussões estratégicas. Os órgãos de gestão da empresa precisam de saber ao certo de que forma, para que efeitos, com que políticas e estruturas de governança, e com que princípios éticos é que a sua empresa desenvolve ou usa IA.

O tema tem a sua tecnicidade, mas isso não pode servir de desculpa para o alheamento relativamente a algo que pode de um dia para o outro manchar irremediavelmente a reputação de uma empresa.

E não se trata apenas de assegurar o cumprimento da legislação. Qualquer órgão de gestão tem de perceber se o cumprimento da legislação é suficiente para proteger a reputação da sua marca na percepção do público e na confiança dos seus stakeholders.

Em segundo lugar, claro, proceder a uma análise de risco.

Agora que há um Regulamento, ainda para mais seguindo uma abordagem baseada no risco, é possível identificar o que precisa de ser feito para cumprir as exigências regulatórias e para garantir que a actuação futura da empresa se mantém dentro desse cumprimento. Desta análise resultará um plano de acção: processos de decisão empresarial serão alterados, estruturas de governance serão criadas, novas funções surgirão, métricas serão desenvolvidas e novos procedimentos serão desenhados.

Mas depois, e é esta é a terceira, é preciso ir mais longe: implementar o plano de acção resultante dessa análise. E, claro, garantir formação na empresa, assegurando uma compreensão generalizada e a conformidade com os padrões legais.

Haverá muito a dizer sobre este Regulamento. Sobre o seu âmbito de aplicação, sobre as suas regras, sobre as suas consequências. E terei tempo de voltar a este assunto noutros fóruns, desde logo profissionais, onde tenho trabalhado em compliance digital. Mas acho preferível, e útil, utilizar este espaço para alertar os decisores para o risco e oportunidade estratégica do que está em causa.

Nada contra a disrupção. Pelo contrário, ao longo dos últimos 8 anos a minha vida profissional tem sido feita a assessorar clientes que têm na disrupção o seu modelo de negócio. Nada me atrai mais do que ajudar essas empresas a desenvolver o seu negócio num quadro regulatório incerto.

Como digo muitas vezes, um inovador que não tenha problemas regulatórios é porque não está a inovar grande coisa. Gosto de estar ao lado deles nesse processo e pretendo continuar do lado dos inovadores e das soluções.

Mas fingir que nada se passa não é opção. Lamentar os erros (que são muitos) do Regulamento não serve de grande coisa. Dizer que a inovação vai morrer com este regulamento é um exagero. Limitar a análise a uma perspectiva de mero compliance, sem componente estratégica, não vai chegar.

Pela minha experiência, e já é alguma, aqueles que começarem primeiro este caminho, e que começarem de forma estratégica, em busca de oportunidades, de posicionamento, de vantagem competitiva e reputacional, serão quem mais vai lucrar.

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