Direção executiva do SNS pode deixar de nomear chefias e avaliar planos
Especialistas não veem risco de perda de poderes da direção executiva relacionados com a "gestão operacional", mas admitem um regresso ao Ministério da Saúde de "competências estruturantes".
O Governo prepara-se para reformular a direção executiva do SNS, uma das medidas emblemáticas do anterior Executivo socialista, tendo dado, inclusivamente, um prazo de 60 dias à equipa liderada por Fernando Araújo para informar “a tutela sobre o estado atual de todas” as mudanças. A hipótese já tinha sido levantada antes da campanha eleitoral, tomou forma no programa eleitoral da Aliança Democrática (AD) e ganhou tração com a criação da Secretaria de Estado da Gestão da Saúde, liderada por Cristina Vaz Tomé, e subsequente inscrição da medida no programa de Governo, ainda que com poucos detalhes.
Ao ECO, os especialistas ligados ao setor realçam que o “papel” da direção executiva (DE-SNS) para gerir a rede do SNS é “indiscutível”, mas sublinham que são necessários “alguns ajustamentos” para prevenir “conflitos” ou até a duplicação de competências com outras entidades. Os peritos não anteveem que haja qualquer risco de perda de poderes relacionados com a “gestão operacional” por parte da entidade liderada por Fernando Araújo, mas admitem um regresso ao Ministério da Saúde de “competências mais estruturantes”, como é o caso da nomeação de chefias e da avaliação dos planos de desenvolvimento organizacional (anteriormente conhecidos por planos de atividades e orçamento) das Unidades Locais de Saúde (ULS).
“Há, de facto, alguns ajustamentos que creio que todos reconhecem como necessários”, afirma Adalberto Campos Fernandes, reiterando que a direção executiva do SNS “foi criada de forma demasiado rápida“ e “com base em pouco pensamento”, o que levou a que a fossem precisos “meses larguíssimos” para que os seus estatutos fossem aprovados e que agora se esteja a notar “alguns conflitos de competências entre, por exemplo, a ACSS, a SPMS, a própria DGS e as ARS”.
A extinção “um bocadinho apressada das ARS está a criar problemas que têm que ser retificados“, nomeadamente no que toca a “quem compra as vacinas, quem paga as vacinas, quem transporta e quem faz a relação com as entidades convencionadas”, enumera. “Não há nenhum drama, mas é preciso retificar“, atira o antigo ministro da Saúde do primeiro governo de António Costa. Se o objetivo da tutela liderada por Ana Paula Martins é “afinar entre os limites de competências e prevenir a existência de conflitos, creio que é útil”, remata.
A necessidade de “clarificação da ‘articulação’ entre entidades” é também defendida pelo economista Pedro Pita Barros, que vê nesta reformulação uma oportunidade para se “definir quem tem o poder de decisão”: se a ACSS ou a direção executiva. “Por exemplo, a ACSS poderá assumir de forma clara o papel de ‘estado pagador’ (SNS proteção) e a DE-SNS o papel de ‘estado prestador’ (SNS prestação). Significaria que a ACSS teria, claro, um papel de discussão e controle da DE-SNS no que se refere à utilização dos dinheiros públicos canalizados para o SNS”, explica.
Governo dá 60 dias à direção executiva para esclarecer mudanças
O programa de Governo é pouco claro sobre como será feita esta reformulação. No documento, o Executivo compromete-se apenas a avançar com “uma alteração da sua estrutura orgânica – mais simplificada –, e das suas competências funcionais”, tendo em vista uma “governação menos verticalizada e mais adequada à complexidade das respostas em saúde, articulação entre redes de cuidados e modelos de contratualização e financiamento, infraestruturas, recursos humanos e transformação digital na saúde”. Não obstante, a intenção parece agora um pouco mais moderada do que a sugerida no programa eleitoral — que apontava para “alteração profunda”– e do sugerido em novembro de 2023, quando no seio do PSD se chegou a falar da possibilidade de se extinguir o organismo.
