Ana Rita Duarte de Campos é sócia contratada da Abreu Advogados desde 2019, trabalhando essencialmente nas áreas de Direito Penal Económico-Financeiro, e Direito das Contra-Ordenações.
Ana Rita Duarte de Campos é sócia contratada da Abreu Advogados desde 2019, trabalhando essencialmente nas áreas de Direito Penal Económico-Financeiro, Direito das Contra-Ordenações, Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal e Compliance.
Tem representado pessoas singulares e coletivas no âmbito de processos de natureza penal, com especial enfoque na área dos crimes económico-financeiros, de natureza patrimonial e de titulares de cargos políticos. Tem também assistido muitos arguidos estrangeiros na cooperação judicial internacional em matéria penal.
Para além do seu trabalho de patrocínio judicial, tem estado envolvida na elaboração e implementação de programas de conformidade, com destaque para os que se destinam à prevenção da corrupção e do branqueamento de capitais, em vários setores de atividade, como o bancário, o imobiliário e o da energia.
No programa de Governo, apresentado ontem, a suspensão provisória do processo aplicada a quem contribuir para a verdade nos processos de corrupção está a ser ponderada. É uma medida positiva?
É uma medida positiva e que, no que diz respeito à corrupção ativa, já se encontra prevista no artigo 9.º, da Lei n.º 36/94, de 29 de setembro, que dispõe sobre medidas de combate à corrupção. É uma solução que, de resto, já constava da versão originária dessa Lei, aprovada há quase 30 anos e que a entrada em vigor da Estratégia Nacional Anticorrupção alargou ao crime de oferta indevida de vantagem. Aquilo que, todavia, leio no Programa do Governo, quanto à extensão dos mecanismos de Direito premial não se confina aos crimes corruptivos. Eu penso que é uma medida positiva, desde que as suas regras sejam claras e garantísticas, o que, até agora, não tem sucedido e tem transformado esses mecanismos, sobretudo os que se encontram previstos no que tange aos crimes de corrupção, em letra praticamente morta.
E a fixação de 72 horas do prazo máximo para decisão de medidas de coação desde a detenção de um arguido, permitindo ainda que possa ser ouvido por mais do que um juiz de instrução?
Penso que é uma medida muito positiva e, aliás, já a defendi publicamente, mesmo antes de ser conhecido o Programa do Governo. E mais colegas meus o fizeram.
Estamos demasiado obcecados com a corrupção?
Penso que a corrupção é um fenómeno grave, que compromete a estrutura democrática da sociedade, a sua economia, a meritocracia e, como se diz agora, o “elevador social”. Daí não se segue, em meu entender, apesar das perceções internacionais que têm tido impacto, não só no debate público, mas, igualmente, no último grande pacote de medidas de combate à corrupção, que teve a particularidade de ter sido antecedido de uma ampla discussão pública, que seja o problema mais relevante em Portugal. Aliás, parece-me estranho que não se tente fazer um balanço do impacto que as medidas de combate à corrupção que entraram em vigor em 2022 antes de avançar com outras. Estamos tão obcecados com a corrupção como estamos com o branqueamento. Faz parte de uma fase que estamos a atravessar e que deve muito ao impulso do Direito Comunitário que, em matéria de Justiça, há muito abandonou o chamado “terceiro pilar”. No caso do branqueamento creio que a obsessão (e alguns excessos) são muito maiores. É importante notar que, no Regime Geral de Prevenção da Corrupção, o branqueamento foi tratado como infração conexa, quando o sistema preventivo e sancionatório aplicável ao branqueamento já previa tudo o que aí se preconizou e mais ainda e, curiosamente, o atual Governo, vem propor no seu Programa, que a assimilação do sistema sancionatório se faça ao contrário, isto é, aplicando as sanções relativas às falhas de prevenção do branqueamento aos crimes de corrupção. No caso da prevenção do branqueamento, os excessos da Lei estão à vista de qualquer advogado de Direito Penal que tenha de lidar com processos em que são suspensas operações bancárias, depois convertidas em controlos de contas e, nos cenários piores, em arrestos que, literalmente, se arrastam até ao final do processo e que, pelo caminho, matam empresas, eliminam postos de trabalho e destroem riqueza.
Penso que a corrupção é um fenómeno grave, que compromete a estrutura democrática da sociedade, a sua economia, a meritocracia e, como se diz agora, o “elevador social”. Daí não se segue, em meu entender, apesar das perceções internacionais que têm tido impacto, não só no debate público, mas, igualmente, no último grande pacote de medidas de combate à corrupção, que teve a particularidade de ter sido antecedido de uma ampla discussão pública, que seja o problema mais relevante em Portugal.
