• Entrevista por:
  • Margarida Peixoto, Miguel Couto e Paula Nunes

Acordo no IRS? “Continuamos a ter uma enorme dificuldade”

Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, garante que o acordo quanto à descida do IRS está longe de ser fechado.

Mariana Mortágua, o rosto do Bloco de Esquerda para as áreas do orçamento e finanças, assume que tem sido difícil fazer o Governo entender a importância que os bloquistas atribuem à descida dos impostos — não só para os mais pobres, mas também para a classe média-baixa. Mas diz que há margem para fazer mais, seja pela melhoria dos rendimentos, seja pelo financiamento dos serviços públicos: “A manta pode ser maior neste momento,” garante.

E para a bloquista — que não quer que o Orçamento seja desenhado a pensar em Bruxelas — “a manta” tem mesmo de ser acrescentada. “Há muitos serviços públicos que continuam a sobreviver com grandes dificuldades,” frisa. “Não vale a pena dizer que está tudo bem, não está tudo bem,” reforça.

Como estão a correr as negociações com o Governo para o OE2018?

Começaram há algumas semanas e houve já reuniões entre membros do Governo e o Bloco de Esquerda, mas neste momento ainda estão muito longe de qualquer conclusão. Há propostas de ambos os lados, algumas já são conhecidas. As maiores dificuldades também já são conhecidas e pensamos que ainda há um grande trabalho de negociação até podermos chegar a alguma conclusão.

Quais são as maiores dificuldades?

Há vários temas em debate, as prioridades do Bloco são conhecidas. Uma é fiscal e diz respeito diretamente ao IRS, a outra tem a ver com os professores e a possibilidade de regularizar todos os professores contratados e que têm um vínculo precário há dezenas de anos e que continuam a não estar nos quadros — são cerca de 11 mil que estão a cumprir necessidades permanentes. Há uma discussão sobre as carreiras [na função pública] que até agora têm sido congeladas e que devem ser descongeladas no âmbito desta legislatura.

Continuamos a ter uma enorme dificuldade em que o Governo entenda a importância desta medida e portanto de ter um envelope financeiro que corresponda à importância social e política de alteração de escalões de IRS.

Mariana Mortágua

Deputada do BE

Mas o que tem dominado uma boa parte das reuniões tem sido a discussão do IRS, onde a proposta inicial feita pelo Governo fica muito aquém daquilo que entendemos serem as necessidades e as prioridades do país em termos tanto de redução de carga fiscal, como de progressividade ao nível dos escalões. Continuamos a ter uma enorme dificuldade em que o Governo entenda a importância desta medida e de ter um envelope financeiro que corresponda à sua importância social e política.

Já se sabe que há uma proposta que passa por desdobrar o segundo escalão, criando um escalão entre os sete e os 12 mil euros de rendimento anual e daí em diante manter tudo. Isto, conjugado com a alteração no mínimo de existência. É suficiente?

Há dois objetivos que têm de ser cumpridos. Primeiro: é preciso que as pessoas paguem menos IRS. Houve um brutal aumento de impostos na altura de Vítor Gaspar, foram cerca de três mil milhões de euros num só ano, entre 2012 e 2013, e dividiu-se de duas formas: a sobretaxa, que equivalia a cerca de um terço deste aumento, e dois terços os escalões. A simples alteração de oito para cinco escalões aumentou muito a carga fiscal e aumentou proporcionalmente mais a quem ganhava menos. Quem ganhava bastante menos teve um aumento maior no imposto a pagar anualmente. É preciso reduzir a carga fiscal. Ela tem de ser reduzida aos trabalhadores que ganham menos, que estão na base do IRS, mas também tem de ser reduzida para a classe média-baixa que suporta…

O que é a classe média-baixa?

A classe média-baixa é a que se encontra na ponta final do segundo escalão e na primeira metade do terceiro escalão, que são no fundo as pessoas que suportam o IRS. O primeiro escalão paga cerca de 6% do IRS embora tenha o grosso dos agregados familiares. Aliás, o grosso dos agregados nem chega ao primeiro escalão, porque está abaixo dos sete mil euros [anuais], são 3,4 milhões. No segundo escalão há cerca de um milhão, um milhão e tal, de trabalhadores que suportam 30%, mais ou menos; e o terceiro escalão, onde estão menos agregados, é o que suporta a maior parte do IRS, 34%. Estas pessoas têm também de ver a sua carga fiscal diminuída porque também foram quem suportou mais a carga fiscal quando houve um aumento de impostos, e também é a esse início do terceiro escalão que é importante chegar para reduzir a carga fiscal e aumentar a progressividade do IRS.

