Reguladores pedem cultura de poupança mais robusta, a começar na escola

Num debate promovido pelo ECO, os três reguladores financeiros acreditam que os incentivos fiscais podem dar um empurrão na taxa de poupança, mas defendem que a solução está na literacia financeira.

O Dia Mundial da Poupança, celebrado anualmente a 31 de outubro há 100 anos, assume uma importância crescente num contexto global de incerteza económica e repleto de desafios financeiros. Esta data, instituída em 1924 durante o 1.º Congresso Internacional de Caixas Económicas em Milão, visa promover a consciencialização sobre a importância da poupança para a estabilidade financeira individual e coletiva.

Num mundo onde o consumismo imediato muitas vezes se sobrepõe ao planeamento a longo prazo, este dia serve como um lembrete crucial para a necessidade de cultivar hábitos de poupança saudáveis.

Em Portugal, a celebração do Dia Mundial da Poupança ganha particular relevância face aos dados recentes sobre a taxa de poupança no país. No último trimestre, esta atingiu 9,8%, um valor considerado elevado quando comparado com o quarto trimestre de 2021. No entanto, este número revela que a taxa de poupança em Portugal ainda fica aquém da média dos países da Zona Euro e dos níveis históricos de dois dígitos que o país já registou no passado. Será que os portugueses perderam o hábito de poupar? E por que razão isso aconteceu?

Os portugueses não têm por hábito pensar na reforma. Segundo o último Inquérito à Literacia Financeira dos portugueses realizado em 2023 pelo Conselho Nacional de Supervisores Financeiros e publicado em abril deste ano, apenas 27% dos inquiridos refere que poupa para a reforma.

As respostas a estas perguntas colidem essencialmente em dois motivos: uma economia marcada por baixos rendimentos das famílias quando comparados com a média dos pares europeus e também por questões culturais.

O rendimento médio em Portugal é mais baixo que a média da Zona Euro. Isso, obviamente, tem impactos no ponto de vista daquilo que é a capacidade de poupar, sobretudo quando temos em atenção que escalões de rendimentos mais baixos são os que têm a propensão marginal a consumir mais alta e, portanto, é onde a poupança tem menos impacto”, refere Francisca Guedes de Oliveira, administradora do Banco de Portugal, no decorrer de um debate promovido pelo ECO a propósito do Dia Mundial da Poupança com todos os membros do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, que contou também com Inês Drumond, vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e Diogo Alarcão, administrador da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF).

Mas além de uma questão associada ao rendimento disponível das famílias, que continua a ser inferior à média dos países da área do euro, os baixos níveis de poupança são também explicados por uma questão até mais estrutural “que vem de há muitos anos, até antes da Democracia, que tem a ver com o papel do Estado e do Estado que poupa por nós”, revela ainda Francisca Guedes de Oliveira.

No entanto, os representantes dos três reguladores financeiros e promotores do Plano Nacional de Formação Financeira (PNF) partilham da ideia de que essas dinâmicas estão a mudar graças a uma cada vez maior aposta na literacia financeira, sobretudo junto da população mais jovem, apesar dos resultados ainda pouco animadores.

A literacia financeira é importante porque é a primeira linha de defesa do consumidor de produtos e serviços financeiros. Ou seja, por mais eficaz que seja a supervisão e a regulação, se não tenho um nível de literacia financeira adequado, posso não ter uma relação adequada também com o setor financeiro e na gestão das minhas próprias finanças pessoais”, destaca Inês Drumond.

Portugal tem feito progressos nesta área, mas ainda há caminho a percorrer. O conjunto de medidas promovidas no âmbito do PNF tem desempenhado um papel importante nesta matéria, particularmente em colaboração com o Ministério da Educação em duas vertentes. “Primeiro, conseguimos que haja módulos de literacia financeira na cadeira de Cidadania. Adicionalmente, temos também um concurso que tem chegado a variadíssimas escolas com um impacto muito engraçado”, destaca Francisca Guedes de Oliveira.

