Paulo de Sá e Cunha, of counsel da Abreu Advogados e presidente do Conselho Superior da OA, considera que o MP podia ser um órgão da administração pública com características especiais.
O advogado é consultor na Abreu Advogados desde maio de 2023, tem mais de 30 anos de experiência e é reconhecido como penalista. Logo após cessar funções na Cuatrecasas, onde era sócio há 16 anos, Paulo de Sá e Cunha aceitou assessorar a ex-CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener, em questões de contencioso penal. Recentemente, aceitou patrocinar o ex-secretário de Estado da Justiça, João Tiago Silveira, no processo da Operação Influencer e o ex-Presidente da Câmara Municipal do Funchal, Pedro Calado, na Operação Zarco.
É também advogado da juíza Fátima Galante na Operação Lex, de Manuel Maria Carrilho no caso de violência doméstica, de Manuel Abrantes no processo Casa Pia, de Vítor Raposo no processo Homeland, que envolvia ainda Duarte Lima, de Sofia Fava, ex-mulher de Sócrates, na Operação Marquês, do ex-administrador Pedro Rezende da EDP, no caso dos CMEC, do Sporting no caso E-toupeira, de dois arguidos chineses na Operação Labirinto (Zhu Xiaodong e mulher), das empresas do grupo Altri, de Pedro Franco (diretor do Instituto Nacional de Sangue) e Miguel Galvão (do Hospital Santa Maria)- no conhecido processo dos hemofílicos, que envolvia ainda Leonor Beleza – e de Luís Cunha Ribeiro, no processo O RH +. O advogado é ainda presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados.
Já fez um ano que tomou posse enquanto presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. Qual é o balanço?
O balanço é um balanço ainda algo incaracterístico. Este ano permitiu-me perceber que a Ordem dos Advogados é uma instituição vetusta, não no sentido depreciativo, mas no sentido descritivo do termo. É muito antiquada, funciona em moldes do século passado, em muitos aspetos, e a ação disciplinar e a ação do Conselho Superior, no fundo, ressentem-se desses males. Há coisas corrigíveis, mas há coisas que o são mais dificilmente. Todo o regulamento disciplinar está cheio de armadilhas que levam a que os processos disciplinares se arrastem demasiado tempo, quase tanto tempo como o dos processos penais.
E, portanto, o balanço é ainda provisório. De qualquer modo, estou a gostar das funções, a minha equipa é muito boa e tem trabalhado muitíssimo bem. Tivemos pelo meio uma ajuda, entre aspas, que foi a Lei da Amnistia e que nos permitiu resolver processos pendentes há muito tempo.
Quando diz que a OA está a funcionar ainda muito como se fosse do século passado, fala do quê?
Os processos são organizados em papel, ocupam demasiado espaço. as notificações têm um formalismo que podia ser aligeirado. Nós poderíamos notificar os nossos colegas para o email da Ordem ou para um email registado na Ordem e a questão seria resolvida dessa maneira. Mas ainda temos de recorrer a notificações em papel. Muitas notificações não chegam aos destinatários. Muitas vezes, quando há muito tempo entre o início dos processos e o fim, quando se envia uma notificação o advogado do arguido ou o participante já não moram nas mesmas moradas e as cartas são devolvidas. Portanto, é uma confusão monumental que eu acho difícil de compreender em 2024.
Qual é o tipo de procedimentos disciplinares que mais são aplicados aos advogados?
Há muitos. Há comportamentos graves, mas felizmente esses são poucos. E depois há muitas questões que eu até gostaria que não chegassem ao plano disciplinar e que são coisas de pequenos desentendimentos entre advogados. Enfim, eu não vou obviamente identificar ninguém, mas há uma “clientela”, chamemos-lhe assim, muito regular do Conselho Superior e dos Conselhos de Deontologia, que são aqueles litigantes compulsivos entre advogados, litígios de uns contra os outros com muita frequência e isso, obviamente, é uma perda de tempo quando se tem assuntos muito importantes e sérios em mãos. Em que 90% desses processos têm escassa relevância, mas 10% tem grande relevância.
E a questão dos laudos?
O Conselho Superior também emite laudos de honorários. Aí temos grandes atrasos. Efetivamente, é uma questão que me preocupa, porque temos que contratar relatores-
-adjuntos dos conselheiros e há uma enorme dificuldade em fazê-lo precisamente porque a Ordem segue as regras da contabilidade pública e segue os procedimentos concursais para admitir pessoas.