O Ministério da Saúde confirmou ao ECO que enviou esta semana um despacho à direção executiva do SNS “a solicitar um conjunto de informação relacionada com as recentes alterações levadas a cabo” por este organismo, designadamente no que toca às “atribuições das diversas instituições do Sistema de Saúde”, nomeadamente da ACSS, a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde e das ARS. E dá um prazo de “de 60 dias” para que a entidade liderada por Fernando Araújo “informe a tutela sobre o estado atual de todas estas mudanças”.
Entre as várias informações pedidas consta um pedido de “relatório com as principais medidas adotadas pela DE-SNS”, “documentos que sustentaram” a decisão da generalização das Unidades Locais de Saúde (ULS) e “informação sobre o modelo de contratualização/financiamento” destas, bem como “avaliação da sustentabilidade económico financeira dos principais projetos a desenvolver” pelo organismo, entre outros.
Mexidas nas competências “estruturantes”
Apesar de sublinharem que “ainda é muito difícil perceber qual será a proposta concreta”, os especialistas ligados ao setor da Saúde afastam que haja qualquer risco de perda de competências operacionais por parte da direção executiva ou até de extinção do organismo, dado a sua “indiscutível” importância na gestão da rede do SNS, e até porque o objetivo desta reforma passa pela integração dos cuidados de saúde.
Em “competências que são mais estruturantes, nomeadamente na nomeação de chefias dos conselhos de administração das ULS ou na avaliação de planos, como os planos de desenvolvimento organizacional, pode eventualmente haver um reassumir de competências por parte do Ministério da Saúde”, admite o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) ao ECO, referindo, que, apesar de, formalmente, a responsabilidade de aprovar estes planos seja do Ministério da Saúde, “na prática, depende essencialmente da avaliação da direção executiva”. E esta possibilidade ganhou força com a criação de uma Secretaria de Estado da Gestão da Saúde.
Já no que concerne a ter uma estrutura menos verticalizada, Xavier Barreto admite que em cima da mesa poderá estar a hipótese de haver “uma maior colaboração com outras entidades do SNS” ou uma até “uma menor concentração de decisão” por parte da entidade liderada por Fernando Araújo. No entanto, o presidente da APAH sublinha que modelo de governação do SNS está menos verticalizado face ao que sucede noutros países.
“Em Portugal, para além da DE-SNS há um conjunto de entidades: continuamos a ter a ACSS, que é responsável pelo financiamento; a DGS, que é responsável pelos programas de saúde, pela saúde pública, etc.; a SPMS, responsável pelas compras e por toda a área digital; o próprio Ministério da Saúde e até o Ministério das Finanças, enquanto acionista. Não me parece que exista uma concentração tal que isso possa ser encarado como um problema”, defende.
Reorganização das urgências não fica em risco
Assim, os peritos ouvidos pelo ECO descartam também que haja qualquer risco de as reformas já planeadas pela direção executiva (em termos de organização do SNS) fiquem pelo caminho, nomeadamente no que toca “à reorganização das urgências e a outras decisões desse tipo”. Até porque o programa do Governo prevê redefinição da rede de urgências e a referenciação hospitalar.
“Essa é uma gestão muito operacional e que não tenho qualquer dúvida de que deverá ficar numa estrutura como a DE-SNS. Acho que aí não vai haver qualquer mudança“, afirma Xavier Barreto. “Não vejo que vá haver uma rutura operacional”, corrobora Campos Fernandes.
E estas alterações poderão provocar mexidas na liderança de Fernando Araújo ao leme da direção executiva? “Fernando Araújo será o primeiro a fazer a leitura se tem ou não condições para continuar a interpretar uma política ou a fazer um caminho num quadro governativo diferente”, responde o antigo ministro da Saúde, sublinhando que “ninguém põe em causa as qualidades, a competência e o prestígio” do CEO do SNS, pelo que a decisão caberá ao próprio.
Não obstante, Campos Fernandes avisa que em matérias de saúde deve “existir tanto quanto possível uma continuidade estratégica no sentido geral das políticas”. “Não é útil estarmos a mudar e alterar o sentido do caminho constantemente”, alerta.
