Tribunais e Ministério Público passam a poder nomear advogado oficioso em caso de falha nas escalas
Como resposta ao protesto dos advogados oficiosos, organizado pela bastonária, a portaria passa a prever a nomeação de defensor oficioso por Tribunal, Ministério Público ou polícias.
O Ministério da Justiça acaba de lançar uma portaria para ser publicada com “carácter de urgência” que altera o Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais (SADT), passando agora a prever-se a possibilidade de o Tribunal, o Ministério Público ou os Órgãos de Polícia Criminal (como a PJ ou Autoridade Tributária) nomearem qualquer advogado oficioso que, sendo contactado, se manifeste disponível para aceitar a nomeação em caso de falhas nas escalas definidas. Esta alteração surge no decorrer do protesto da Ordem dos Advogados que teve início a 1 de setembro.
“O Ministério da Justiça considera imperioso defender a existência de um sistema de acesso ao direito que disponibilize aos cidadãos que dele precisem um defensor que assegure a proteção dos seus direitos. Ao acautelar a disponibilidade atempada de defensor oficioso, além de se garantir o apoio judiciário a todos que dele precisem, evitam-se atrasos e adiamentos nos processos, poupa-se tempo e recursos aos cidadãos e aos Tribunais, assim se contribuindo para a boa administração da justiça e maior eficiência do sistema judicial“, lê-se no comunicado.
Já a bastonária da Ordem dos Advogados, em declarações à Advocatus, defende que a “OA lamenta profundamente que a Ministra da Justiça, advogada, e a secretária de Estado Adjunta e da Justiça, juíza desembargadora, tenham gizado uma portaria ilegal, que viola a LAJ, como resposta a um protesto que justo, totalmente lícito e necessário para repor a dignidade há muito violada do SADT e da Retribuição que é devida à advocacia, nos termos da Lei e das recomendações do Conselho da Europa e do CCBE”, diz Fernanda de Almeida Pinheiro.
“Ao invés de fazer o que lhe compete, que é atualizar e rever uma tabela que está prestes a fazer o seu vigésimo aniversário, vem propor uma portaria que regride quase 18 anos o espírito do legislador, trazendo de volta a falta de transparência, a corrupção e o cambão, há muito irradicado dos tribunais. Não existe nenhuma lacuna na lei, o que existem são disposições de segurança para evitar a corrupção”, conclui.
Em causa a ação de protesto da Ordem dos Advogados (OA), que apelou à não inscrição de advogados nas escalas do SADT. O SADT é o sistema que permite que os cidadãos com menor poder económico tenham acesso aos tribunais para defender os seus direitos, uma vez que a justiça não pode ser negada a ninguém. Desta forma, foi criado um sistema sustentado pelo Estado que paga a advogados, os chamados advogados oficiosos, para defender estes tipos de casos.
Antes da alteração desta portaria, à OA competia receber as inscrições dos advogados interessados em prestar esse serviço, elaborar as escalas (presenciais ou de prevenção) e fornecer as escalas dos advogados inscritos aos tribunais. E, em caso de necessidade de recurso a um defensor oficioso, o tribunal recorre aos advogados previstos nas escalas presenciais (nas comarcas onde existam) ou recorre à escala de prevenção (não presencial), dando uma hora para que o advogado contactado se apresente em Tribunal.
Assim, o Ministério da Justiça apercebeu-se que a atual Portaria não prevê situações em que a nomeação de Defensor Oficioso não possa ser feita por, entre outras razões: indisponibilidade do sistema de informação que impeça a consulta das escalas, inexistência de escalas ou indisponibilidade do advogado escalado ou não comparência no prazo regulamentar.
75 oficiosos ausentes e duas diligências foram adiadas
Na terceira semana de setembro, entre os dias 16 e 20, faltaram 75 advogados oficiosos. No total, apenas duas diligências foram adiadas, segundo dados disponibilizados pelo Ministério da Justiça. O maior dia de faltosos aconteceu na segunda-feira, com 20, seguida da quarta-feira com 17 e da terça-feira com 15. Na quinta-feira faltaram 14 oficiosos e na sexta apenas nove.
Em agosto, a OA abriu as candidaturas “extraordinárias” para a inscrição nas escalas do SADT em forma de protesto, abrindo assim a possibilidade aos advogados de não se manterem inscritos nas mesmas. Esta ação insere-se num protesto da OA, que considera que as negociações com o Governo sobre a alteração das tabelas de honorários do SADT para o Orçamento de Estado de 2025 “não estão a decorrer com a prioridade que o assunto impõe”. A tabela remuneratória dos advogados oficiosos não é atualizada há quase 20 anos.
Um dos adiamentos aconteceu no Tribunal Central de Instrução Criminal da comarca de Lisboa, sendo a diligência de declarações para memória futura da ofendida, no âmbito de crime de violência doméstica. “A Comarca informou que a diligência foi adiada por falta de disponibilidade de Defensor Oficioso da escala presencial, indicando que estavam ocupados noutros processos. Foi tentada a nomeação através do SINOA (escala não presencial) e nenhum dos dois advogados nomeados atendeu, informaram que a aplicação não permite a nomeação de mais de 2 advogados”, referem.