Acho que muitas vezes o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público é uma espécie de porta-voz da própria estrutura do Ministério Público, que concorre e ultrapassa quem é o titular legítimo da hierarquia, que é o Procurador-Geral da República.
E a sua relação com a senhora Bastonária. Está tudo a correr bem?
Para surpresa de muita gente, é uma excelente relação.
Pergunto isto porque as relações da Bastonária não são boas com todos os órgãos, nomeadamente o Conselho Regional de Lisboa…
A minha relação, quer pessoal quer institucional, com a senhora Bastonária tem sido muitíssimo boa. Talvez pela circunstância de sermos ambos pessoas simples e de bom trato.
Não complicam, digamos assim?
Não. Como a Filipa sabe, concorremos em listas diversas. E havia um certo receio de que continuássemos com o clima de desentendimento institucional que vinha do passado. Os presidentes de Conselho Superior que me antecederam tiveram sempre más relações com os Bastonários. E aí eu e a senhora Bastonária estamos em sintonia total. Nós achamos que as nossas funções e a dignidade institucional são mais importantes.
Mas muitas vezes, depois de eleições na OA, os vencidos acabam por fazer ainda um bocadinho de campanha eleitoral nas redes sociais….
Isso é particularmente notável nestes últimos anos e, enfim, é uma das consequências, a meu ver má, das redes sociais. As redes sociais são um espaço onde se diz tudo com grande facilidade e muitas vezes perde-se o sentido institucional através dessa facilidade com que se põem fotografias, se gravam vídeos e fazem coisas que têm depois um público imediato e muito grande, que muitas vezes não é o destinatário certo. Certo para aquilo que se tem a dizer e para a dignidade das funções que se está a exercer. Mas lamento que o clima institucional da Ordem, recentemente, tenha sido perturbado.
Fala de algumas assembleias gerais?
Sim. Eu, aliás, não vou às Assembleias Gerais, falha minha, porque sei que devia ir, mas acho que também não vou lá fazer nada. Não têm servido para grande coisa e é mais um aspeto do modelo organizacional da Ordem que tem de ser revisto. Hoje não faz sentido assembleias gerais presenciais para um universo que é de mais de 30.000 advogados. Temos que desenvolver mecanismos de participação online, de votação online, enfim, temos que vir para o século XXI.
Um dos temas que tem provocado alguma polémica é o tema que é muito querido aos advogados da Caixa de Previdência. Pergunto a sua opinião relativamente à cobrança coerciva de dívidas.
A minha posição é claramente favorável. Aquilo que está a ser feito é indispensável para assegurar a sustentabilidade da Caixa. Eu sou um dos defensores da CPAS. Esta deve manter-se autónoma, independente, e esse é um dos pontos de divergência profunda com a senhora Bastonária. Não vejo com bons olhos uma integração da Caixa na Segurança Social. A nossa previdência não tem um cariz assistencialista, não foi criada nem pensada para isso. Foi criada e pensada para que os advogados tivessem uma reforma condigna, através de um sistema mutualista. Eu não vejo porque é que há-de ser um obstáculo que advogados que estão ao mesmo tempo inscritos na Caixa não possam estar, enquanto profissionais liberais, inscritos na Segurança Social. Eu percebo que durante a pandemia a nossa classe tenha sofrido muito. Fomos a única classe profissional que não teve nenhum apoio do Estado e ainda por cima muitos colegas, num momento particularmente difícil, depararam com uma grande insensibilidade quer do Bastonário quer da CPAS.
Quem não tem condições para suportar os descontos para a Caixa de Previdência não pode ser advogado. É uma realidade triste e dura, mas é a que é. Porque não é aceitável que um conjunto vastíssimo de colegas, que é cumpridor, que cumpre pontualmente os pagamentos à Caixa, veja a sustentabilidade da instituição e as suas próprias reformas colocadas em risco por um conjunto vasto de advogados que não pagam, pura e simplesmente.
O MP não é um órgão de soberania, nem deve ser encarado como órgão de soberania. Acha, por exemplo, que aquela operação que se fez na Madeira revela falta de meios? Eu acho que não. Acho que revela excesso de meios.
