Advogados em prática individual rondam os 85% da classe. Desafios são muitos

Daniela Aires dos Santos, João Massano e Márcia Martinho da Rosa são três advogados que optaram pela prática individual. A Advocatus foi conhecer as suas histórias e os motivos das suas escolhas.

Liberdade, criatividade ou até desafiante. Foi assim que três advogados, que exercem em prática individual, descreveram a sua atividade à Advocatus. Apesar dos diversos desafios, garantem que não se veem a voltar para um escritório de advogados.

Para Daniela Aires dos Santos, advogada há cerca de 17 anos, a prática individual é “muitíssimo desafiante” tanto no bom como no mau sentido. “No bom sentido porque, como tudo depende unicamente de nós próprios, o nosso crescimento e a nossa expansão acabam por ser um desafio motivador pois todas as nossas conquistas e objetivos são conseguidos, exclusivamente, através do nosso trabalho. O que é muito satisfatório”, revelou.

Já no mau sentido, a advogada admitiu que às vezes os desafios são tantos e “sempre para cima dos mesmos ombros que pode tornar-se exaustivo”. “Optei por este caminho, principalmente, porque dou muito valor à minha liberdade: à minha liberdade de tempo, de escolha (poder escolher as áreas e os casos que aceito ou não), de pensamento e de decisão, até, no sentido técnico”, acrescentou.

Também Márcia Martinho da Rosa, advogada, agente oficial da Propriedade Industrial e mandatária europeia de Marcas e Desenhos ou Modelos junto do EUIPO, admitiu que exercer em prática individual tem sido um desafio, mas que o saldo é “claramente positivo” em muitos aspetos.

“Ser advogada em prática individual permite-me ter liberdade e criatividade na procura de soluções jurídicas para os meus clientes. Simultaneamente, é desafiante e exige grande espírito de sacrifício e organização”, notou.

Após ter trabalhado cerca de dez anos em sociedades de advogados, Márcia Martinho da Rosa sentiu a necessidade de ter mais tempo para se dedicar a outros temas jurídicos, como os Direitos Humanos – após ter feito parte da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados – e também à vida pessoal. Assim, optou pela prática individual.

Márcia Martinho RosaHugo Amaral/ECO

O presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, João Massano, é também um dos advogados em prática individual em Portugal. Segundo o próprio, esta é “sem dúvida” a essência da profissão.

“É nesta forma de exercício que se encontram os valores fundamentais da advocacia: proximidade com as pessoas, o conselho e a defesa dos interesses individuais exclusivamente orientados para o cliente. Esta abordagem permite um envolvimento mais profundo e personalizado em cada caso, algo que, nesta fase da minha vida, é intrinsecamente gratificante”, revelou.

Ainda assim, João Massano, que exerceu mais de 20 anos em firmas, sublinhou que não pretende afirmar que a advocacia em prática societária não valorize estes princípios, mas antes que a organização mais “industrial” das sociedades pode conduzir a uma prática “talvez mais mecânica e especializada”.

Após mais de duas décadas dedicadas à prática societária, senti a necessidade de renovar a minha trajetória profissional, explorando abordagens mais autónomas e personalizadas da advocacia”, revelou. O advogado admitiu que a mudança foi também influenciada pela sua experiência e “interação contínua” com a classe, fruto das suas funções na Ordem dos Advogados.

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João Massano, presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos AdvogadosHugo Amaral/ECO

“No fundo, optei por esta via para estar mais próximo de cada história, de cada luta, transformando a Advocacia não apenas numa profissão, mas numa verdadeira vocação de servir e fazer a diferença na vida das pessoas”, disse.

Uma coisa é certa, os três advogados contactados pela Advocatus não mudariam para um escritório de advogados levemente, tendo todos preferido manter-se em prática individual.

Neste momento, se há uma certeza que tenho na vida é que quero continuar a trabalhar em prática individual. Sermos donos do nosso próprio nariz e poder tomar decisões de forma totalmente livre e independente, para mim, não tem preço”, garantiu Daniela Aires dos Santos.

Já Márcia Martinho da Rosa só aceitaria voltar para uma firma de advogados se o projeto a estimulasse e lhe fizesse sair da zona de conforto.

