Mais concentrada, espanhola e sem banqueiros. O que mudou na banca em 50 anos

Cinquenta anos depois do 25 de abril, a banca reconfigurou-se. Os grupos familiares perderam influência. Os banqueiros deram lugar aos gestores. Regulação e concorrência apertam mais do que nunca.

Os últimos anos foram marcados por uma “normalização” na banca portuguesa, depois de uma década completamente desastrosa para o setor. Mas a perspetiva de venda do Novobanco e as alterações na estrutura acionista no BCP – conjugadas com aceleração da inovação tecnológica — vão precipitar uma nova fase no sistema financeiro nacional que mudou do dia para a noite nos últimos 50 anos.

Desde as nacionalizações que marcaram o início da democracia após o 25 de abril de 1974 até à crise bancária da década de 2010, poucos foram os setores da economia portuguesa que tiveram mudanças tão profundas em meio século como o setor financeiro. Que não vão ficar por aqui.

As famílias portuguesas mais influentes, como os Espírito Santo, Mello e Champalimaud, que dantes controlavam os principais bancos, deram lugar àquilo que se pode chamar de mercado, com investidores como a Lone Star, Fosun ou Sonangol. Pelo meio, os bancos tentaram uma expansão internacional que não deu resultados. Seguiu-se uma série de escândalos e falências em catadupa no âmago da grave crise financeira mundial de 2008 e do resgate da troika em 2011. Com custos tremendos para os contribuintes: mais de 20 mil milhões de euros em ajudas públicas em nome da estabilização de um setor vital para a economia portuguesa. Fora os lesados, que são mais de 14 mil já reconhecidos a reclamarem 7,6 mil milhões.

No processo de reestruturação que teve lugar na última década e meia, perderam-se milhares de empregos, fecharam-se centenas de balcões e os bancos desfizeram-se de muitos negócios internacionais. Os espanhóis ganharam influência no mercado português, enquanto os chineses e angolanos, que pareciam vir a ser a âncora da base de capital da banca portuguesa, estão agora na porta de saída. A concorrência das Big Tech está a acelerar as mudanças. O que seguirá?

A vaga de nacionalizações

O 25 de abril de 1974 trouxe uma vaga de nacionalizações no setor financeiro que veio a concretizar-se no ano seguinte.

Até então eram seis os principais grupos financeiros de referência em Portugal: CUF, Espírito Santo, Champalimaud, Banco Português do Atlântico, Borges & Irmão, BNU e Fonsecas & Burnay.

Banco Burnay (Fonte: Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulkbenkian)

Com o objetivo de “concretizar uma política económica antimonopolista que sirva as classes trabalhadoras e as camadas mais desfavorecidas da população portuguesa, no cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas”, segundo o decreto-lei de 14 de março de 1975, 14 bancos comerciais, duas casas bancárias e a Companhia Geral do Crédito Predial passaram para a esfera pública, onde já se encontrava a Caixa Geral de Depósitos (CGD).

A medida foi naturalmente contestada por quem se viu expropriado, mas o Conselho da Revolução justificou-a com a necessidade de ter o “controlo efetivo do poder económico” para salvaguardar os “superiores interesses da Revolução” que tinham sido colocados em causa na tentativa de golpe de Estado levada a cabo por António de Spínola a 11 de março.

De fora das expropriações do Estado português ficaram apenas o Crédit Franco-Portugais, os departamentos portugueses do Bank of London & South America e do Banco do Brasil e ainda as caixas económicas e o sistema de caixas de crédito agrícola mútuo.

A Constituição de 1976 e leis seguintes vieram confirmar esta mudança estrutural no setor financeiro ao proibir a reprivatização dos bancos e ao reservar a atividade bancária exclusivamente à iniciativa pública.

Das reprivatizações à consolidação

Durante pouco mais de uma década a banca era o Estado e o Estado era a banca. Até este modelo ter sido colocado em causa com a processo de adesão de Portugal à CEE. Foi neste contexto que a revisão constitucional de 1982 reabriu a porta do setor à iniciativa privada. E que, anos mais tarde, em 1989, uma nova revisão da Constituição permitiu a reprivatização dos bancos nacionalizados na década anterior.

Por estes anos nasceram os bancos BCP e BPI (1985), dois dos grandes bancos nacionais que resistem até aos dias de hoje. A própria Associação Portuguesa de Bancos (APB) foi fundada em outubro de 1984, com 17 bancos fundadores.

Bancos estrangeiros como o Citibank, Deutsche Bank e Banco de Tóquio começaram a ganhar relevância no mercado nacional. O Santander entrou em Portugal em 1988 com a aquisição de uma participação de 10% no Banco de Comércio e Indústria, que subiu para 78% em 1993. Em 2000, na sequência de um acordo com António Champalimaud e com a CGD, os espanhóis adquirem o controlo do Banco Totta, que detinha o Crédito Predial Português. Hoje em dia, disputa com o BCP o título de maior banco privado em Portugal, depois de ter ficado com várias instituições, incluindo o Banif, também ele nascido em 1988 e falido em 2015.