Então a minha pergunta seguinte já está respondida relativamente ao comunicado que a senhora Bastonária enviou…
Há colegas que têm mais capacidade do que outros e este tipo de cobrança coerciva deve distinguir e deve atender à diferente situação dos advogados. Nesse sentido, a senhora Bastonária tem razão. O que eu acho é que a Caixa de Previdência zelou pelos interesses destes ao permitir precisamente o recurso a uma linha de crédito extremamente favorável e que se pode prolongar por 180 meses, creio eu.
Vamos agora falar um bocadinho daquilo que foi o poder legislativo nos últimos meses. A própria Bastonária reivindica, digamos assim, que se volte atrás na questão dos estatutos dos advogados e da lei dos atos próprios. Eu pergunto se, na prática, exercendo o mandato que está a exercer, tem notado algumas diferenças?
Ainda é muito cedo para notar as diferenças, porque o novo regime entrou em vigor agora.
E ainda estamos numa fase transitória, precisamente de adaptação dos órgãos da Ordem à nova estrutura. Isso terá que ser feito rapidamente até ao fim deste ano, sob pena de haver um obstáculo sério aos estágios e àqueles que querem ingressar na profissão e que, portanto, vão ter que ver essa situação resolvida o mais rapidamente possível. Eu não gosto nada das alterações que foram feitas. Com toda a franqueza, sempre o disse. Disse-o até na campanha eleitoral. O ponto que me parece mais crítico e mais grave é o de nós passarmos a ter nos órgãos da Ordem – inclusivamente nos órgãos disciplinares e num órgão de supervisão que é criado – membros que não são advogados. Isso é muito mau. A Ordem sempre se caracterizou pela sua autonomia e pela sua independência face ao poder político e face aos poderes públicos em geral. Muito me surpreende o Partido Socialista, um partido que teve nos seus dirigentes distintíssimos advogados, muitos deles já falecidos, como sabemos. E eu tenho a certeza absoluta que essas figuras históricas do Partido Socialista, que foram grandes advogados, não se reveriam minimamente nestas alterações.
O nível dos atos próprios dos advogados, de facto, é outro ponto que gera preocupação, porque não é por acaso que a Ordem dos Advogados é uma instituição pública que certifica profissionais. Quando hoje se permite que um licenciado em Direito exerça consulta jurídica é muito perigoso. Em primeiro lugar, porque o faz sem nenhum controlo disciplinar. E depois porque a consulta jurídica não é aplicar a lei. Nós temos que perceber se estamos numa situação de pré-litígio. E, se sim, que provas é que existem.
E quanto aos estágios?
Não duvido que um ano e meio de estágio é capaz de ser excessivo. Há, de facto, entraves colocados a quem quer integrar a profissão, que têm que ser aligeirados. Mas isso não significa também que se abra a porta indiscriminadamente a quem quer que seja, não é?
E a questão da remuneração, que é uma das questões que a senhora Bastonária também discorda em absoluto?
Eu tenho feito o meu percurso profissional nos últimos 17 anos em grandes sociedades de advogados e esse problema nunca se põe numa sociedade grande, porque os estagiários são sempre remunerados. Mas também reconheço que isto é uma pequena minoria. É que, de facto, em estruturas mais pequenas ou em advogados em prática individual é muito difícil assegurar estágios remunerados. Por um lado, porque sendo justo remunerar o estagiário, a verdade é que o trabalho dos estagiários durante um período, enfim, mais ou menos longo do estágio, é um trabalho improdutivo, é um trabalho imprestável e, portanto, os advogados estagiários, num determinado período de tempo, são um custo acrescido.
Há muitas vezes uma confusão entre aquilo que é a decisão política e o que é um ilícito criminal. Eu acho perfeitamente legítimo que um projeto como o da Start Campus, que é um projeto de investimento numa área do nosso território que precisa de ser desenvolvida, seja acarinhado pelo poder político.
Vamos agora falar de casos concretos e mediáticos. No caso da Operação Influencer, a Procuradora-Geral da República recusa-se a justificar publicamente um processo que levou à queda do Governo. Acha que isto revela uma crise na atuação do Ministério Público?
