Despesa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa aumenta 20% em seis anos, mas receitas caíram

A debilidade financeira da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa está no centro das atenções e levou o Governo a exonerar a administração. Como evoluiu a saúde financeira da instituição desde 2017?

O Governo decidiu exonerar toda a mesa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), incluindo a provedora Ana Jorge, acusando a administração de ser “incapaz de enfrentar os graves problemas financeiros e operacionais da instituição” e de “atuações gravemente negligentes”, que poderão comprometer a “curto prazo” a “fundamental tarefa de ação social que lhe compete”. O investimento na internacionalização da Santa Casa no Brasil já ‘custou’ 50 milhões de euros (pelo menos). Mas, afinal, como evoluiu a saúde financeira da instituição fundada em 1498 no espaço de seis anos, período em que foi liderada por Edmundo Martinho?

Com um orçamento anual de cerca de 200 milhões de euros, a Santa Casa beneficia de várias fontes de financiamento, nomeadamente das receitas proveniente dos jogos sociais, dos rendimentos provenientes do património imobiliário, bem como de doações. De acordo com o último relatório de Gestão e Contas apresentado, referente a 2022 e que foi alvo de uma correção depois da autoria pedida pelo anterior Governo, a SCML contava com cerca de 6.080 funcionários, dos quais 561 (9%) eram dirigentes. Se a comparação for feita com os seis anos anos anteriores a diferença é significativa: em 2017 tinha 5.033, dos quais 309 (6%) eram dirigentes.

O momento de “viragem” da saúde financeira da instituição, que conta com mais de cinco séculos de existência, coincidiu com o primeiro ano de pandemia, com a Santa Casa a passar de lucros a prejuízos. Em 2020, a SCML apresentou prejuízos de 52,8 milhões de euros, valor que contrasta com os lucros de 37,5 milhões de euros no ano anterior, com os lucros de 33,3 milhões de euros em 2018 e de 42,4 milhões em 2017.

No segundo ano de pandemia, em 2021, a SCML viu os prejuízos encolherem para 39,8 milhões e em 2022 para 12,4 milhões de euros (este resultado foi corrigido na sequência da auditoria, dado que inicialmente o primeiro relatório apontava para lucros de 10,9 milhões), ainda que neste último ano tivesse orçamentado já um resultado positivo de 6 milhões de euros. De acordo com o novo relatório, este resultado foi “fortemente influenciado por perdas de imparidade associadas às perdas de valor decorrentes dos negócios de internacionalização e pela redução do justo valor das propriedades arrendadas“. Mas, afinal, como evoluíram as receitas e a despesas da SCML desde 2017?

Receitas caem quase 8% em seis anos

No que concerne às receitas correntes, atingiram os 241,2 milhões de euros em 2022, isto é, uma quebra de quase 8% face aos 261,8 milhões de euros alcançados em 2017 e abaixo dos 291 milhões de euros orçamentados para 2022. Através da análise ao relatório de Gestão e Contas é possível verificar que esta rubrica tem recuperado desde o “rombo” provocado no primeiro ano de pandemia, mas está ainda longe do alcançado antes da Covid. Já se a comparação for feita com 2021, esta rubrica aumentou em 16,5 milhões de euros (7,4%) à boleia “sobretudo do acréscimo em 8,6 milhões de euros da distribuição dos resultados dos jogos sociais”.

A principal “fonte” de receitas da SCML diz respeito aos jogos sociais, que em 2022 representavam cerca de 81% do total da receita corrente, ascendendo a 195 milhões de euros. No entanto, apesar de esta rubrica ter aumentado cerca de 4,6% face aos 186,5 milhões registados no ano anterior, ficaram longe dos 208,5 milhões de euros estimados para esse ano e dos resultados alcançados no pré-pandemia (em 2019 chegaram aos 226,1 milhões).

Já no que diz respeito às restantes rubricas que compõe as receitas correntes, a saúde representa a segunda maior fatia, com as receitas a ascenderem a 25,1 milhões de euros em 2022, isto é, um aumento de 20% face a 2021 e de 36,4 face a 2017. Ainda assim, ficaram abaixo do orçamentado para 2022.

Apesar de ter o exclusivo da exploração dos jogos, a instituição apenas recebe 26,52% das receitas líquidas geradas, sendo este dinheiro usado “para prosseguir os seus fins estatutários, que abrangem cada vez mais áreas de intervenção, sendo que as principais são a ação social (lares, centros de dia, resposta de emergência, apoio a idosos, proteção e promoção de crianças no distrito de Lisboa, alimentação, entre outras) e saúde (três hospitais, duas unidades de cuidados continuados, várias unidades de saúde de proximidade, saúde oral gratuita para jovens até aos 18 anos em Lisboa, um centro médico, entre outros equipamentos e respostas)”, adianta fonte oficial da SCML, ao ECO.

Já o remanescente é distribuído pelos restantes beneficiários, como é o caso do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (32,98%), o Ministério da Saúde (15,70%), o Ministério da Educação (10,29%) ou o Governos regionais da Madeira e dos Açores (2,47% e 2,38%), entre outras entidades públicas, e tal como definido no Decreto-Lei 56/2006.

Em 2022, foram distribuídos 650 milhões de euros pelos vários beneficiários”, revela ainda fonte oficial da SCML, ao ECO, sinalizando que “fora do âmbito deste Decreto, ainda é distribuído por vários setores da sociedade (outras áreas da Santa Casa, Fundo de Salvaguarda do Património Cultural e Entidades do Desporto) mais cerca de 42 milhões de euros”.

