O legado de Miguel Martín à frente do IGCP em três atos

Miguel Martin fica ligado à baixa do rácio da dívida para o nível mais baixo dos últimos 14 anos, mas o mandato não foi isento de críticas, como as mudanças nos Certificados de Aforro.

Depois de quase três anos à frente do IGCP – Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, Miguel Martín deixará de liderar a entidade responsável pela gestão da dívida pública a partir do próximo ano, como o ECO noticiou esta segunda-feira em primeira mão. Vai ser substituído por um homem dos mercados, Pedro Cabeços, mas para a história ficará um mandato que se iniciou em setembro de 2022 e que ficou marcado pela redução do peso da dívida pública no PIB e pelas mudanças das condições de remuneração dos Certificados de Aforro, num período marcado pela subida mais repentina das taxas de juro da história do euro. Foi uma escolha que causou surpresa, porque Miguel Martín não vinha dos mercados, mas da área financeira de uma empresa de infraestruturas, a Ascendi, depois de ter estado na gestão da empresa pública Águas de Portugal.

Um dos resultados do mandato de Miguel Martín foi o contributo do IGCP para a redução do rácio da dívida pública face ao PIB em 2023. Sob a sua liderança, a agência implementou uma estratégia em conjunto com o então ministro das Finanças, Fernando Medina, que permitiu baixar o rácio da dívida pública para o nível mais baixos dos últimos 14 anos, com o fardo da dívida a atingir um valor equivalente a 97,9% do PIB no final do ano passado, cerca de 13,3 pontos percentuais abaixo do rácio da dívida verificado em 2022. Esta redução significativa – a maior em termos percentuais desde pelo menos 1953, ano que marca o início da série do Banco de Portugal — resultou de uma combinação de fatores, incluindo o crescimento nominal do PIB, o saldo primário positivo e ajustamentos défice-dívida. No entanto, não foi uma operação livre de críticas.

A Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) classificou mesmo que a redução da dívida pública alcançada 2023 foi “artificial”, argumentando que houve casos em que as opções de gestão financeira foram condicionadas por orientações do Governo anterior. Um dos casos citados, e revelados pelo ECO, foi o recurso à Segurança Social. Um dos trunfos de Fernando Medina e Miguel Martín para baixar o rácio da dívida pública em 2023 foi o dinheiro das pensões futuras dos portugueses. Através do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) e da Caixa Geral de Aposentações (CGA) foram investidos mais de 7,7 mil milhões de euros na aquisição de títulos de dívida da República, nomeadamente de obrigações do Tesouro. Outra operação foi através da Águas de Portugal, com uma transferência de 100 milhões de euros no último dia de 2023.

1. Alisamento do calendário de reembolso da dívida

Ao longo do tempo que liderou o IGCP, a gestão da dívida pública foi também marcada por várias operações de recompra de obrigações de curto prazo e por emissões de títulos de mais longo prazo, visando evitar picos de amortização e reduzir o risco de refinanciamento da República. No centro desta estratégia esteve sempre o objetivo de garantir que “o alisamento do perfil de reembolsos mantém-se como objetivo orientador na gestão da dívida pública portuguesa”, destaca o IGCP no relatório anual de 2023.

Destaque, por exemplo, para as 17 operações de recompra de obrigações do Tesouro com maturidades entre 2023 e 2027 realizadas no ano passado num montante superior a 5 mil milhões de euros; e para a última emissão sindicada de 3 mil milhões de euros de uma obrigação do Tesouro a 30 anos realizada em maio deste ano, com quase 85% do montante a ser adquirido por bancos, fundos de investimento, seguradoras e outros investidores privados.

Os números alcançados na operação sindicada revela a capacidade de o IGCP ter conseguido alargar a base de investidores de dívida pública ao longo dos últimos anos, numa altura em que desde março de 2023 o Eurosistema deixou de reinvestir a totalidade do montante dos títulos vincendos e desde julho de 2023 os reinvestimentos da carteira do programa de compra de ativos (asset purchase programme – APP) do Banco Central Europeu estarem a diminuir, em média, 15 mil milhões de euros por mês.

Segundo dados do IGCP, somente este ano, prevê-se que o APP reduza as aquisições líquidas de obrigações do Tesouro em dois mil milhões de euros e o programa de compra de ativos devido à emergência pandémica (Pandemic Emergency Purchase Programme – PEPP) em 300 milhões de euros.

Esta preocupação por parte do IGCP em captar novos investidores é visível com o recente roadshow promovido pela equipa de Miguel Martín ao continente asiático, com o intuito de substituir ainda mais o papel do BCE na carteira de investidores de dívida pública.

O foco desta operação é captar sobretudo o interesse de fundos de pensões e outros grandes investidores japoneses, dado que “o tamanho do Japão é tão grande que facilmente absorve a parte que o BCE deixará de ter”, destacou Miguel Martín na Comissão de Orçamento e Finanças de 13 de setembro.