Também João Massano destacou o “prazer” em gerir uma carteira “diversificada” de processos em várias áreas do Direito como um fator para se manter em prática individual. “Esta liberdade não é apenas uma questão de preferência pessoal; é uma parte integral do que me mantém apaixonado e motivado na advocacia”, referiu.

O lado bom e mau da prática individual

Em Portugal, a advocacia exercida em prática individual representa cerca de 85% dos associados, segundo dados revelados pela Ordem dos Advogados (OA) à Advocatus. Várias são as vantagens apontadas pelos advogados, mas os desafios também são grandes.

Uma das maiores vantagens é o acompanhamento personalizado que posso dar a cada um dos meus clientes, facto que hoje em dia, me parece ser um dos aspetos mais relevantes que os clientes privilegiam quando necessitam escolher o advogado”, referiu Márcia Martinho da Rosa.

Já para João Massano uma advocacia em prática individual permite uma maior disponibilidade, flexibilidade, assertividade no acompanhamento global de processos e clientes e proximidade e foco na resolução dos problemas dos clientes.

“Além disso, e como sempre disse, trabalhar em prática individual não é trabalhar isolado e esta experiência tem-me permitido criar parcerias e colaborações com colegas, a nível nacional, que dominam melhor outras temáticas, numa lógica de entreajuda com um único objetivo: servir melhor o cliente”, apontou.

No reverso da moeda, a advocacia em prática individual também acarreta alguns desafios. “As principais desvantagens penso que podem passar, acima de tudo, pela ausência de remuneração fixa e pela falta do “espírito de equipa”. O que não é problemático e facilmente superável através de uma boa gestão e de muito network”, salientou Daniela Aires dos Santos.

Também Márcia Martinho da Rosa apontou a dificuldade de tudo depender de cada um, desde tarefas simples às mais complexas. “É necessário também ser organizado e resiliente para ultrapassar as dificuldades, nomeadamente na questão da angariação e faturação, mas quando se gosta do que se faz tudo se alinha com muita disciplina e organização”, acrescentou.

Sublinhado que os desafios da prática individual são “consideráveis”, especialmente no que toca à gestão logística e administrativa, João Massano alerta que, sem o suporte de uma estrutura de retaguarda como nas sociedades, o advogado em prática individual tem de gerir ativamente todos os aspetos do negócio, desde a administração e faturação até à logística do escritório e comunicação. “Isso inclui a gestão da “marca pessoal”, essencial para diferenciar-se e atrair clientes num mercado tão competitivo como é o mercado da prestação de serviços jurídicos”, disse.

O advogado sublinhou também que é preciso ter uma “estratégia sólida” de proteção social, planeando o futuro financeiro de forma “cuidadosa” para enfrentar possíveis períodos de doença, desemprego ou reforma, sendo esta preocupação ainda mais premente para um advogado em prática individual.

Que papel tem a Ordem na defesa desta classe

A Ordem dos Advogados representa todos os advogados, incluindo os em prática individual, e, segundo a bastonária Fernanda de Almeida Pinheiro, este tipo de advocacia é uma “grande preocupação” da instituição.

É uma prática muito isolada, quase sempre com grandes incertezas de faturação, que oscila muito durante o ano, tem enormes dificuldades de investimento na sua prática, dificuldades de compatibilização da vida profissional e pessoal e, não menos importante, total desproteção social”, referiu.

A bastonária salientou que é a forma de exercício da profissão mais frequente e que “maioritariamente garante o funcionamento do sistema de acesso ao direito e aos tribunais”. “Consideramos que a prática individual é o passado e o futuro da profissão, uma vez que cada vez mais a proximidade ao cliente será valorizada e as relações humanas terão uma dimensão primordial na prática profissional, não querendo com isto esquecer o óbvio desenvolvimento tecnológico que se observa”, disse.

Mas será que a OA tem acautelado bem os interesses dos advogados em prática individual? As opiniões dividem-se. Para Daniela Aires dos Santos é “evidente” que não.