O ECO enviou um conjunto de perguntas à direção executiva, incluindo se o organismo foi ouvido sobre esta intenção ou se, pelo menos, a decisão lhe foi comunicada previamente antes de ser anunciada publicamente. Mas, até à publicação deste artigo, não obteve resposta.
Sistemas Locais de Saúde flexíveis podem criar “efeitos perversos”
O Governo liderado por Luís Montenegro compromete-se ainda a rever a planificação das ULS, com especial enfoque naquelas que “integram hospitais universitários”, bem como a avançar com “Sistemas Locais de Saúde flexíveis com participação de entidades públicas, privadas e sociais”. De notar que a generalização das ULS — organismos que integram hospitais e centros de saúde numa mesma instituição de gestão — era, aliás, uma das medidas principais da reorganização do SNS desencadeada pelo anterior Executivo. Porém, a aplicação deste modelo nos maiores hospitais levou ao pedido de demissão de Ana Paula Martins, agora ministra da Saúde, do cargo de presidente do Hospital Santa Maria.
Sobre isto, os especialistas ouvidos pelo ECO também sublinham que será “muito difícil” regressar-se ao modelo anterior, onde hospitais e centros de saúde estavam separados. No entanto, admitem que há espaço para melhorias, nomeadamente nas que integram hospitais universitários.
“Estas ULS têm hospitais muito diferenciados, mas mesmo esses hospitais têm uma componente de hospital distrital. E colocar os hospitais universitários fora da ULS significaria que esse movimento menos diferenciado, bem como os cuidados de saúde primários que estão inseridos nessas ULS, teriam um funcionamento diferente do que sucede nas restantes ULS”, alerta Pedro Pita Barros, defendendo, por isso, que poderá ser preferível “ajustar os mecanismos de pagamentos por capitação, de forma a ter em conta as transferências de doentes“. Ou, seja, para o especialista em Economia da Saúde e professor na Nova SBE, “mais do que retalhar em pedaços”, é preferível “utilizar mecanismos de pagamento apropriados”.
Opinião diferente tem Campos Fernandes, que defende que o “estatuto tem que ser diferente e o modelo também” para os maiores hospitais do país, dado que estes têm “uma vocação para a diferenciação tecnológica e clínica” e são “unidades de resposta nacional com uma forte componente de ensino e investigação”, além da elevada “dimensão orçamental que nalguns casos se aproxima dos mil milhões de euros”.
Já o presidente da APAH sublinha que o financiamento por capitação “tem algumas vantagens”, pois concentra mais as entidades na promoção da saúde e na prevenção da doença, pelo que, consequentemente, “induz menos produção”. Ainda assim, nos grandes hospitais o modelo não funciona, uma vez que aquilo que o Estado paga por cada pessoa que vive naquela área geográfica não tem em conta os novos medicamentos e os seus custos avultados.
Modelos de financiamento à parte, Xavier Barreto assinala ainda que os Sistemas Locais de Saúde flexíveis poderiam aplicar-se “a todas as ULS”, lembrando que há unidades que estão já a fazer essa articulação com o setor social e privado. No entanto, acredita que “se dará prioridade” a que este modelo seja aplicado nas ULS que integram hospitais universitários. “Um sistema Local de Saúde é basicamente numa determinada área geográfica nós termos um modelo de integração de cuidados, não só entre os cuidados primários e os cuidados hospitalares, mas entre estas entidades e um conjunto de outras, muitas vezes, até de base comunitária. Entidades que podem ser do setor social, privado”, explica, sublinhando que esta “visão abrangente” pode ter “alguma vantagem”.
Mas há cuidados que devem ser salvaguardados. “Quando começamos a contratar serviços ao setor privado e ao setor social, temos que ter garantias: que o doente é do SNS, que controlamos o processo e que não criamos incentivos perversos”, alerta, referindo-se nomeadamente ao facto de se poder criar a “tendência de saírem mais profissionais de saúde do SNS para o privado” de forma a assegurar a resposta que o privado vai dar ao sistema de saúde público. “Temos que garantir que nenhuma destas respostas — incluindo os sistemas locais de saúde — resulta em prejuízo do SNS“, remata.
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