A importância de começar a poupar desde cedo

Os portugueses não têm por hábito pensar na reforma. Segundo o último Inquérito à Literacia Financeira dos portugueses realizado em 2023 pelo Conselho Nacional de Supervisores Financeiros e publicado em abril deste ano, apenas 27% dos inquiridos refere que poupa para a reforma. A generalidade dos entrevistados (81%) deposita o seu futuro nas mãos do Estado, afirmando que irá financiar a sua reforma através dos descontos para a Segurança Social ou outro regime contributivo obrigatório.

Estes resultados não seriam preocupantes se estivéssemos em 2005, um ano antes da última reforma da Segurança Social. Nessa altura, para os reformados, os anos após a vida ativa tinham brilho: um trabalhador com 40 anos de descontos e um vencimento líquido de 730 euros (valor do salário médio nacional da altura) podia esperar uma reforma 13,2% superior ao último ordenado recebido. Era uma taxa de substituição recorde entre os países pertencentes à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) mas insustentável a longo prazo. Hoje, a realidade é bastante diferente.

“Em 2025, a taxa de substituição, isto é, a diferença entre o último salário e o que a pessoa vai receber na reforma, é de cerca de 72% [mas] em 2070, que não falta muito tempo — se pensarmos bem, os jovens com 15 e 20 anos hoje vão-se reformar em 2070 — a taxa de substituição prevista para 2070 é de cerca de 38%”, refere Diogo Alarcão, citando os números publicados no relatório “Ageing Report 2024”.

O quadro desequilibrado de alocação das poupanças das famílias é justificado por uma maior aversão ao risco por parte dos portugueses e “também por uma incapacidade de planearmos as nossas poupanças a médio longo prazo”, refere Inês Drumond, vice-presidente da CMVM.

É por isso também que o responsável da ASF enfatiza a necessidade de se iniciar a educação financeira desde os primeiros anos de escola, como também recomendou recentemente a União Europeia. “A literacia financeira tem de começar no ensino básico. É importante que as iniciativas comecem no banco da escola e comecem com as crianças para perceber o que são conceitos básicos e que depois vão evoluindo ao longo da vida”, diz.

Estes números sublinham a urgência de promover hábitos de poupança desde cedo, considerando especialmente o envelhecimento da população e a pressão sobre os sistemas da Segurança Social.

Incentivos e desafios para estimular a poupança

Além dos baixos níveis de poupança, a alocação das poupanças dos portugueses continua também mal distribuída. Cerca de dois terços do património das famílias continua exposto ao setor imobiliário (muito por conta do crédito à habitação), mas contabilizando apenas a parte financeira, verifica-se que os depósitos (em grande quantidade depósitos à ordem sem remuneração) agregam mais de 50% das poupanças das famílias.

Inês Drumond refere que há “discrepâncias e diversidade bastante significativa” quando se compara a alocação do património das famílias portuguesas com as famílias de países mais desenvolvidos da Zona Euro, destacando que, em Portugal, dentro das aplicações financeiras, “a percentagem que é investida em ações, obrigações ou unidades de participação de fundos de investimento é reduzida” face aos pares europeus.

Citando o estudo “Transformação Demográfica e (Des)Acumulação de Riqueza”, publicado este ano pelos professores Pita Barros e Carolina Santos da Nova SBE, a vice-presidente da CMVM refere que este quadro desequilibrado de alocação das poupanças das famílias é justificado por uma maior aversão ao risco por parte dos portugueses e “também por uma incapacidade de planearmos as nossas poupanças a médio longo prazo.”

Os mais jovens, particularmente aqueles que mais procuram por informação financeira, são também dos grupos que mais erros cometem na gestão do seu dinheiro e mais frequentemente caem em fraudes, muito por conta do seu excesso de confiança.

Na promoção de mais e “melhor” poupança ganha também particular importância o papel dos incentivos fiscais. Recentemente, foi aprovado um novo regime de tributação das mais-valias para o longo prazo e, segundo o programa de governo, há a intenção de se criarem contas-poupança isentas de impostos, inspiradas nas ISA accounts no Reino Unido ou nas contas 401K nos EUA.