Bom, abstraindo do caso concreto, é óbvio que há, há muitos anos, uma crise grave na justiça penal. Agora muita gente despertou para isso. Tenho uma entrevista consigo antes da pandemia, não me lembro bem, mas é para aí de 2017/ 2018, em que fiz uma afirmação que a Filipa destacou e que foi criticada. Era mais ou menos isto: “Prefiro ter um Ministério Público controlado do que descontrolado”. Porquê? Porque já na altura estava descontrolado. Nós confundimos durante muito tempo duas magistraturas que são essencialmente diferentes. A magistratura judicial é uma verdadeira e própria magistratura. E não é por acaso que os tribunais são considerados, na nossa ordem constitucional, órgãos de soberania. Mas o Ministério Público podia ser um órgão da administração pública com características especiais.
Acho que a estrutura constitucional que nós temos é boa, mas funciona mal. É mais um caso em que há uma boa intenção e uma boa arquitetura constitucional do sistema, mas que depois, por várias razões de ordem prática e sobretudo por uma má prática, veio a conduzir ao resultado em que nós estamos hoje. Porque não há propriamente uma hierarquia. Quem está no topo da hierarquia não a assume. Por várias razões, há interferências junto da opinião pública de entidades que, a meu ver, não têm legitimidade para isso. Como os sindicatos. Também é polémico dizer isto, mas é o que eu acho. Acho que muitas vezes o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público é uma espécie de porta-voz da própria estrutura do Ministério Público, que concorre e ultrapassa quem é o titular legítimo da hierarquia do Ministério Público.
Qual é então o maior problema do Ministério Público?
Para mim, o principal problema do Ministério Público não está no seu estatuto nem está naquilo que muitas vezes se diz que é o corporativismo dos magistrados. Não é um corporativismo diferente de qualquer outra profissão. Há divergências entre grupos de magistrados do Ministério Público. Há os que vêem a instituição de uma maneira e outros que a vêem de outra. E há, de facto, uma descoordenação hierárquica forte e presente. E existe sobretudo uma péssima gestão de recursos disponíveis.
Recursos a serem mal geridos?
Nós vamos sempre ter poucos recursos. Portugal não é um país rico e não vale a pena iludirmo-nos com isso. Portanto, temos que gerir os recursos disponíveis da investigação criminal e estabelecer prioridades e desenvolvê-las de forma consequente e eficaz. E atenção que a política criminal não é definida pela Procuradoria-Geral da República nem pelo Ministério Público. E, lá está, precisamente por isso é que esta magistratura, ao contrário dos juízes, não é um órgão de soberania, nem deve ser encarado como órgão de soberania. Acha, por exemplo, que aquela operação que se fez na Madeira revela falta de meios? Eu acho que não. Acho que revela excesso de meios.
Ainda para mais quando há segredo de justiça…
O que quero criticar é o uso da comunicação social junto da opinião pública para obter determinados efeitos. Isso é que é censurável. Mas isso também se faz de há longa data, não é de agora. Como nós sabemos os dois, porque andamos nisto há bastante tempo, tem de se usar criteriosamente e gerir os meios disponíveis. E essa, para mim, é a grande falha. Porquê? Porque depois de uma busca espetacular com transportes em C-130 da Força Aérea e com grandes apreensões, o que é que vai acontecer ao material apreendido? Vai estar anos a fio depositado em qualquer lado à espera de ser analisado por peritos financeiros, peritos informáticos e outros.
Nós tivemos em novembro aquele célebre parágrafo do comunicado da PGR que deu origem à demissão de António Costa. Se fosse Procurador-Geral da República, teria incluído aquele parágrafo?
Não tinha. Não tinha incluído e sujeitava-me às críticas a que normalmente sou sujeito pelas coisas que digo. Há uma certa confusão entre corrupção e fenómenos que estão próximos da corrupção, mas que não são rigorosamente corrupção. Por exemplo, o conflito de interesses ou as portas giratórias, que são, obviamente, realidades que temos de defrontar e que temos de regular melhor. Há muitas vezes uma confusão entre aquilo que é a decisão política e o que é um ilícito criminal. Eu vou concretizar para ver se a ideia fica clara. Eu acho perfeitamente legítimo que um projeto como o da Start Campus, que é um projeto de investimento numa área do nosso território que precisa de ser desenvolvida, seja acarinhado pelo poder político.
Estas decisões não podem ser escrutinadas pelo Ministério Público. O Ministério Público não tem qualquer legitimidade constitucional para interferir em decisões de natureza política.
Mas isso é muito de agora, certo?
