Ordem dos Advogados: “Quando o Mar Está Calmo, Ninguém se Lembra da Tempestade”

  • José Costa Pinto
  • 5 Setembro 2024

Um protesto a respeito do SADT a consulta pública de dois regulamentos relevantes (uma sobre o Conselho de Supervisão e outra sobre a remuneração dos membros dos órgãos da OA) marcaram o verão.

Contrariando as expectativas de qualquer época estival, onde se vivem dias calmos e longe da azáfama habitual, o verão de 2024 foi verdadeiramente agitado na Ordem dos Advogados (OA).

Um protesto a respeito do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais (SADT) e a consulta pública de dois regulamentos relevantes (uma sobre o Conselho de Supervisão e outra sobre a remuneração dos membros dos órgãos da OA) marcaram o verão em São Domingos.

São assuntos distintos e aparentemente independentes entre si, mas se nos cingirmos à cronologia dos factos constatamos que o verão começou com um protesto pela atualização da remuneração das defesas oficiosas, a que se seguiu a manifestação do intuito de se concretizar a criação de mais um órgão e que promete culminar, no último crepúsculo, com a tentativa de se remunerar de forma inédita dezenas de dirigentes da OA. Este cocktail de temáticas merece uma análise cuidada de cada ingrediente. Vejamos, por partes.

No que respeita ao protesto referente ao SADT, cuja greve o país conhecerá no presente mês de setembro, começaria por referir que os Advogados que têm assegurado a sobrevivência deste sistema merecem todo o meu apreço e admiração. Em especial, porque o fazem há muitos anos recebendo honorários escandalosamente baixos face à responsabilidade e à exigência dos serviços jurídicos que prestam, sujeitando-se a muitas outras vicissitudes a roçar a indignidade.

Neste contexto, é particularmente revelador da inércia e do desrespeito pelos Advogados, o facto de não se atualizar a tabela de honorários das defesas oficiosas há duas décadas e de se ter permitido que as imperfeições do sistema não fossem objeto de estudo e de trabalho sério e permanente ao longo dos anos entre Governos e a Ordem dos Advogados.

Como refiro muitas vezes, é preciso explicar à Sociedade que o SADT está para a justiça como o SNS está para a saúde. Trata-se de uma conquista da democracia e do Estado de Direito que temos de cuidar permanentemente no seu conjunto e na realidade específica de cada um dos seus intérpretes.

Infelizmente, o SADT é há muitos anos para o poder político um “pro bono forçado” dos advogados para a sociedade, o que é uma contradição nos seus termos.

Confesso que tenho dificuldade em entender o sobressalto de verão provocado em plena primeira quinzena de agosto com meio país de férias, quer quanto à tibieza do caderno reivindicativo (20% a mais não traduz o salto remuneratório mínimo exigido, nem muito menos esgota o leque de melhorias que devem ser alcançadas); quer quanto à questionável escolha dos meios de luta (uma tentativa de paralisação destes serviços que leva tudo a eito, incluindo os beneficiários do apoio judiciário); quer quanto ao timing desta contestação meritória (pois é tão grave a tabela não ser atualizada “há 20 anos” agora, como o era há 3, 6, 12, 18 ou 24 meses).

Todavia, por respeito a todos os Colegas que com grande esforço e empenho trabalham por um SADT melhor e qualificado, prefiro reservar a minha opinião sobre a estratégia da minha Ordem para o momento e local próprios.

No entretanto, espero que se recentre a discussão no essencial que interessa a todos: restabelecer as normais relações entre o Governo/MJ e a OA (onde, já agora, a Senhora Bastonária deve reunir-se com Senhora Ministra e não com Secretários de Estado), de modo a permitir que o SADT seja repensado e reestruturado a bem dos advogados, dos beneficiários e do sistema judicial.

