Estado da Nação. A oferta continua a ser escassa, os preços sobem e os rendimentos das famílias não acompanham. A crise na habitação é feita destes problemas que tardam em serem resolvidos.
- O ECO vai publicar diariamente uma série de seis artigos sobre o Estado da Nação, até ao debate de quarta-feira no Parlamento, com uma análise aos desafios na Saúde, Educação, Habitação, Economia, Justiça e Finanças Públicas.
Portugal continua a viver uma crise habitacional sem precedentes, com o mercado imobiliário a atingir níveis de inacessibilidade que ameaçam fragmentar ainda mais o tecido social do país.
O Governo, reconhecendo a urgência da situação, apresentou em maio um ambicioso plano de 30 medidas sob o lema “Construir Portugal: Nova Estratégia para a Habitação” que estará sob escrutínio por parte dos deputados na discussão do Estado da Nação, que decorrerá a 17 de julho, dada a importância e a urgência de encontrar soluções eficazes para este problema estrutural.
“O pacote reconhece a urgência do problema e a necessidade de uma ação imediata, propondo diversas medidas para aumentar a oferta habitacional, reduzir custos e promover a habitação pública“, reconhece Ricardo Sousa, CEO da Century 21, mas salienta que é “necessário conhecermos em detalhe as especificidades e como se pretende alcançar os objetivos de cada medida e executá-las.”
Nos últimos cinco anos, as rendas medianas dos novos contratos de arrendamento aumentaram a um ritmo médio anual de 8,3%, enquanto os preços das casas subiram, em média, 10% por ano.
A “tempestade perfeita” que se abateu sobre o mercado da habitação em Portugal nos últimos anos é o resultado de uma confluência de fatores: o aumento vertiginoso dos preços dos imóveis, a escalada das rendas, a estagnação dos rendimentos das famílias e o aperto nas condições de financiamento.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), só nos últimos cinco anos até ao primeiro trimestre deste ano, as rendas medianas dos novos contratos de arrendamento aumentaram a um ritmo médio de 8,3% por ano. No mercado de compra e venda, o cenário não é diferente, com os preços da habitação a subirem, em média, 10% por ano ao longo do último quinquénio.
Esta escalada de preços contrasta drasticamente com a evolução dos rendimentos das famílias portuguesas. De acordo com dados do Banco de Portugal, o rendimento disponível per capita aumentou, em média, apenas 5,9% por ano desde o primeiro trimestre de 2020 — e não esquecendo que esse comportamento parte de uma base marcada de baixos rendimentos.
O resultado destes números leva a que a disparidade entre o crescimento dos custos habitacionais e dos rendimentos esteja a criar uma crise de acessibilidade sem precedentes, empurrando muitos portugueses para fora do mercado da habitação.
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Oferta sem resposta à pressão da procura
A escassez de oferta é outro fator crucial na equação da crise habitacional que se vive no país, com particular enfoco nas grandes cidades. Os dados do INE revelam que o ritmo de construção de novos fogos tem sido manifestamente insuficiente para responder às necessidades da procura. Basta lembrar que apenas em 2003 construíram-se cerca de 93 mil fogos, um valor quase idêntico ao acréscimo de casas construídas entre 2019 e o primeiro trimestre deste ano.
Os últimos dados do INE revelam que apesar de ter havido um aumento do número de casas concluídas a entrar no mercado desde 2016, esse crescimento, particularmente nos últimos três anos, tem ficado muito aquém do que o mercado está a pedir. Por exemplo, em 2023, o número de fogos para habitação familiar concluídos (construção nova e reabilitação) cresceu 6,8% depois de em 2022 ter aumentado 3%. Nos cinco anos anteriores, a taxa de crescimento média anual foi de 20%.
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A falta de oferta de imóveis disponíveis para as famílias viverem é um dilema há muito identificado por vários especialistas que o Governo pretende resolver com algumas ideias apresentadas no seu programa de combate à crise na habitação.
Entre as propostas mais relevantes destaca-se a disponibilização de imóveis públicos para habitação com renda/preço acessível, a alteração da Lei dos Solos para permitir o uso de solos rústicos para soluções sustentáveis de habitação, a redução do IVA para a taxa mínima de 6% para as obras de reabilitação e construção de habitação, o desbloqueio de 25 mil casas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a revogação do arrendamento forçado, a criação de uma garantia pública para jovens na compra da primeira casa, e a isenção de IMT e Imposto de Selo na compra da primeira casa para jovens até aos 35 anos, em imóveis até 316 mil euros.
