A teia da digitalização “burocrática” e os deferimentos tácitos

  • Benedita Lacerda e Micaela Giestas Salvador
  • 20 Setembro 2024

Não basta, pois, criar mecanismos, gratuitos e desmaterializados, se não se fizer primeiro uma verdadeira reengenharia dos processos, procurando otimizar as diversas soluções, antes de automatizá-los.

Criado pela primeira vez em 2006, o programa Simplex nasce da necessidade de dar uma resposta pronta e eficaz às necessidades dos cidadãos e desde aquela data que várias são as edições – algumas bastante meritórias e pioneiras como as plataformas dos tribunais – do programa Simplex.

No fluxo de desburocratização, uma das apostas mais recentes é o aumento do número de situações que, na ausência de resposta das entidades públicas dentro do prazo legal, se presumem tacitamente aceites: o deferimento tácito. Mas desengane-se quem pense que se trata de um processo linear e imune à máquina burocrática do Estado.

O DL n.º 11/2023 (Simplex Ambiental) criou um serviço digital para a certificação de deferimentos tácitos e de comunicação prévia com prazo, através de uma alteração ao DL n.º 135/99. Com o Simplex Urbanístico, em janeiro deste ano, foi adotado um regime de deferimento tácito para as licenças de construção.

É possível agora através do Balcão do Empreendedor, de forma totalmente gratuita, dirigir um pedido à Agência para a Modernização Administrativa de certificação de deferimento tácito. Este documento atesta (e vincula a administração pública) que foram obtidos todos os atos necessários, não podendo, designadamente, serem aplicadas coimas por ausência da licença ou autorização legalmente exigida. Pretendeu-se, assim, conferir maior confiança e segurança jurídica aos licenciamentos deferidos tacitamente pela Administração.

Uma vez apresentado o requerimento na plataforma, automaticamente, é enviado um e-mail à entidade responsável com cópia do pedido. Caso não seja demonstrado, no prazo de três dias úteis, que foi emitido um ato expresso antes da decorrência do prazo (através da inserção no sistema de uma cópia da decisão expressa), a certidão é emitida.

Após a comunicação com a entidade requerida, a Agência para a Modernização Administrativa dispõe de 8 dias úteis para a emissão da certidão de deferimento tácito.

Concebido como uma ferramenta célere e eficiente este processo pode esbarrar, contudo, naquela que é a teia burocrática dos nossos serviços, provocada pela dispersão (e, também, má técnica) legislativa e pela dificuldade de desamarrar as raízes de uma administração paternalista.

Na verdade, quando são chamadas a pronunciar-se, as entidades são “tentadas” a, por esta via, obstar ao reconhecimento dos efeitos do deferimento tácito.

Este é o caso, por exemplo, da verificação dos prazos para emissão de pareceres das entidades externas, quando requeridas pelos próprios particulares, no âmbito do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.

Este diploma estabelece um prazo de 20 dias para que as entidades que emitam parecer, autorização ou aprovação no âmbito de um procedimento de licenciamento de obras de edificação.

O mesmo diploma obriga que, nas situações em que a obra está sujeita à apresentação de mera comunicação prévia, – em que a intervenção da câmara municipal é apenas de confirmação da regular instrução dos pedidos – estas consultas sejam efetuadas antes da submissão do pedido e pelo próprio particular. Sendo, também, claro este regime que na falta de pronúncia sobre a consulta dentro do prazo podem aqueles requerimentos ser apresentados como prova da solicitação das consultas.

É certo que o artigo que estabelece aquela obrigação não menciona expressamente o prazo para emissão daqueles pareceres, sendo necessário recorrer a uma interpretação conjugada de todos os artigos que regulam o pedido de emissão de pareceres para se chegar a essa conclusão.

É aqui então que a eficiência da automação e do sistema começa a fracassar. Porque basta a entidade visada alegar que não existe deferimento tácito – porque a lei não prevê de forma clara esse efeito – para que a Agência para a Modernização Administrativa não emita a referida certidão.

De igual modo, no caso dos pedidos de informação prévia ou nos casos de licenciamento de construções perspetiva-se que, alegando as câmaras municipais qualquer outro motivo que não sejam os expressamente previstos, vejam os particulares negados os seus pedidos.

Recordamos que de acordo com o regime legal deste procedimento apenas são fundamentos para recusa da certidão do deferimento tácito: (i) o não decurso do prazo necessário para a formação do deferimento tácito; ou (ii) a existência de ato expresso de indeferimento aprovado e notificado no prazo legalmente estabelecido.

E, portanto, para que o sistema funcionasse deveriam ser apenas estes os critérios.

Mas não tem sido essa a experiência. E pior, embora esteja estabelecido que a não certificação do deferimento tácito não impede que os seus efeitos se verifiquem – a verdade é que a recusa da certidão deixa o particular numa zona cinzenta, sem que existam mecanismos claros para reagir àquela recusa.

Por exemplo, se a câmara municipal alega que o deferimento tácito é nulo porque o pedido de licenciamento não obteve os pareceres favoráveis necessários, mas o particular nunca foi notificado de um ato expresso e fundamentado, o que pode fazer? Embora até se possa pensar inovadoramente entre uma ou outra solução, o mais provável é que não reste outra opção senão voltar à casa de partida e esperar – sem prazo definido – pela notificação da câmara municipal.

Em 1995, no livroThe Road Ahead”, Bill Gates, dizia que a primeira regra de qualquer tecnologia é que a automação aplicada a uma operação eficiente aumentará a sua eficiência. A segunda é que a automação aplicada a uma operação ineficiente aumentará a sua ineficiência.

Ou seja, se os processos subjacentes são mal concebidos ou ineficientes, automatizá-los não resolverá nenhum desses problemas. Na verdade, pode piorá-los ao replicar as ineficiências em escala maior e mais rápida.

Não basta, pois, criar mecanismos, gratuitos e desmaterializados, se não se fizer primeiro uma verdadeira reengenharia dos processos, procurando otimizar as diversas soluções, antes de automatizá-los.

  • Benedita Lacerda
  • Associada coordenadora da área de Público da PLMJ
  • Micaela Giestas Salvador
  • Associada coordenadora da área de Público da PLMJ

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