“Na prática, as receitas dos jogos sociais do Estado são devolvidas em quase 100 por cento à sociedade através das diferentes vias acima assinaladas”, remata.

Raspadinha é “prémio estrela” e Totobola perde gás

Entre os jogos explorados pela Santa Casa, a famosa “raspadinha” é o ‘prémio estrela’, com as vendas brutas deste jogo a atingirem os cerca 1,7 mil milhões de euros em 2022, de acordo com o Relatório e Contas 2022 Jogos Santa Casa. Trata-se de mais de metade das vendas totais brutas de todos os jogos explorados pela Santa Casa, cujo montante rondou os três mil milhões de euros em 2022. Segue-se o Euromilhões e M1lhão (com as vendas brutas a atingirem os 646 milhões de euros) e o Placard (com 498 milhões).

Numa altura, em que os jogos sociais explorados pela SCML estão sob a concorrência das apostas online, um dos projetos estratégicos definidos para 2022 era transformar os jogos “numa referência da indústria 4.0, digital e socialmente responsável”, segundo consta no último relatório de Gestão e Contas apresentado. Por isso, foram lançados 61 novos tipos de aposta no Placard, o que permitiu um “acréscimo de 26,3% na receita média diária deste jogo de 15,5% na média diária de apostadores ativos”.

No polo oposto, e com o menor peso nas vendas brutas, está o Totobola, cujas vendas brutas ascenderam a apenas cinco milhões de euros e o que representa uma quebra de 20% face a 2021.

Despesa aumenta 20% em seis anos pressionada pela ação social e saúde

Já no que concerne à despesa corrente, atingiu os 252,5 milhões de euros em 2022, isto é, um aumento de quase 20% face aos 211,1 milhões de euros registados em 2017. Através da análise do relatório de Gestão e Contas, é possível ainda constatar que esta rubrica tem aumentado consecutivamente entre 2017 e 2021, tendo recuado ligeiramente no último ano analisado (menos 2,8 milhões de euros, o equivalente a uma quebra de 1,1%).

As principais áreas da despesa corrente são a ação social e a saúde que, no seu conjunto, representavam em 2022 78% do total da despesa da SCML. Entre 2017 e 2022, a despesa da instituição na área da saúde social cresceu quase 17%, enquanto com a saúde aumentou cerca de 21,5%.

Já no que toca à despesa com capital (investimento), a evolução é mais desigual. No entanto, perante a análise aos últimos seis anos é possível constatar que foi entre 2017 e 2018 que teve a maior queda: se, em 2017, o investimento rondou os 63,3 milhões de euros, no ano seguinte encolheu para 26,9 milhões de euros, isto é, menos 36,4 milhões. Já se a comparação for entre 2017 e 2022 registou-se uma quebra de 58%, tendo atingido nesse último ano os 26,9 milhões de euros.

No que concerne à tipologia de investimento, o relatório de Gestão e Contas referente a 2022 destaca que só nesse ano foram feitos investimentos financeiros no montante de 18,5 milhões de euros (valor que contrasta com os 12,8 milhões registados em 2021), dos quais 9,5 milhões para a Santa Casa Global ( criada para gerir as lotarias e jogos de apostas no mercado externo) e 8 milhões para o Hospital Cruz Vermelha, onde a SCML tem uma participação de 55%.

Por fim, e no que toca aos gastos com pessoal, estes têm aumentado consideravelmente nos últimos anos, ainda que entre 2021 e 2022 se tenham verificado uma quebra ligeira. Se em 2017, os gastos com pessoal rondavam os cerca de 126 milhões de euros, em 2022 atingiram os 147,6 milhões de euros. Contas feitas, trata-se de um aumento de cerca de 17%.

Estes são os últimos relatórios públicos conhecidos. Segundo o Público, a Santa Casa terá fechado o exercício de 2023 com resultados líquidos positivos de 10 milhões de euros, mas no primeiro trimestre deste ano terá tido receitas abaixo do orçamentado em mais de 20 milhões de euros. Perante a debilidade financeira da instituição, o novo Governo reuniu com a (agora exonerada) provedora Ana Jorge, tendo-lhe exigido um plano de reestruturação urgente, para que fosse apresentado no espaço de duas semanas, mas a antiga ministra da Saúde que não conseguiria cumprir o prazo. Além disso, ter-lhe-á sido pedido outras informações e documentos, com o relatório de contas de 2023, mesmo que provisório, que ainda não foi apresentado.

O Governo considerou que a atual administração e a provedora Ana Jorge não davam “garantias da salvaguarda das suas funções sociais”, tendo por isso, demitido a mesa da SCML. e assegura que vai “tentar escolher uma equipa que dê garantias de total sintonia nos propósitos e orientações do Governo e da respetiva tutela”. Já Ana Jorge, que tinha assumido funções há cerca de um ano, denunciou, numa carta aos trabalhadores, a forma “rude e caluniosa” com que foi justificada a sua exoneração e garante que vai contar a sua verdade “em tempo e em sede própria”. O tema está no “centro do furacão”, com os partidos de esquerda a acusarem o Executivo de saneamento político e há quem peça audições da ministra do Trabalho e da ex-provedora. Os líderes parlamentares do PSD e CDS já asseguraram que vão viabilizar os pedidos.

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