“A Ordem começa agora, só agora, a dar alguns sinais de querer acautelar os nossos interesses mas tem ainda muito trabalho para fazer. É vergonhoso, e digo-o frontalmente, que uma advogada não tenha direito a gozar uma licença de maternidade nem tenha direito a uma baixa médica, como acontece com qualquer trabalhador que esteja noutro regime que não o da Caixa de Previdência dos advogados. Falo por experiência própria, tenho 3 filhos. Entre outras coisas. A Ordem tem mesmo um longo trabalho a fazer nesta matéria dos direitos dos advogados. Espero que consiga. Mesmo”, explicou a advogada.

Também Márcia Martinho da Rosa considera que a OA não acautela os interesses nem dos advogados em prática individual, nem dos em prática societária. “Os advogados estão cada vez mais a afastar-se da OA e das suas estruturas. O sentimento geral é de que a Ordem não serve para nada, não tem prestígio nem força interventiva, e, sobretudo, a geração mais nova de advogados, não se revê neste modelo associativo. Aliás, muitos dos jovens colegas com quem falo afirmam até que devia acabar”, garantiu

A advogada assume que há muito trabalho que é feito internamente pela OA que os advogados desconhecem, sobretudo porque não existe uma comunicação eficaz entre a OA e os seus associados.

“A estrutura da OA está completamente arcaica e desajustada à realidade e numa altura em que se assiste a um ataque sem precedentes ao exercício da advocacia, a prática isolada é uma presa fácil de outros playersnão sujeitos às regras do exercício profissional – e espera-se que a Ordem reaja e tenha uma visão de 360º no que toca temas emergentes que podem pôr ainda mais em risco a prática profissional, como por exemplo, a inteligência artificial que vai roubar imensos trabalho aos advogados é pena que a Ordem dos Advogados se perca com outros temas, ao invés, de discutir o que realmente interessa aos advogados”, rematou.

Em contraponto, João Massano acredita que a OA, em particular o Conselho Regional de Lisboa, tem acautelado de forma “eficaz” os interesses desta classe. “Esta atenção manifesta-se no desenvolvimento e na implementação de diversas iniciativas que visam apoiar e proteger os advogados que optam por este modo de exercício da profissão”, explicou.

Entre as ações está a expansão da rede de formação, o Gabinete de Apoio ao Bem-Estar Psicológico e os diversos protocolos estabelecidos com universidades e outras entidades, que “proporcionam acesso a recursos educacionais, de pesquisa e tecnológicos, muitas vezes inacessíveis individualmente devido aos custos associados”.

Já Dinora Dias, presidente da Associação Portuguesa da Advocacia em Prática Individual (APAPI-ADV), defende que uma das prioridades do Conselho Geral (CG) é a luta pelos direitos sociais e previdência dos advogados. “O mesmo tem sucedido em relação ao novo estatuto dos advogados, que, em nosso entendimento, pode vir a revelar-se prejudicial, nomeadamente no que respeita a atos como os da consulta jurídica, que deixa de estar nas mãos apenas de advogados, tendo o CG vindo a defender que estas alterações estatutárias devem ser eliminadas de forma urgente e imediata”, disse.

Fundada em contexto de pandemia, há cerca de quatro anos, a APAPI-ADV tem como principal missão integrar e afirmar os advogados em prática individual e atuar na defesa intransigente dos direitos e interesses destes profissionais. A associação busca ainda a modernização da forma como a advocacia é vista e mostrada aos cidadãos.

Procuramos chamar efetiva atenção para os problemas com que nos deparamos diariamente, nomeadamente para a falta de acautelamento dos direitos sociais dos advogados que exercem em prática individual, o que pensamos que tem sido conseguido, nomeadamente através das várias audiências que foram levadas a cabo com diversos Grupos Parlamentares, bem como com o maior consciência para esta temática despertada junto não só dos nossos associados, como também de todos os advogados nas suas mais diversas formas de exercício, e ainda da sociedade em geral”, adiantou Dinora Dias.

Uma coisa é certa, a bastonária da OA garante que o investimento que faz na advocacia em prática individual, quer com meios técnicos, quer com direitos sociais, é um “investimento seguro” e que “trará frutos no futuro da profissão”, uma vez que através da prática individual conseguirão ter um emissário junto do cidadão que ajudará a alterar a visão que a sociedade criou da advocacia.

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