Com o regresso da iniciativa privada, o Grupo Espírito Santo tornou a Portugal na década de 80, formando uma aliança com os franceses do Crédit Agrícole que permitiu recuperar o BES no início dos anos 90.

Mais reversões de nacionalizações de 1975 tiveram lugar nesta altura: Banco Totta & Açores, Banco Português do Atlântico, Banco Fonsecas & Burnay, Crédito Predial Português, União de Bancos Portugueses, Banco Pinto & Sotto Mayor e Banco de Fomento e Exterior.

Para muitas instituições a opção foi a bolsa de valores, num contexto favorável de incentivos fiscais criados pelo Governo de Cavaco Silva, no âmbito da Lei Sapateiro. O setor financeiro chegou a dominar a bolsa de Lisboa, mas hoje a sua presença resume-se ao BCP, o último dinossauro.

Até final da década de 90, já no contexto da adesão de Portugal à Zona Euro, o setor voltou a fervilhar com o nascimento de pequenas instituições (como o Finibanco, BPN, BPP, Big, por exemplo) e com uma intensa atividade de fusões e aquisições no maior processo de consolidação até hoje registado.

Neste período, o BCP adquiriu o Banco Português do Atlântico (na altura o maior banco privado português), o Banco Pinto & Sotto Mayor, o Banco Chemical e o Banco Mello (incluindo a União de Bancos Portugueses). O BPI comprou o Banco Fonsecas & Burnay, o Banco de Fomento e Exterior e o Banco Borges & Irmão. A CGD ficou com o Banco Nacional Ultramarino. Para lá do negócio do Santander com o Totta.

Banca nunca esteve tão concentrada

Fonte: BCE

Expansão internacional e tombo

A par da consolidação, a primeira década de 2000 ficou marcada pelos planos de expansão dos bancos portugueses, à medida que o mercado português ia ficando curto para as ambições dos banqueiros.

Muitos rumaram aos mercados de língua oficial portuguesa, como Angola e Moçambique, dada a afinidade histórica com estes países. O BCP entrou na Grécia, Roménia e Polónia — mantém-se apenas na Polónia, mas é um mercado que tem dados muitas dores de cabeça por causa do tema dos créditos em francos suíços.

Mesmo dentro do mercado português tiveram lugar movimentações pela liderança e disputas acionistas. Sobretudo com epicentro no BCP. Em 2006, lançou uma oferta pública de aquisição sobre o rival BPI, mas o processo não foi bem-sucedido. Em 2007, foi palco de uma guerra de acionistas. De um lado Jardim Gonçalves, histórico ex-presidente do BCP, e acionistas de referência como a construtora Teixeira Duarte. Do outro Paulo Teixeira Pinto, que havia substituído Jardim Gonçalves dois anos antes, e o “grupo dos sete”, como ficaria conhecido o grupo composto pelos acionistas Manuel Fino, Vasco Pessanha, Diogo Vaz Guedes, Bernardo Moniz da Maia, Filipe de Botton, João Pereira Coutinho e Joe Berardo. Jardim Gonçalves venceu a guerra, mas vinham aí desafios que poriam à prova a capacidade do banco.

Se o setor já estava quente por causa de tricas internas, o ano de 2007 trouxe um capítulo negro para a banca mundial e cujas consequências são sentidas ainda nos dias de hoje: a crise do subprime nos EUA que culminou na falência de várias instituições financeiras americanas.

Por cá, os sinais de primeiras dificuldades foram dados pelo BPN, que acabou nacionalizado em outubro de 2008. “Podia ser uma fagulha que, num ambiente carregado de combustível, podia provocar um incêndio de proporções maiores”, justificou o ministro das Finanças da altura, Teixeira dos Santos, sobre a decisão de não deixar cair o banco de Oliveira e Costa. Outros bancos viriam a falir com estrondo, mas ninguém previa o que vinha aí. O BPP caiu em 2010.

Ainda a refazerem-se da crise financeira, os bancos portugueses foram sacudidos pela crise da dívida soberana que atirou Portugal para um resgate da troika de 78 mil milhões de euros em abril de 2011.

Parte da ajuda internacional foi justamente para resgatar os bancos: Caixa (900 milhões de euros), BCP (3.000 milhões), BPI (1.500 milhões) e Banif (400 milhões) tiveram de se socorrer da linha criada para apoiar o sistema financeiro através dos chamados Cocos. A crise expôs a fragilidade dos bancos nacionais com muita dívida pública, altamente expostos ao setor imobiliário e pressionados por empréstimos de alto risco a grandes grupos económicos que viriam a falir também. Tinham uma bomba de crédito malparado prestes a explodir.