2. Pressão do BCE e das famílias

O mandato de Miguel Martín à frente do IGCP coincidiu também com o período de subida mais repentina das taxas de juro de que há memória. Mas apesar deste contexto desafiador, a gestão da dívida foi realizada de forma eficiente, com o custo da dívida a apresentar níveis de controlo — isto apesar do aumento do peso da despesa com juros da dívida: em 2025, pelo quarto ano consecutivo, a proposta de Orçamento do Estado prevê uma despesa com juros a tocar nos 7 mil milhões de euros, um acréscimo de 2,2% face ao estimado para este ano (cerca de 6,8 mil milhões de euros e abaixo dos 7,1 mil milhões inscritos no OE2024).

Em 2023, por exemplo, o cupão médio da carteira aumentou de 1,9% para 2,4%, enquanto a yield média diminuiu ligeiramente de 3% para 2,9%, enquanto as taxas diretoras do Banco Central Europeu pularam 450 pontos base, com a taxa de facilidade permanente de depósito a passar de -0,5% em julho de 2022 para 4% em setembro de 2023 — mantendo-se nesse nível até junho deste ano.

Além disso, o prazo médio de amortização da dívida manteve-se em 7,2 anos, além de que “a maturidade média da dívida de médio e longo prazo emitida em 2023 aumentou face aos anos anteriores e situou-se em 15,6 anos (face aos 11,3 anos de média em 2022)”, refere o IGCP no relatório anual de 2023.

A estratégia seguida pelo IGCP ao longo dos últimos anos proporcionou assim uma maior flexibilidade nos planos de emissão de dívida e contribuiu para melhorar a perceção dos mercados sobre a dívida nacional, que ficou espelhado pela revisão em alta das avaliações do risco creditício da República pelas principais agências de rating.

Em março de 2024, a Standard & Poor’s elevou a notação da dívida portuguesa para A-, juntando-se à Fitch, à Moody’s e à DBRS em classificar Portugal no patamar “A”. Esta melhoria nas notações de crédito reflete a confiança dos mercados na gestão da dívida portuguesa e na estabilidade financeira do país.

3. Novas regras nos Certificados de Aforro

Apesar dos feitos alcançados, a equipa de Miguel Martín enfrentou um desafio significativo em 2023 com a gestão da procura sem precedentes das famílias por Certificados de Aforro. A subida acentuada das taxas de juro do BCE desencadeou um desalinhamento entre a remuneração dos Certificados de Aforro da “Série E” e outras fontes de financiamento da República. Os Certificados de Aforro passaram a ser um instrumento mais caro para o Estado, leia-se o contribuinte, e a ganhar um peso excessivo face aos objetivos que constavam do orçamento de 2023.

Este fenómeno resultou num recorde de 10,6 mil milhões de euros de subscrições líquidas de Certificados de Aforro no primeiro semestre de 2023. A “Série E”, com uma remuneração inicial atrativa baseada na Euribor a 3 meses mais um prémio de 1%, foi o principal motor deste crescimento, obrigando o IGCP a rever em baixa os programas de financiamento em mercado para 2022 e 2023. Para reequilibrar a situação, o Governo suspendeu a “série E” e lançou a 2 de junho a nova “Série F” de Certificados de Aforro, com uma maturidade estendida para 15 anos. Mas fê-lo a uma sexta-feira à noite, sem aviso prévio e sem explicações, o que motivou críticas severas sobre a instabilidade criada nas perspetivas de poupança dos portugueses. E ficou a dúvida sobre um favor do Governo aos bancos, que consideravam haver uma concorrência desleal do Estado na atração de poupança.

Esta medida visou corrigir o desalinhamento verificado e garantir um equilíbrio entre a gestão da dívida pública e o incentivo à poupança de longo prazo das famílias, adaptando-se ao novo contexto de mercado e aos objetivos financeiros do Estado, apesar dos novos títulos serem menos interessantes para as famílias que têm “chumbado” estes títulos há 11 meses consecutivos.

Foi talvez o momento mais difícil de Miguel Martín à frente do IGCP, e motivou até críticas da UTAO, que concluiu que seria mais caro para o Estado financiar-se no mercado obrigacionista do que pedir emprestado aos aforradores individuais através dos Certificados de Aforro da referida série E. Qual foi a resposta de Fernando Medina? “Não é dos momentos mais felizes dessa instituição [UTAO]”, disse o então ministro das Finanças.

No entanto, também não será esquecido o facto de ter sido através da equipa de Miguel Martín que os CTT perderam o monopólio de comercialização dos Certificados de Aforro que perdurava há seis décadas, desde 1960 quando foi lançada a “Série A”. Ao introduzir uma revisão do texto que regula estes títulos de dívida do Estado destinado ao retalho, passou a ser permitido que os Certificados de Aforro pudessem passar a ser comercializados por instituições bancárias, como acabou por suceder em março com o Banco Big e que se seguirão outras instituições.

 

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