Legislação do Arrendamento Urbano: um palimpsesto indecifrável
É, assim, urgente uma “filtragem” de toda a legislação relativa ao arrendamento urbano em Portugal, com supressão de todas as regulamentações avulsas e contingentes.
A legislação sobre o arrendamento urbano constitui um dos pilares essenciais da prosperidade e estabilidade de um país, podendo, por seu intermédio, ser resolvidos, por exemplo, problemas de exiguidade de oferta de locais de habitação, de incumprimento contratual e suas consequências, bem como de todas (muito relevantes) as facetas sociais associadas à utilização de imóveis.
O centro de tal legislação sempre foi constituído pelos capítulos do Código Civil a isso dedicados, bem como por leis avulsas, em que as especificidades do direito do arrendamento urbano foram desenvolvidas e regulamentadas.
Até 2006, e desde 1990, a o Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.) regulava tais contratos, tendo mantido, no essencial, a sua estrutura, nos 16 anos em que vigorou.
Em fevereiro de 2006, a aprovação do N.R.A.U., com a simultânea revogação (quase) integral do R.A.U., determinou uma modificação profunda na forma (legislativa) de encarar o arrendamento urbano, eliminando os vínculos locativos tendencialmente vitalícios (“vinculísticos”) e abrindo as opções contratuais à realidade de um mercado moderno, com maior mobilidade de população e consequente evolução dos valores das rendas.
No mês de fevereiro de 2012, as alterações legislativas então promovidas no Código Civil e no N.R.A.U. reforçaram os vetores acima referidos, tornando clara a opção de alargar a margem de funcionamento da autonomia privada neste âmbito, em detrimento de uma regulamentação imperativa e limitadora quer das reais vontades das partes, quer das potencialidades social e economicamente construtivas do arrendamento, de agilizar a cessação coerciva dos vínculos de arrendamento, acelerando os processos de despejo, mantendo sempre garantias a favor dos arrendatários, a preparar e prestar pelo Estado.
Em 2012, o panorama legislativo e regulador dos contratos de arrendamento urbano era, por conseguinte – e independentemente da visão ideológica e partidária que sobre o assunto cada um nutrir – claro, lógico e potenciador de um desenvolvimento e modernização do mercado da locação, nomeadamente com o planeamento de garantias estatais, que progressivamente deveriam substituir a “previdência” que, até então, os proprietários locadores se viam obrigados a assegurar perante as suas contrapartes contratuais.
Lamentavelmente, as sucessivas, súbitas e anárquicas alterações legislativas desde então empreendidas transformaram o conjunto de diplomas legais relativos ao arrendamento urbano (que inclui, além do N.R.A.U., as leis sobre obras, caracterização de prédios devolutos e subsídios de renda) num verdadeiro labirinto, em que o intérprete tem dificuldade em determinar qual a lei aplicável, desde e até quando tal aplicabilidade se verifica, e qual o sentido verdadeiramente desejado com as modificações descoordenadamente operadas.
O resultado é manifesto: normas (as alteradas) que passam a remeter para regras inexistentes, sem previsão de repristinação (artigo 54º do N.R.A.U., por referência às alíneas a) e b), do número 2, do artigo 35º, do mesmo diploma); contradição entre a disciplina promovida pelas modificações legislativas e regulamentação avulsa, relativa, nomeadamente, aos apoios de renda (por exemplo, as Leis 56/2023, de 6 de outubro, e 132/2023, de 27 de dezembro); a absoluta ignorância, para ambas as partes contratantes no arrendamento urbano mas, sobretudo, para os senhorios, das consequências futuras do contrato que, em determinado momento, subscreveram ou subscrevem – face à sistemática e desorganizada modificação das regras de base deste tipo contratual, que impede uma conclusão segura quanto ao que sejam normas imperativas e, inversamente, qual o espaço no qual a autonomia privada poder agir livremente; por fim, e em consequência do que acaba de se expor, decisões de Tribunais de primeira instância que evitam tomar partido na discussão em curso nos Tribunais superiores, nomeadamente nas Relações, em que Lisboa, por um lado, e todas as outras Relações, por outro, se confrontam de acordo com o panorama social e de mercado que as respetivas áreas geográficas de jurisdição produzem – por oposição à bitola da lei, que não prevalece face à sua natureza imprecisa e incerta.
Em suma, o legislador, escrevendo e reescrevendo as regras do jogo, sobrepondo-as descoordenadamente, tornou-o injogável – mesmo para os Tribunais, árbitros nesse confronto de posições.
Tal contexto favorece e potencia todos os fatores que o legislador pretendeu, declaradamente, mitigar com as alterações promovidas desde 2014, determinando o aumento do valor das rendas, a redução de imóveis disponíveis no mercado para locação e mesmo a voluntária manutenção de imóveis devolutos – tudo, como reação à incerteza que a sobreposição legislativa nesta matéria gerou.
É, assim, urgente uma “filtragem” de toda a legislação relativa ao arrendamento urbano em Portugal, com supressão de todas as regulamentações avulsas e contingentes, e reposição de um plano de jogo claro – qualquer que seja a motivação ideológica, social e partidária que lhe subjaza.
Até lá, continuaremos a navegar à vista, escrevendo e rasurando textos que já nada significam e nenhum problema resolvem.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Legislação do Arrendamento Urbano: um palimpsesto indecifrável
{{ noCommentsLabel }}