“O processo de investimento em startups é um casamento com um divórcio anunciado”

Os sócios da SRS Legal, Gustavo Ordonhas Oliveira (Head of Private Equity & Venture Capital) e Paulo Bandeira (Head of Startups), falam à Advocatus sobre private equity, venture capital e startups.

Gustavo Ordonhas Oliveira é sócio do Departamento de Corporate & Finance e responsável pela equipa de Private Equity & Venture Capital. Tem experiência em operações de private equity, venture capital, M&A e corporate finance, assessorando de forma regular grupos empresariais e fundos nacionais e internacionais, em operações de aquisição e alienação de participações acionistas minoritárias e de controlo (individual e conjunto), ofertas públicas de venda e aquisição e reestruturações, bem como ainda em processos de constituição, registo e compliance de fundos e sociedades de capital de risco. Tem ainda experiência de assessoria às principais instituições financeiras e bancos de investimento nacionais e internacionais em matérias de direito bancário e financeiro, mercado de capitais e derivados, incluindo em operações de financiamento bancário, emissão de dívida e equity, ofertas públicas de valores mobiliários, programas de emissão de dívida, instrumentos financeiros derivados e aquisição de carteiras de NPL.

Sócio do Departamento de Corporate & Finance, Paulo Bandeira tem mais de 25 anos de experiência na assessoria a sociedades, em processos de fusões e aquisições, bem como na área de corporate governance, com foco em temas de estruturação societária e responsabilidade dos administradores. É responsável pelo Departamento de Startups da SRS e tem assessorado startups tecnológicas e biotecnológicas, Business Angels e Venture Capitals em processos de investimento, bem como incubadoras e programas de aceleração. Em 2018, Paulo Bandeira foi responsável pela criação do projeto STARTUP LAB by SRS, o primeiro acelerador de startups desenvolvido por uma sociedade de advogados portuguesa.

Em entrevista à Advocatus, os advogados falar do cenário atual de private equity, venture capital em Portugal e ainda da legislação aplicada às startups.

Como avalia o cenário atual de private equity e venture capital em Portugal?

GOO: O setor de private equity e venture capital tem mantido um forte crescimento ao longo dos últimos anos em Portugal, em linha com o que se tem vindo a registar em toda a Europa e nos EUA.

De acordo com informação disponível no website da CMVM, existem atualmente em Portugal 131 fundos de capital de risco e 78 sociedades de capital de risco (SCR) (às quais acresce ainda um vasto número de sociedades gestoras de organismos de investimento colectivo (SGOIC) que incluem na sua atividade, em maior ou menor dimensão, a atividade de gestão de fundos de capital de risco). Temos investidores de private equity e venture capital muito experientes e altamente sofisticados, que têm sido responsáveis pelo enorme e exemplar desenvolvimento deste setor em Portugal durante os últimos 15 anos.

Quais os setores mais atrativos para investimentos de PE no país?

GOO: Os setores que se têm revelado mais interessantes para os investidores de private equity continuam a ser tecnologia (com especial incidência em inteligência artificial, cibersegurança, e-commerce e fintech), saúde (nomeadamente no segmento de transformação digital), transição energética, infraestrutura digital, logística e imobiliário/turismo.

A indústria exportadora continua, igualmente, a ser um setor muito atrativo para investidores de private equity. Estes investidores têm tido um papel de grande relevância nos processos de transformação, consolidação e expansão do negócio das suas participadas industriais.

Quais os principais desafios legais e regulatórios para fundos de PE que operam em Portugal?

GOO: O principal desafio reside na necessidade de monitorização e adaptação constante às alterações e evoluções regulatórias, com obrigações de compliance e adaptação a normas complexas, que obriga as sociedades gestoras a implementar programas robustos de compliance, a alocar recursos e equipas adequadamente dimensionadas e a incorrer custos operacionais elevados.

A indústria exportadora continua, igualmente, a ser um setor muito atrativo para investidores de private equity. Estes investidores têm tido um papel de grande relevância nos processos de transformação, consolidação e expansão do negócio das suas participadas industriais”

Gustavo Ordonhas de Oliveira, sócio da SRS Legal

Quais as estruturas jurídicas mais utilizadas por fundos de PE em Portugal?

GOO: A estrutura de investimento habitualmente utilizada por investidores de private equity em Portugal é um organismo de investimento alternativo de capital de risco, sob a forma de fundo de capital de risco (FCR), gerido e representado por uma entidade gestora registada na CMVM como sociedade de capital de risco (SCR) ou sociedade gestora de organismos de investimento coletivo (SGOIC).