No entanto, a eficácia destas medidas está longe de ser consensual entre os especialistas. Alguns críticos argumentam que o plano não aborda de forma suficientemente robusta as causas estruturais da crise, como a especulação imobiliária ou a falta de regulação do mercado de arrendamento de curta duração.
“Não é expectável uma descida do preço das casas no curto prazo”, vaticina Ricardo Sousa, CEO da Century 21, argumentando que isso não acontecerá porque “continuamos com um forte desequilíbrio entre a oferta e a procura, em particular nas principais áreas metropolitanas do país”.
A redução do IVA para 6% nas obras de reabilitação e construção, por exemplo, é uma medida bem-vinda pelos agentes do mercado, mas levanta questões sobre como garantir que esta redução de custos se traduza efetivamente em preços mais baixos para os consumidores finais e não apenas em margens de lucro mais elevadas para os promotores. Aliás, o próprio ministro das Finanças já reconheceu recentemente essa dificuldade.
“A descida do IVA na habitação é um objetivo do Governo, mas é uma medida difícil de modelar porque tem de ter uma efetiva repercussão nos preços da habitação”, referiu Joaquim Miranda Sarmento no decorrer de uma audição regimental na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública (COFAP), levantando inclusive dúvidas sobre a eficácia, lembrando que “a teoria económica diz que depende da elasticidade do mercado e nem sempre as descidas do imposto são repercutidas nos preços sobre os consumidores”.
Ricardo Sousa destaca ainda a necessidade de o foco do Governo ter de estar no aumento da oferta pública de habitação social, notando a importância de “realizar as alterações necessárias para promover o aumento da oferta de soluções de habitação e aplicar no curto prazo medidas de apoio para as famílias em urgência de habitação e vulneráveis”.
Para esse efeito, o CEO da Century 21 destaca a importância de se adotar uma estratégia de apoio financeiro extraordinário a agregados familiares realmente vulneráveis (com taxas de esforço acima dos 50%), uma maior promoção pela inovação e industrialização da construção e ainda através da promoção do combate à informalidade no mercado de arrendamento.
Até onde vai o efeito do apoio aos jovens para comprar casa?
Uma parte significativa da atenção do pacote do Governo para resolver o dilema de acesso à compra de casa é centrada nos jovens. A isenção do pagamento do IMT e do Imposto de Selo na compra da primeira casa para jovens até aos 35 anos em imóveis até 316 mil euros é disso exemplo.
De acordo com cálculos do Governo apresentados pelo ministro das Finanças na última audição da COFAP, esta dupla benesse fiscal, que deverá produzir efeito a partir de 1 de agosto, terá um custo de 25 milhões de euros num semestre e de 50 milhões de euros em 2025, mas espera-se que tenha a capacidade de aumentar a procura de casa pelos jovens.
A esta medida soma-se o programa de garantia pública para jovens também até aos 35 anos que procurem obter um financiamento até 100% do seu crédito à habitação para a compra da primeira casa. Com a recente publicação do Decreto-Lei que estabelece as condições em que o Estado pode prestar a garantia pessoal junto dos bancos, o Governo tem agora dois meses para aprovar a regulamentação necessária que, entre outros aspetos, obrigará a criar condições que não choquem com duas medidas macroprudenciais do Banco de Portugal na concessão de crédito à habitação por parte dos bancos:
- Nível de financiamento: O empréstimo não pode exceder 90% do valor do imóvel dado como garantia (loan-to-value ratio, na sigla inglesa LTV)
- Taxa de esforço: O somatório de todas as prestações de créditos, inclusive do crédito à habitação, não pode exceder 50% do rendimento líquido (DSTI).
Apesar desta medida ainda carecer de muitos detalhes até que entre em ação, Manuel Alvarez, presidente da Remax Portugal, considera que a garantia pública poderá dar uma ajuda à emancipação de alguns jovens, facilitando o seu acesso à compra de casa. Daí que antecipa “um aumento da procura” de casas com esta medida, particularmente na “procura de apartamentos com tipologias mais baixas, como T0, T1 e eventualmente T2.”