No caso da corrupção, não há esse excesso de obsessão. Há outras coisas: decisões judiciais que confundem violação dos deveres de funcionários (que é timbre de todos os crimes de corrupção) com corrupção para ato ilícito, e a implicação que isso tem nas penas aplicáveis, mau uso de provas indiretas, efeitos perniciosos das medidas de coação, et cetera. Isso preocupa-me mais do que algum excesso (que o há) no debate público, nacional e internacional.
Nas 186 páginas do programa de Governo, não há uma única referência à advocacia. Isso é preocupante?
É. Nós saímos de um ciclo político que foi muito hostil, pelo menos, à representação institucional da classe. Há um conjunto de revindicações desse lado que foram não apenas ignoradas, mas esmagadas pelos protagonistas desse ciclo político. O que mais me interessa dessas reivindicações é a questão do Estatuto profissional, onde incluo a nova Lei dos Atos Próprios, que, muito sinceramente, vai trazer sérios prejuízos ao País. É muito cedo para alguns perceberem isto, mas vai acontecer. E não acredito que, pela via legislativa, haja alterações ao que entrou em vigor no início deste mês. Espero enganar-me.
Faz sentido a fase de instrução deixar de existir, no processo penal?
Não faz qualquer sentido. A instrução é (ou devia ser) um filtro de legalidade, ao cuidado de um juiz, no que tange à investigação e à decisão final de inquérito. A prática judiciária degradou-a e as iniciativas legislativas, especialmente, as que entraram em vigor em setembro de 2007, esvaziaram praticamente as garantias que ainda existiam nessa fase processual. A instrução, hoje em dia, depende mais do concreto juiz de instrução e dos concretos requerimentos instrutórios redigidos pelos advogados do que da lei. E isto não pode aceitar-se. Já imaginou o que seria uma decisão de acusação implicar, necessariamente uma sujeição a julgamento? O Arguido tem de ter o direito a sindicar judicialmente a investigação que o visou e o despacho que o acusou. E não é com teorias minimalistas sobre a suficiência dos indícios (que geram pronúncias e remessa para julgamento) que a justiça se faz. E depois, fica o público admirado com tantas absolvições. Em suma: tem de haver instrução, apesar de a Constituição não a exigir na sua literalidade, no sentido de determinar a possibilidade de existência dessa fase processual. Exige-a, em meu entender, em homenagem do direito de defesa do Arguido, que tem o direito de ver sindicada a decisão do Ministério Público de sujeitá-lo a julgamento e a investigação que precedeu essa decisão.
A prestação de contas por parte do MP é uma miragem?
No atual modelo de atuação do Ministério Público, não posso deixar de concordar com a sua afirmação.
A instrução, hoje em dia, depende mais do concreto juiz de instrução e dos concretos requerimentos instrutórios redigidos pelos advogados do que da lei. E isto não pode aceitar-se. Já imaginou o que seria uma decisão de acusação implicar, necessariamente uma sujeição a julgamento? O Arguido tem de ter o direito a sindicar judicialmente a investigação que o visou e o despacho que o acusou. E não é com teorias minimalistas sobre a suficiência dos indícios (que geram pronúncias e remessa para julgamento) que a justiça se faz.
O que faz falta no Ministério Público?
Eu estou convencida de que o modelo de atuação do Ministério Público está pervertido. Nós temos um modelo de Ministério Público que, no âmbito do exercício da acção penal, se pauta pela defesa da legalidade estrita, segundo critérios de objetividade, mas temos muitas situações em que o Ministério Público se comporta como se fosse parte no processo. Objetividade implica equidistância, o que é contrário a tomar partido. Penso que falta um debate que clarifique este problema e que passe, eventualmente, por uma alteração de modelo.
Como avalia a comunicação (ou falta dela) por parte do Ministério Público/PGR?
Avalio-a como mais preocupada em proteger a imagem do Ministério Público e dos seus protagonistas do que com o interesse público. Este último devia ser o fator mais relevante dessa comunicação.
Os megaprocessos são os responsáveis pela demora na Justiça Penal?
Não são os únicos responsáveis, mas são a face mediática mais visível dessa realidade. Os Tribunais têm falta de meios, o Ministério Público também e não é com o encurtamento de garantias processuais que este problema se resolve.
A solução pode passar por ‘partir’ esses megaprocessos em vários, mais pequenos?
Sim. A lei, tal como está, já permite isso.