O capital do FCR, que é obtido junto dos investidores/participantes que subscrevem as suas unidades de participação (os FCR podem ainda contrair dívida em determinados termos e condições), é investido na subscrição ou aquisição de instrumentos de capital (como ações ou quotas representativas do capital social de uma sociedade) e/ou quase-capital (como prestações suplementares de capital ou obrigações convertíveis) das diferentes sociedades que integram a carteira de investimento do FCR.

Em determinados casos, em virtude das circunstâncias específicas da transação (por exemplo, em cenários de coinvestimento com outro investidor ou uma equipa de gestão), o FCR poderá realizar o investimento de forma indireta através de uma sociedade constituída e financiada exclusivamente com a finalidade de realizar esse investimento ou aquisição.

Gustavo Ordonhas Oliveira

Quais os aspetos legais mais críticos a analisar numa due diligence a uma empresa-alvo em Portugal?

GOO: Além dos aspetos legais que são transversais a todos os setores (societário, financiamento, laboral, contencioso), há determinadas matérias que são consideradas críticas em função do setor de atividade específico de cada empresa alvo.

No caso das empresas tecnológicas, é fundamental a análise detalhada dos temas de propriedade intelectual de forma a validar e confirmar que a empresa (e não os acionistas, colaboradores ou até mesmo terceiros) detém a titularidade e propriedade sobre todos os direitos inerentes ao produto tecnológico da empresa (software, app, marca, domínio, etc). De igual forma, é importante aferir o cumprimento pela empresa de todas as suas obrigações ao abrigo do regime jurídico aplicável ao tratamento de dados pessoais.

Por outro lado, no caso das empresas industriais o foco está normalmente nas matérias relacionadas com licenciamento (atividade industrial, fábricas/armazéns, equipamentos, etc) e cumprimento de obrigações ambientais.

Quais as particularidades da due diligence em setores regulados (ex: banca, saúde, energia)?

GOO: Nas empresas que operam em setores regulados, como a banca, saúde, energia ou telecomunicações, há a necessidade de alargar o âmbito da due diligence legal às matérias específicas de compliance nesse setor concreto – ou seja, a verificação da existência e validação de todas as licenças, autorizações e registos que sejam legalmente exigíveis para o exercício da atividade por essa empresa, bem como o cumprimento continuado das obrigações e requisitos inerentes ao seu funcionamento, incluindo obrigações de reporte de informação a autoridades ou entidades reguladoras, consumidores, contrapartes e outros stakeholders.

Que impacto espera da crescente regulamentação ESG (Ambiental, Social e Governança) nos fundos de PE em Portugal?

GOO: Existe claramente uma grande preocupação e foco nos temas de ESG, quer da parte dos fundos de capital de risco e das sociedades gestoras, quer no contexto das participadas em que os fundos investem. É uma matéria que é cada vez mais objeto de análise em sede de due diligence nos processos de investimento. Muitas vezes essa preocupação é incluída nos próprios regulamentos de gestão no âmbito do objeto de investimento dos fundos, colocando-se como elemento diferenciador também nos processos de levantamento de capital dos fundos.

Existe claramente uma grande preocupação e foco nos temas de ESG, quer da parte dos fundos de capital de risco e das sociedades gestoras, quer no contexto das participadas em que os fundos investem. É uma matéria que é cada vez mais objeto de análise em sede de due diligence nos processos de investimento”

Gustavo Ordonhas de Oliveira, sócio da SRS Legal

Como a digitalização e o uso de blockchain podem afetar as operações de PE no país?

GOO: Creio que da mesma forma que podem afetar as operações de investimento em geral, permitindo uma grande simplificação e aceleração nos processos de due diligence e investimento – considerando que no setor de private equity existe uma permanente análise e research de milhares de empresas e projetos, a capacidade de acelerar processos e gestão/análise de dados e informação permite, naturalmente, potenciar exponencialmente a produtividade das equipas.

Quais as perspetivas para o mercado de PE face à conjuntura económica atual?

GOO: Apesar do cenário positivo e otimista que se perspetivava para 2025, o primeiro trimestre de 2025 acabou por revelar uma certa desaceleração nos processos de investimento, em forte medida determinada por fatores geradores de volatilidade nos mercados como as tensões geopolíticas (entretanto agravadas pelas decisões de política tarifária da administração Trump, em especial os impactos negativos sobre as empresas exportadoras) e a incerteza generalizada sobre as previsões de crescimento económico.