No entanto, Francisca Guedes de Oliveira alerta para a atual complexidade do sistema fiscal português: “Eu fui coordenadora de um grupo de trabalho que fez um estudo sobre os benefícios fiscais em Portugal e devo dizer que fiquei assustada com a diversidade e a panóplia de benefícios fiscais que existem, sobretudo pela quantidade e pela diversidade, às vezes em múltiplos diplomas legais diferentes, às vezes até com objetivos contraditórios”, notando ainda que “tudo o que é fiscal tem de ser muito bem pensado no sentido da coerência do sistema.”

A literacia financeira é o escudo invisível contra as armadilhas do digital

No centro do debate com os três membros do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros esteve também em foco o crescente número de burlas e fraudes que se têm propagado, particularmente no mundo digital.

No ano passado, o Banco de Portugal lançou inclusive a Estratégia de Literacia Financeira Digital que assentava em 39 linhas de ação, que visavam “promover o reconhecimento da importância da literacia financeira digital, assegurar que as pessoas têm informação e conhecimentos adequados para utilizar os serviços financeiros digitais”, e assim garantir maior proteção dos aforradores e dos investidores. Mas a tecnologia evolui mais rapidamente que a realidade, fazendo com que não raras vezes a prevenção seja ultrapassada por ataques informáticos e tentativas de fraudes cada vez mais cirúrgicas, obrigando a que os reguladores estejam ainda mais atentos.

“Se há fraude e há desinformação, estas têm de ser enfrentadas”, sublinhou Diogo Alarcão, notando que a ASF tem lançado um conjunto de iniciativas sob a ideia “Não Mordas o Isco”, em que promove através de vídeos e mensagens que coloca nas redes sociais procura alertar os investidores para a fraude informática na perspetiva dos seguros e de fundos de pensões.

A iliteracia digital, sendo geracional afeta mais os públicos menos informados, mais velhos, por serem justamente um grupo digitalmente mais vulnerável. No entanto, Francisca Guedes de Oliveira destaca também “que são os mais novos, os mais letrados digitalmente, que mais facilitam, que desconfiam muito menos.”

Isso é reconhecido por vários estudos que apontam para o facto de serem justamente os mais jovens, particularmente aqueles que mais procuram por informação financeira, serem também dos grupos que mais erros cometem na gestão do seu dinheiro e mais frequentemente caem em fraudes, muito por conta do seu excesso de confiança.

Não foi por acaso que também recentemente, a propósito da Semana Mundial do investidor, a CMVM também alertou os investidores para os riscos das “dicas” dos influenciadores digitais em matéria financeira, os chamados “Fininfluencers”, destacando, por exemplo, o facto destes influenciadores digitais disponibilizarem, frequentemente, informação de forma gratuita (embora possam estar associados a determinados intermediários financeiros/produtos financeiros específicos), em diversos formatos, através de uma linguagem simples mas nem sempre correta e rigorosa.

Porém, Inês Drumond salienta que os “Fininfluencers” podem também ter um papel relevante, tanto ao nível da promoção da literacia financeira como de pontos de alerta para fraudes. Mas salienta a necessidade e importância de os recetores da mensagem destes influenciadores digitais adotarem “um espírito crítico porque, por vezes, nem sempre essa informação é totalmente correta.”

O debate com os três reguladores financeiros e promotores do Plano Nacional de Formação Financeira, que pode ouvir de forma integral num podcast especial do ECO neste link, revelou que, apesar dos progressos, Portugal ainda enfrenta desafios significativos em termos de poupança e principalmente de literacia financeira.

A educação desde tenra idade, a promoção de incentivos (fiscais ou de outro tipo) adequados e uma maior consciencialização sobre os riscos e as oportunidades financeiras são cruciais para melhorar a situação do país na área da poupança e do investimento

O Plano Nacional de Formação Financeira continua a ser uma ferramenta fundamental neste esforço, mas é necessário um esforço conjunto de reguladores, educadores e da sociedade em geral para criar uma cultura de poupança mais robusta em Portugal.

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