Não. Eu diria até que já havia uma figura no Ministério Público, o Dr. Cunha Rodrigues, que esteve, aliás, muitos anos à frente do Ministério Público. Era uma pessoa superiormente inteligente e muito hábil. Já nessa altura tinha uma gestão, se quiser, política dos casos, que era muito interessante, vou dar-lhe dois exemplos já um bocadinho fora da memória, mas que são interessantes. A dada altura há um processo com grande significado contra a Dra. Leonor Beleza, nos anos 90, e esse processo, bem ou mal, atingiu uma alta personalidade do Partido Social Democrata, que, aliás, teria ambições a ter uma carreira política, enfim, muito mais auspiciosa do que aquela que acabou por ter e, em grande parte, em consequência deste caso. Bom, logo a seguir, ou pouco tempo depois, há outro grande caso que tem que ver já mais com figuras do Partido Socialista, que é o caso do fax de Macau e depois os casos do Fundo Social Europeu. Portanto, havia ali uma gestão equilibrada entre a responsabilidade criminal de políticos do PS e do PSD. Eu não estou a dizer que não fossem instaurados inquéritos. Mas tiveram os dois desfechos curiosos. Tirando o caso do fax de Macau, o caso do Fundo Social Europeu e o caso dos hemofílicos acabaram, tanto quanto eu me recordo, ambos por prescrição, o que não deixa de ser, enfim, um resultado um bocadinho dececionante.
Mas já nessa altura havia a ideia de que os políticos eram perseguidos pela justiça, e estamos a falar dos anos 90. Agora parece-me que, por um lado, há um exagero que decorre da excessiva mediatização dos casos, que também tem que ver com uma certa necessidade de produzir conteúdos. Nós hoje temos muitos órgãos de comunicação social, das mais diversas formas, nos mais diversos meios, que apresentam um conteúdo barato e que interessa à opinião pública. Só que isto, se não for bem conduzido e bem orientado, pode gerar distorções na opinião pública. Distorções de perceção das coisas. Não é bom, mas é um fenómeno que está aí e que não existia nos anos 90 como existe agora. Por outro lado, houve, se calhar de forma muito excessiva e para lá daquilo que é possível de esperar, uma confiança cega na ação da justiça penal como elemento moralizador da classe política. E os próprios magistrados, e aí alguns na magistratura judicial e outros na magistratura do Ministério Público, que se sentiram um bocadinho imbuídos deste espírito justicialista. Portanto, há um pano de fundo histórico que também chega a Portugal em que há esta crença, muito alimentada pela própria opinião pública e por certos opinion makers, de que os bons são os da justiça penal, os outros são todos uns corruptos. E esta ideia começou a vingar.
O princípio da presunção de inocência é mal tratado?
Eu acho que a culpa, se é que se pode falar de culpa nisto, é da própria classe política, porque a classe política não tem respeito nenhum pelo princípio da presunção de inocência. É dos princípios constitucionais que eu vejo mais mal tratado a todos os níveis.
E hoje acho interessante que este Manifesto dos 50 toque outra vez nesse ponto. Mas a verdade é que durante muitos anos a própria classe política embarcou nesta onda e esta era a ideia: se alguém é constituído arguido ou se é suspeito, deve imediatamente abandonar as funções públicas em que está investido. É óbvio que isto é um problema sério a debater e é sobretudo um problema de ponderação pessoal do visado.
Se nós um dia tratássemos o direito à greve da forma como tratamos a presunção de inocência, havia uma nova revolução, quando a presunção de inocência é um princípio fortíssimo que deve ser preservado.
O facto de estarmos a ter uma subida do Chega também não ajuda…
Sim, com a subida desse discurso radical que significa um abrandamento da cultura democrática. Mas o abrandamento da cultura democrática tem que ver com estes fenómenos de desrespeito pela presunção de inocência, desde logo pela comunicação social. Eu tenho visto muitos colegas seus dizerem, com grande desfaçatez, que isso é um princípio lá para os tribunais. Os tribunais é que têm que se preocupar com a presunção de inocência. Não é verdade! A presunção de inocência é um princípio constitucional que se aplica a todos.