No entanto, continuamos a assistir a um sentimento de otimismo no mercado de private equity. Efetivamente, e sem prejuízo da preocupação que permanece relativamente às valorizações das empresas (valuation gap), cremos que o abrandamento da inflação e a descida das taxas de juro permitem melhorar significativamente as condições de financiamento das transações – a este enquadramento acresce, ainda, a existência de elevados montantes de capital nos fundos de private equity que se encontra disponível para (e a aguardar) investimento, bem como uma conjuntura favorável para aumento dos exits por parte dos fundos de private equity que se encontrem, ou encontrarão em breve, em fase de desinvestimento (neste caso originando um aumento de transações em processos competitivos ou vendas secundárias).

Por fim, antevemos um aumento dos processos de add-on nas carteiras dos fundos de private equity com vista a potenciar sinergias de crescimento e consolidação de participadas.

Como a legislação portuguesa tem evoluído para atrair investidores internacionais em early-stage startups?

PB: A legislação portuguesa não é, nesse âmbito, particularmente atrativa. Vários países europeus têm políticas de fomento ao investimento em startups que passam por atribuir benefícios fiscais (deduções à coleta) a quem investe em negócios emergentes (até cem mil euros/ano, por exemplo). Infelizmente em Portugal nunca se conseguiu adotar legislação semelhante e o resultado é um alheamento generalizado do pequeno investidor relativamente a este mundo.

Neste âmbito é particularmente interessante constatar o que foi feito em Israel e no Reino Unido, sendo exemplos muito relevantes de países em que se dinamizou o sector das startups através de milhares de pequenos investimentos e se fomentou uma cultura de apetite pelo risco e empreendedorismo que anos mais tarde traz proveitos, gera novos negócios, fomenta a inovação e cria riqueza.

O caminho que Portugal seguiu foi o de fomentar a criação de fundos de capital de risco com deduções à coleta em IRC (o famoso SIFIDE) para empresas portuguesas que neles investem, ou seja, apenas criou um incentivo para as empresas e não para os investidores que sejam pessoas individuais. A solução peca por defeito, porque não compreende que na dinâmica destes investimentos existem momentos diferentes de investimento e os investidores individuais tendem a investir mais cedo que os fundos de capital de risco, e que isso é fundamental na criação de novas empresas no ecossistema e de um pipeline de empresas e de novos negócios em que os fundos possam investir em seguida.

Que cuidados especiais são necessários em startups com operações internacionais?

PB: É fundamental conhecer o contexto legal e de negócios em que se opera. Embora este seja um mercado de soluções globais, as especificidades legais podem fazer toda a diferença no momento de investir ou de ser investido. Adicionalmente, é fundamental compreender o normativo de Governance e as expetativas de venda (de saída ou de exit) por parte dos investidores de cada país. Os investimentos são instrumentos colaborativos entre investidores e empresas em que o dinheiro é apenas um dos elementos da equação. Nessa medida, é fundamental perceber se aquele dinheiro que a empresa está a aceitar vem com expetativas de reembolso ou de determinado retorno ou de saída num quadro temporal definido, pois de outro modo podem criar-se desalinhamentos entre investidor e empresa que poderão ter impacto no relacionamento e crescimento futuros.

Como estruturar acordos de acionistas (shareholders’ agreements) para evitar conflitos entre fundadores e investidores?

PB: O primeiro passo, e mais relevante até, é existir um primeiro acordo parassocial entre fundadores que salvaguarde temas como a propriedade intelectual do projeto e o que sucede em caso de dissenso entre fundadores, designadamente mecanismos de saída, por forma a que a startup não fique bloqueada. Havendo investimento, haverá que construir em cima do acordo existente.

Os acordos parassociais são mecanismos de alinhamento de interesses. É importante que se regule o mecanismo do investimento e as responsabilidades inerentes ao mesmo tendo em conta a avaliação assumida para a empresa, o funcionamento da empresa designadamente no âmbito da assembleia geral e do conselho de administração, as vicissitudes societárias em contextos de venda de participações sociais (direitos de preferência ou de acompanhamento na venda) mas, sobretudo, os mecanismos de venda ou de saída conjunta do capital social da startup.