Do lado do BES, Ricardo Salgado sempre disse que o seu banco não ia ter de pedir este auxílio, mas acabou arrastado pelos problemas financeiros do Grupo Espírito Santo numa espetacular implosão que arrastou consigo outras grandes empresas, como a Portugal Telecom. Em agosto de 2014 foi resolvido pelo Banco de Portugal, dando lugar ao Novobanco.

Em dezembro de 2015, foi a vez de o Banif desaparecer do mapa da banca portuguesa, depois de o Banco de Portugal ter aplicado uma medida de resolução semelhante ao que aplicara ao BES. Decidiu-se pela venda do banco fundado por Horácio Roque ao Santander Totta, por 150 milhões de euros, depois de o processo de venda voluntária ter falhado.

No dia 3 de agosto de 2015, Carlos Costa anunciou a medida de resolução ao BES. Tiago Petinga/Lusa 3 agosto, 2015

Injeções milionárias e reestruturações pesadas

A década de 2010 marcou o período mais negro para a banca portuguesa. Quem não faliu teve prejuízos expressivos e, em qualquer dos casos, houve injeções massivas de capital dos cofres públicos.

As últimas contas dão a ideia do esforço dos contribuintes para apoiar a banca: os apoios públicos ao setor financeiro ascendem aos 21,9 mil milhões de euros desde 2008, de acordo com o último balanço do Tribunal de Contas. A fatura não está fechada.

Na Caixa, a recapitalização de 2017 envolveu quatro mil milhões de euros do erário público, incluindo uma injeção de dinheiro fresco de 2,5 mil milhões. Parte desta recapitalização já foi saldada, entretanto.

No Novobanco, que se salvou na 25.ª hora com a venda ao fundo americano Lone Star em outubro de 2017, somaram-se injeções de 3,4 mil milhões de euros ao abrigo do mecanismo de capital contingente. Depois dos 4,9 mil milhões injetados na resolução do BES. O Fundo de Resolução vai demorar décadas a pagar os empréstimos ao Estado.

As injeções de capital tiveram uma moeda de troca exigida por Bruxelas (e também forçada da digitalização): profundas reestruturações. Entre 2011 e 2021, o setor eliminou mais de 21 mil postos de trabalho, o equivalente a 27% da força de trabalho. Foram encerradas mais de 2.700 balcões (redução de 44% numa década). Os bancos desfizeram-se dos seus negócios internacionais que hoje praticamente se resumem a Angola e Moçambique (e Polónia no caso do BCP).

Neste período, os outros bancos também tiveram mudanças relevantes nas suas estruturas acionistas. O BPI foi alvo de Oferta Pública de Aquisição (OPA) bem-sucedida dos espanhóis CaixaBank em 2016. Já com a Sonangol a bordo desde 2008, o BCP viu entrar os chineses da Fosun de forma a livrar-se da onerosa ajuda do Estado.

O setor atravessou um longo caminho das pedras e acumulou prejuízos de que só agora está a recuperar, muito à boleia da escalada das taxas de juro.

O que se segue?

Cinquenta anos depois do 25 de abril, a banca tem uma face reconfigurada. Os grupos familiares perderam influência. Os banqueiros como Ricardo Salgado, Artur Santos Silva ou Jardim Gonçalves deram lugar a gestores. A regulação está mais apertada e intrusiva do que nunca. A concorrência deixou de ter fronteiras e o mercado passou a ser disputado por grandes tecnológicas como Apple, Google e Samsung que deixam os bancos à beira de uma crise existencial.

É num contexto de lucros em níveis recorde que se avizinham mais mudanças nos maiores bancos. Desde logo o Novobanco está à venda pelos americanos, estando em cima da mesa um IPO ou a venda direta a outro investidor. Fala-se com insistência nos bancos espanhóis, o que iria acentuar a “espanholização” da banca portuguesa que acaba de ter um novo player importante: o Abanca, que vai ficar com o Eurobic para ser o oitavo maior em Portugal, atrás dos cinco grandes, Banco Montepio e Crédito Agrícola.

O BCP é outra das possibilidades para esta reconfiguração envolvendo o Novobanco. A Sonangol e a Fosun dão cada vez mais sinais de que o tempo no banco português chegou ao fim e querem aproveitar a alta do setor para desinvestirem em Portugal.

No meio disto, a Caixa terá uma palavra a dizer. Tem muita liquidez. E a acreditar nas palavras de Paulo Macedo poderá ter um papel decisivo nas próximas movimentações: “Não se justifica um banco público sem poder de ação no mercado. Um banco público justifica-se ter porque pode ser um player no mercado e um interveniente no mercado. Nesse sentido, a Caixa não é indiferente à consolidação”.

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