Mas dou-lhe outros exemplos do populismo fácil. A ideia de que o aumento das penas resolve tudo! Isso não resolve nada, porque as penas podem ser de enorme dimensão, que se não forem aplicadas ou se não forem aplicadas em tempo útil não servem rigorosamente para nada. Portanto, é muito mais eficaz uma justiça que atua em tempo útil, em tempo em que a maioria das pessoas ainda se lembra do que é que se passou, do que é que se se disse, e que se consiga perceber a consequência. Uma justiça que se arrasta penosamente, durante anos a fio, gera a tal sensação de impunidade.
Houve uma questão que foi muito falada há uns tempos, de incluir mais membros fora da magistratura no Conselho Superior do Ministério Público. Acha que isso poderia ajudar? Poderia resolver alguns dos problemas que existem atualmente no Ministério Público?
Não, não é para mim a questão fundamental. Não acho que o Conselho Superior do Ministério Público tenha que ter mais membros que não sejam do Ministério Público. Mas a magistratura do Ministério Público tem um défice de escrutínio democrático.
Eu não defendo que se elejam os procuradores, como no sistema americano. Não defendo nada disso., Mas tem de haver um reforço da fiscalização por parte do poder político. Não temos que ter medo do poder político legitimamente eleito. Relativamente ao exercício da ação penal e ao Ministério Público, temos de ter accountability.
Responsabilidade por resultados, pela gestão de meios, que deve ser exercida de forma mais eficaz e mais visível, para que a opinião pública perceba o que é que se faz, como é que se gasta o dinheiro e que resultados é que se tem. Isso, a meu ver, não passa necessariamente por aumentar o número de membros que não são do Ministério Público no Conselho Superior do Ministério Público. Enfim, não faria disso um cavalo de batalha. O que me parece que era importante era que a política criminal e o desempenho do Procurador-Geral da República fosse escrutinado pelo Parlamento, como são, por exemplo, os reguladores. Porque é que não há de ser da mesma maneira, uma prestação de contas públicas? Que tornasse visível a atuação da Justiça.
E sabíamos se há, de facto, uma escassez de recursos ou se eles estão a ser mal geridos…
Como esta questão de chamar ou não uma Procuradora-Geral da República ao Parlamento, se calhar, também se se começasse a recorrer mais a esse tipo de iniciativas. No fundo, para ter a titular de investigação criminal a prestar contas e, para isso, não tem que falar dos processos em concreto.
Nós nunca tivemos uma Procuradora-Geral tão silenciosa…
Podemos discutir se é a personalidade adequada para o cargo ou não. Porque hoje, voltando ao século XXI, é quase inconcebível que o Procurador-Geral da República tenha uma inabilidade tão grande para comunicar. Falar diretamente não é fazer comunicados através do gabinete de imprensa, é falar, dar entrevistas e nada disso é um dogma também, não é? Embora nós tenhamos este prurido, que é muito, se quiser, muito salazarento, de que os juízes e os procuradores têm que ser pessoas muito austeras.
Mas o Conselho Superior da Magistratura está a fazer um esforço em comunicar…Portanto, já há uma abertura diferente. O Ministério Público está exatamente igual ao que era há 20 anos?
Mas é preciso de facto que saiba comunicar. Mas, para além de saber comunicar, acho que esta ideia de se ver com muita relutância que um Procurador-Geral da República seja chamado ao Parlamento para prestar contas é uma ideia que não é democrática e que representa, lá está, um retrocesso civilizacional, é que é preocupante. E há sinais disso, como o ressurgimento do populismo. Tudo isto são sinais preocupantes, que apontam para um percurso pouco democrático, no sentido de uma cultura muito mais totalitária, muito mais opressiva, que está a começar a fazer escola, desde logo na Europa e nos Estados Unidos também. Enfim, tudo isto é francamente mau e acho que as pessoas de bem, os tais 50 do Manifesto e outros que por aqui andam há muito tempo a falar das mesmas coisas, deviam ser um bocadinho mais escutados, sob pena de se chegar à situação em que se está agora. E os políticos que ativamente contribuíram para tal erosão do princípio da presunção de inocência hoje não serão as principais vítimas da sua própria atuação? Porquê? Porque precisamente nos momentos críticos em que se deviam ter elevado um bocadinho, sair da política baixa para a política de outra dimensão, a única coisa que conseguiram fazer foi política partidária de nível mais ou menos rasteiro. E o resultado está à vista, não é?
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“A classe política não tem respeito pela presunção de inocência”
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