O processo de investimento em startups é um casamento com um divórcio anunciado, e a melhor forma de garantir um alinhamento estrutural de interesses é deixar muito claro os termos em que esse divórcio vai acontecer. Tudo o que estiver redigido não deixa margem a interpretação e facilita muito o desiderato final, que é a venda da empresa. O que não estiver regulado é frequentemente fonte de bloqueio deste objetivo final.

É fundamental conhecer o contexto legal e de negócios em que se opera. Embora este seja um mercado de soluções globais, as especificidades legais podem fazer toda a diferença no momento de investir ou de ser investido. Adicionalmente, é fundamental compreender o normativo de Governance e as expetativas de venda (de saída ou de exit) por parte dos investidores de cada país. Os investimentos são instrumentos colaborativos entre investidores e empresas em que o dinheiro é apenas um dos elementos da equação”

Paulo Bandeira, sócio da SRS Legal

Quais os desafios legais em operações de secondary sales (venda de participações a outros fundos)?

PB: O primeiro desafio é de mercado. É preciso criar uma indústria de M&A em Portugal de empresas desta dimensão, que não existe ainda. As startups são empresas inovadoras com uma forte componente de criação de valor no processo de desenvolvimento de produto. É fundamental que as empresas de média e grande dimensão olhem para estas empresas como uma forma de integrar valor no seu próprio processo e percebam que integrar ou adquirir estas empresas ou a respetiva tecnologia é muitas vezes uma forma mais barata e célere de disromper processos por contraponto ao desenvolvimento interno.

O segundo desafio é ainda de mercado e tem que ver com a compreensão do papel e do perfil de risco de cada investidor. Num mercado maduro os projetos early stage que ainda não estão preparados para receber investimento de fundos de capital de risco devem ser apoiados por investidores individuais (Business Angels) e estes investidores devem poder sair no momento seguinte em que a startup está pronta para receber investimento de fundos de capital de risco. Isto implica, naturalmente, um entendimento entre investidores early stage e investidores subsequentes para que estes possam adquirir a participação dos primeiros, o que, por sua vez, permitirá aos primeiros fazer novos investimentos que alimentarão o pipeline de investimento dos segundos.

O terceiro desafio é já legal e prende-se com a proibição legal de os fundos de capital de risco elegíveis para SIFIDE (que são hoje a maioria do mercado investidor em startups) adquirirem participações sociais em operações secundárias (vulgo, compra e venda de participações). Esta restrição é um obstáculo muito relevante à recirculação de investimento no mercado e, designadamente, à alienação de participações por parte de investidores early stage, dinheiro esse que seria mais rapidamente reinvestido em novos projetos (mais inovação, mais investigação, mais postos de trabalho, etc.).

Advocatus Summit Lisboa 2020 - 10NOV20
Paulo Bandeira, sócio SRSHugo Amaral/ECO

Como a regulamentação ESG está a influenciar os critérios de investimento em VC?

PB: É cada vez mais uma exigência de investidores qualificados, sobretudo estrangeiros, para investirem em fundos de capital de risco. Isso repercute-se naturalmente no tipo de projetos em que o próprio fundo pode investir, o que cria uma dinâmica positiva de adaptação dos projetos das empresas de adaptação a esta nova realidade. O desafio continua a ser passar do mero cumprimento da regulamentação para um ciclo virtuoso de impacto do investimento.

Que impacto espera da crescente competição por deals entre fundos nacionais e internacionais?

PB: A concorrência por transações tem sempre efeitos positivos na criação de dinâmicas de mercado. O mercado de investimento em startups em Portugal foi bastante competitivo há uns anos, com uma corrida por parte dos fundos às melhores oportunidades, mas tornou-se nos últimos anos bastante colaborativo com uma crescente partilha de oportunidades e de risco por parte dos fundos nacionais. O desafio é trazer os fundos internacionais para esta dinâmica e é aqui que os fundos portugueses terão de assumir um papel ativo na partilha de oportunidades com fundos internacionais de relevo que abram novas portas às startups portuguesas e lhe permitam escalar mais rapidamente num mundo muito globalizado.

Crescimentos mais rápidos geram oportunidades de saída/venda mais frequentes e com melhores condições, e é por isso que o verdadeiro desafio não é criar um ambiente competitivo pelas oportunidades de investimento, mas um ambiente colaborativo de coinvestimento com agentes internacionais, fomentando-se, em simultâneo, um contexto de exits (pelo menos parciais) para os investidores que investiram em rondas anteriores.

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