Se assim for, será natural assistir-se a um efeito perverso de inflacionamento ainda maior dos preços no segmento de entrada do mercado, se não for acompanhado por medidas que aumentem significativamente a oferta. Além disso, Carlos Santos, CEO da Zome, lembra que mesmo com todos estes apoios, o caminho não se torna garantido para os jovens comprarem casa por conta dos baixos salários que aufere.
“A combinação da Isenção de IMT, da Garantia Pública e do IRS Jovem visa ajudar alguns jovens em Portugal a adquirir casas em certas cidades. No entanto, em Lisboa e Porto, esta situação continua desafiadora”, relata Carlos Santos, sublinhando que “mesmo com esses benefícios, um jovem ou casal jovem na casa dos 30 anos precisa ter um rendimento mensal de cerca de 3.500 a 4.000 euros. Isso é difícil num país onde a maioria dos jovens ganha em torno de 1.000 euros, num cenário otimista.”
A questão que se coloca no mercado é se as três dezenas de propostas do Governo para combater a crise na habitação terão a capacidade de baixar os preços das casas, melhorando o acesso à compra ou ao arrendamento de uma habitação. Ricardo Sousa não é dos que acredita que isso venha a acontecer.
“Não é expectável uma descida do preço das casas no curto prazo”, vaticina o CEO da Century 21, argumentando que isso não acontecerá porque “continuamos com um forte desequilíbrio entre a oferta e a procura, em particular nas principais áreas metropolitanas do país”.
Não existem soluções imediatas para o problema do acesso à habitação, que previsivelmente continuará a agravar-se nos próximos anos. São necessárias uma visão de longo prazo e uma abordagem integrada ao problema.
Ricardo Sousa destaca ainda que “os códigos e regulamentos de construção obrigam a altos custos de construção de habitação em Portugal, os planos diretores municipais estão desajustados da realidade atual e da tendência futura da evolução sociodemográfica” e que “ainda é importante ter em conta que a rede de transportes públicos não consegue dar uma resposta eficiente a quem procura casa nas periferias.”
O plano “Construir Portugal” apresenta um conjunto de medidas ambiciosas que, se implementadas de forma eficaz, podem contribuir para mitigar alguns dos problemas mais prementes do mercado habitacional português. No entanto, a complexidade e a profundidade da crise exigem uma abordagem ainda mais holística e de longo prazo.
“Não existem soluções imediatas para o problema do acesso à habitação, que previsivelmente continuará a agravar-se nos próximos anos. São necessárias uma visão de longo prazo e uma abordagem integrada ao problema: a nível macro, por meio de políticas governamentais e municipais coerentes, e a nível micro, através de projetos individuais”, referem Hugo de Almeida Vilares e Rita Fradique Lourenço, autores do policy paper “A crise da habitação nas grandes cidades – uma análise”, publicado em julho do ano passado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS).
Significa que o sucesso desta nova (ou de outra qualquer) estratégia para a habitação dependerá, em última análise, da capacidade de transformar estas 30 medidas em ações concretas que melhorem efetivamente o acesso à habitação para todos os portugueses, desde logo porque “o problema atinge muito desigualmente a população”, como refere Pedro Siza Vieira, advogado e ex-ministro da Economia, num ensaio publicado no ECO em setembro do ano passado. “Quem já tem habitação, e, sobretudo, quem reside em casa própria já substancialmente paga, não é afetado pela crise; quem procura casa para arrendar ou comprar, sobretudo os mais jovens, enfrenta enormes dificuldades.”
Só o tempo dirá se o plano do Governo de Luís Montenegro será o ponto de viragem há muito esperado no mercado da habitação ou apenas mais um conjunto de boas intenções que se perderão na complexidade burocrática e nos interesses instalados que têm caracterizado o setor nas últimas décadas. Mas a urgência de ação é inegável e as consequências de não resolver esta crise podem ser profundas e duradouras para a sociedade portuguesa.
A discussão do Estado da Nação a 17 de julho será, sem dúvida, um momento crucial para avaliar a viabilidade e a eficácia destas medidas e para definir o caminho a seguir na resolução desta crise habitacional.
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Estado da Nação. O desafio de ter uma casa em Portugal
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