Já a consulta pública sobre o Conselho de Supervisão provocou igualmente um pequeno (e justificado) “terramoto” junto daqueles que repudiaram as recentes alterações aos Estatutos da OA e à lei dos atos próprios. Afinal, será pelas mãos dos nossos representantes que este órgão verá a luz do dia, mais cedo do que, apesar de tudo, poderia acontecer, através de um procedimento de nomeação que não encontra previsão legal. É de lembrar que a criação de um “Conselho de Supervisão” foi uma das alterações que mereceram mais repudio de todos os sectores da Advocacia portuguesa, incluindo da própria OA. Como bem perguntava, em junho de 2023, a Senhora Bastonária Fernanda de Almeida Pinheiro (entrevista à RTP): “Porque é que precisamos de um conselho de supervisão de 15 entidades, em que 60% dessas pessoas são externas à profissão, para vir verificar a legalidade da instituição quando ela já tem essa tutela por parte dos tribunais?”.

Excelente: com uma simples pergunta, a Senhora Bastonária da OA dilacerava a pertinência do órgão assim como a insólita ideia da sua maioria ser composta por não advogados, respaldando assim a posição assumida pela Assembleia Geral Extraordinária de Advogados realizada nos idos de 2023.

Como ninguém regulamenta aquilo a que se opõe, a promoção da entrada em funções do Conselho de Supervisão deixa sérias dúvida que não podem deixar de ser clarificadas, como sejam: (i) que coerência existe em acelerar a entrada em funções de um órgão com o qual discorda e se está mandatado para se opor? (ii) que justificação tem esta iniciativa face a tudo o que foi proclamado e decidido pela Advocacia em junho de 2023? E (iii) que sinal se pretende dar, expressa ou tacitamente, ao poder político quanto à luta contra as alterações legislativas que tanto mobilizaram e uniram a Classe há um ano?
Neste aparente “baixar das armas”, bem andou o Senhor Presidente do Conselho Superior da OA que veio a terreiro pronunciar-se sobre o plano concreto da regulamentação colocada em discussão pública, assinalando um conjunto de contradições e falhas técnicas da mesma.

Por último, o famigerado mês de agosto de 2024 trouxe ainda uma novidade às lides da advocacia, como seja a proposta de regulamento que prevê a atribuição a todos os titulares dos órgãos da OA de “senhas de presença” (que se cumularão às ajudas de custo e ajudas de deslocação).

Trocado por miúdos: pretende-se quebrar a histórica tradição de os Advogados servirem a sua Ordem de forma plenamente gratuita (sem prejuízo de, por determinação legal, o Bastonário ser remunerado quando em “dedicação exclusiva” e, bem assim, os Advogados que venham a ser membros do futuro Conselho de Supervisão).

Independentemente da concreta regulamentação proposta neste regulamento (cuja consulta pública termina apenas a 3 de outubro) não devemos esconder as nossas dúvidas (i) quanto à falta de debate prévio sobre este tema junto da Classe e franco esclarecimento de todos quanto às razões pelas quais as suas quotas passarão a servir para pagar dezenas de lugares (ainda para mais propondo-se que o regulamento seja aplicado e imediato aos mandatos em curso); (ii) quanto ao momento em que é colocado em discussão pública, em pleno período de férias, com tantos fora, quando segundo o que é público, o Conselho Geral aprovou o documento em abril; (iii) quanto à competência do próprio Conselho Geral em regulamentar esta matéria; (iv) quanto à ponderação dos limites máximos de valor para os diferentes órgãos subjacentes à proposta colocada em discussão pública; e (iv) quanto ao impacto que este regulamento terá na saúde financeira da OA, que neste momento enfrenta tempos de incerteza face à liberalização de muitas das atividades nucleares dos advogados protagonizada pelas alterações legislativas do início do ano que podem provocar o cancelamento de inscrições ou a redução de novos candidatos à OA.

Mesmo em dias de verão em que a calma deve ser a tonalidade das nossas vidas, não podemos deixar de estar atentos e vigilantes, porque como diz sabiamente o povo “quando o mar está calmo, ninguém se lembra da tempestade” e isso – acrescento eu – às vezes pode ser fatal para os marinheiros.

  • José Costa Pinto
  • Sócio fundador da Costa Pinto

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