Existe atualmente uma espécie de perseguição a políticos por parte do Ministério Público?
Não. Se eu acreditasse nisso teria de mudar de profissão e, muito provavelmente, de país.
A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública, muito alimentada pelos comentadores televisivos residentes. Como explicar ao cidadão comum que não é assim que se faz Justiça?
A necessidade de compreensão da justiça foi uma das coisas que me motivou a começar a ir à televisão. Se a justiça não é compreendida, não pode ser aceite e a falta de aceitação da auto crítica da justiça implica a desagregação do nosso modelo de sociedade. Eu penso que a opinião, que muitos, infelizmente, têm, de que a justiça só se faz condenando, não deriva tanto de certos comentadores, mas do contexto que estamos a atravessar, que é um contexto de condenação das elites que trouxeram o mundo aos tempos conturbados que vivemos. Daí que essa opinião vise, particularmente, processos em que estão em causa pessoas que tiveram qualquer tipo de poder. Temos de contrariar esta tendência e isso depende de cada um de nós, na nossa esfera de atuação.
Sabemos que a Justiça não é eficiente. Mas é independente?
Falo do MP e dos juízes. Da minha experiência, entendo que sim. Entendo que, por muita coisa que possa criticar-se nas magistraturas (e na advocacia, já agora) se há coisa que têm sido garantida é a independência. Quando me refiro à independência, tenho presente a equidistância e a atuação de acordo com critérios de legalidade. Coisa diversa é a de saber se as magistraturas são influenciadas, na formação das suas convicções, pelo que se passa no espaço público. E a resposta que tenho para isso é a de que sim. Mas uma coisa é o “comentadeirismo”, outra coisa, o Direito Penal. O primeiro é uma questão de opinião. Quando ao segundo, a formação de opinião implica estudar e pensar.
As reivindicações dos funcionários judiciais são justíssimas. Só quem não conhece a realidade dos tribunais pode pensar de outra maneira. A greve intermitente teve e tem um impacto enorme nas pendências judiciais, isto é, no tempo e na efetividade da justiça. Não coloco à cabeça o problema de termos profissionais que não se sentem valorizados e respeitados, apesar de ele ter de ser encarado, porque, da minha experiência, a maior parte das pessoas são competentíssimas e têm brio e continuam a trabalhar apesar dessa circunstância.
A lei do lobby vai ajudar a esclarecer e tornar certos contextos mais transparentes?
Depende das soluções que preconizar. Penso que a documentação pública do processo legislativo (que, em parte, já existe) é irrenunciável, mas o mais difícil parece-me a questão dos registos dos contactos com os lobbystas. No nosso país, há muitas coisas a resolverem-se, infelizmente, com contactos pessoais privilegiados, que escapam a qualquer mecanismo de escrutínio. Sinceramente, não sei como isto se resolve.
O que pode ser melhorado para não termos processos a durarem tantos anos?
A aplicação da lei que já existe, e que permite a separação de processos. Eu acrescentar-lhe-ia uma intervenção obrigatória do juiz de instrução criminal, nas situações em que os inquéritos ultrapassassem os prazos máximos de duração, para efeitos de avaliação da possibilidade de separação e que, ouvindo o Ministério Público, o juiz pudesse decidir separar.
Se fosse Ministra da Justiça, que medida tomaria em primeiro lugar?
Tentaria resolver o problema enorme que têm os funcionários judiciais. As suas reivindicações são justíssimas. Só quem não conhece a realidade dos tribunais pode pensar de outra maneira. A greve intermitente teve e tem um impacto enorme nas pendências judiciais, isto é, no tempo e na efetividade da justiça. Não coloco à cabeça o problema de termos profissionais que não se sentem valorizados e respeitados, apesar de ele ter de ser encarado, porque, da minha experiência, a maior parte das pessoas são competentíssimas e têm brio e continuam a trabalhar apesar dessa circunstância. Eu cheguei a ver funcionários a fazerem grave de zelo em que a única coisa que não faziam eram as diligências. Continuavam a trabalhar na secretaria. Nos dias normais, a tramitação dos processos é muitas vezes feita fora de horas, porque não há funcionários em número suficiente. A situação atual é insustentável.
O segredo de justiça, na forma como está, deveria pura e simplesmente desaparecer?
Da forma como está, o segredo de justiça é um embuste. Não serve a defesa dos Arguidos e é mais violado do que a Constituição no conto do Brito Camacho.
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“As reivindicações dos funcionários judiciais são justíssimas”, diz Ana Rita Duarte Campos, sócia da Abreu Advogados
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