Já o outro adiamento aconteceu nos serviços do Ministério Público da Amadora. “Tratava-se de audição de arguido, em processo de inquérito, presidida pelo magistrado do Ministério Público, por simulação de crime. O advogado (não oficioso) do arguido faltou e foi necessário recorrer a defensor oficioso, acionando-se a escala da Ordem dos Advogados (OA). O advogado inscrito na escala faltou. Foi contactada a OA não atendeu o telefone. Foi nomeado defensor oficioso através do SINOA (escalas de prevenção), que não compareceu e também não atendeu o telefone”, descrevem.
Por outro lado, a OA garante que o protesto tem causado vários constrangimentos em diversas diligências em todo o País. “Ao contrário do que erradamente tem sido difundido pelo Ministério da Justiça, muitas diligências foram adiadas ou dadas sem efeito, precisamente em virtude da falta de advogados disponíveis, como aliás já foi noticiado em alguns desses casos”, sublinha a bastonária Fernanda de Almeida Pinheiro.
“Acresce que, precisamente por o protesto estar a forçar o adiamento ou cancelamento de diligências, chegou ao conhecimento da Ordem dos Advogados a verificação de casos de nomeações de advogados em violação da Lei de Apoio Judiciário e do Regulamento do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais”, acrescenta a líder dos advogados.
Segundo a OA, num Tribunal tentaram impedir a saída de advogados da sala de audiências, por ordem do juiz, como forma de pressionar os mesmos a aceitarem a representação de arguidos sem advogado, a fim de se realizar uma diligência. “A OA reforça que quaisquer nomeações de advogado realizadas à margem da lei, além de serem ilegais e poderem constituir ilícito disciplinar para todos os envolvidos, não serão, naturalmente, remuneradas”, referem.
“Neste contexto, e não existindo até à data um sinal por parte do Ministério da Justiça no sentido de acomodar no Orçamento de Estado a reivindicação da Advocacia, consideramos que se mantêm os fundamentos para se prosseguir com o protesto no mês de outubro, abrindo mais um período de inscrição de escalas extraordinário, pelo período de um mês entre 23 e 27 de setembro”, revelam.
A realização do serviço de escalas depende da prévia inscrição dos advogados num sistema informático gerido pela Ordem, em que os mesmos demonstram disponibilidade para o efeito. No caso das escalas de prevenção não presenciais, os advogados, se não forem chamados para nenhum serviço, não recebem qualquer valor, “apesar de essa prevenção condicionar completamente a sua vida pessoal e profissional”.
A Ordem queixa-se de que a tabela remuneratória dos advogados oficiosos não é atualizada há quase 20 anos. A entidade propôs ao Governo um aumento da tabela de honorários em cerca de 20%. A bastonária, Fernanda Almeida Pinheiro, já teve três reuniões com o Ministério da Justiça, mas, até este momento, ainda não foi alcançado nenhum acordo. “A Ordem dos Advogados propõe que seja inserida uma verba de cerca de 20 milhões de euros no Orçamento do Estado para 2025″, assume a bastonária.
Mas quanto recebe um oficioso?
A tabela de honorários dos advogados, estagiários e solicitadores pelos serviços que prestem no âmbito do apoio judiciário foi atualizada em janeiro. O diploma atualiza o valor da Unidade de Referência (UR) com base no índice de preços no consumidor (IPC), sem habitação, e considerando todo o território nacional entre janeiro e setembro de 2023. O aumento foi de 3,2%, o que equivale a um aumento de 0,83 cêntimos, que significa na prática que a UR passa de 25,90 para 26,73 euros.
Por cada processo que um advogado oficioso patrocina, é aplicada a tabela da UR correspondente a cada tipo de processo. Ou seja: os mais complexos correspondem a mais UR e aos mais simples correspondem unidades mais baixas. Por exemplo, se um processo corresponder a oito unidades de referência, um advogado recebe 213,84 euros.
O valor da unidade de referência aplica-se ao apoio judiciário — defesa por parte de advogados oficiosos para cidadãos com menos condições económicas — para nomeação e pagamento da compensação do advogado patrono, pagamento da compensação de advogado oficioso, nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono e pagamento faseado da compensação do advogado oficioso.
A tabela de honorários dos advogados oficiosos não era atualizada desde 2009, tendo em 2020, 11 anos depois, o Governo efetuado um aumento de oito cêntimos. Um valor que na altura já tinha ficado aquém das expectativas, por não contemplar a inflação do ano respetivo, nem da quase uma década passada sem qualquer atualização ou reformulação dos honorários destes profissionais.
Dados relativos a novembro do ano passado mostram que a Segurança Social recebe, em média, quase 400 pedidos diários de proteção jurídica por parte de cidadãos sem capacidade para pagar a um advogado. A maioria é aceite, mas, ainda assim, há milhares de solicitações rejeitadas todos os anos. Entre 1 de janeiro de 2018 e 30 de setembro de 2023, foram apresentados 823.659 pedidos de proteção jurídica.
Só em 2022 foram pagos pelo Estado 132,6 milhões de euros em apoio judiciário, o que representa um aumento de quase 50% nos últimos dez anos. No ano passado, foram cerca de 140 mil pessoas que recorreram a este serviço.
O ECO sabe que mais de um terço deste valor, cerca de 50 milhões de euros, foi pago pelo Ministério da Justiça em serviços de advogados oficiosos, nomeados pela Ordem dos Advogados, sendo o restante valor relativo a despesas com perícias do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, serviços de interpretação e tradução, atos de notariado (por exemplo, em processos de inventário) e mediação e arbitragem.
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