É daí que vem a tal proposta que custa 440 milhões de euros?

Os números não estão fechados, o que nós temos são objetivos. E precisamos de medidas que respondam a objetivos. O objetivo é diminuir a carga fiscal para os mais pobres e para a classe média-baixa. Aumentar a progressividade do IRS. Agora vamos ver como é que isto se faz. Pode-se fazer unicamente pelos escalões ou por uma combinação de medidas nos escalões e outras. O mínimo de subsistência, por exemplo, é uma das formas que pode ser aplicada para reduzir a carga fiscal a quem é mais pobre.

E há outras medidas para além dessas?

A alteração de escalões é uma, as deduções, em teoria, são outra medida. Há várias formas que podemos combinar para atingir este objetivo. A que neste momento nos parece mais eficaz, porque tem um impacto direto no imposto pago ao final do ano, mas também logo nas taxas de retenção — as pessoas sentem todos os meses que vão pagar menos — é a alteração de escalões. Com a vantagem de que quanto mais escalonarmos o IRS e quantos mais escalões criarmos, mais progressivo ele se torna. E portanto mais fácil é distinguir as pessoas que ganham menos, das que ganham mais. E por isso entendemos que é a medida que corresponde a todos estes objetivos de progressividade e redução da carga fiscal, atingindo o leque mais vasto possível de pessoas, das mais pobres até às que recebendo um pouco mais estão longe de ter rendimentos altos.

Já tem alguma indicação da parte do Governo de que é possível passar de forma significativa dos 200 milhões de euros de custo orçamental para isto? Ou tudo o que vá para além disso tem de ser compensado com outras medidas?

A primeira questão que está aqui é política e social. É preciso dizer às pessoas que em conjunto do seu agregado familiar ganham 20 mil euros por ano, que vão ter um alívio fiscal. Ou às pessoas que no conjunto do seu agregado familiar ganham 25 mil euros por ano. Não estamos a falar de pessoas ricas. Não estamos sequer a falar de classe média. Estamos a falar de um casal que ambos trabalhando, ou estando um desempregado, fazem 25 mil euros por ano. Estas pessoas suportaram um enorme aumento de impostos na altura da troika e do Governo de Passos Coelho e foi-lhes dito que esse aumento de impostos seria revertido e que as suas condições de vida iam melhorar. E por isso, a questão central que é importante que o Governo compreenda, é a da dívida e da responsabilidade que temos para com estas pessoas a quem foi dito que ia haver alterações no IRS e que podiam ser beneficiadas por estas alterações. Obviamente isto tem um custo, mas esse custo tem de ser assumido.

Há dois argumentos. O primeiro é: sistematicamente nos últimos anos o Governo tem ficado para lá das exigências em termos de meta orçamental. Essa folga tem de poder ser utilizada para o mesmo tipo de medidas que estão a permitir o crescimento económico e que depois permite haver folga ao nível do défice. Quando o próprio Governo diz e assume que as medidas que tomamos em termos de reposição de rendimentos tiveram um bom impacto na economia e é por causa desse bom impacto na economia que hoje podemos ter finanças públicas mais desafogadas, então é importante continuar com essas medidas e não restringi-las em nome do défice, porque isso são outros tempos. É sabido que as pressões europeias são um constrangimento e elas não devem definir o que é a política económica e orçamental em Portugal. Foi sempre que conseguimos desafiar essas pressões que foi possível fazer diferente e ter melhores resultados.

É preciso assumir que vai haver uma perda de receita fiscal.

Mariana Mortágua

Deputada do BE

Voltando ao OE2018. Baixar o IRS vai ter custos.

A alteração ao IRS tem de ter impacto orçamental porque estamos a reverter um brutal aumento de impostos. E para isso é preciso assumir que vai haver menos receita de impostos porque se não, não se reverte nada. É preciso assumir que vai haver uma perda de receita fiscal. Só que essa perda de receita pode ser compensada com outras coisas, entre elas, pessoas e famílias com mais rendimento disponível. Do ponto de vista social é importantíssimo, mas o impacto que isso tem na economia também é importante.

Essa perda pode ser compensada?

Dizer que é preciso reduzir a receita fiscal ao nível do IRS não quer dizer que não possa ser compensada de outras formas. Temos avançado uma possibilidade que é a derrama de IRC, paga pelo escalão das maiores empresas. Quando todos os impostos em Portugal estavam a subir, houve um imposto que desceu: o IRC. E quando esse imposto desceu, foi feito um acordo entre PS e PSD que dizia que cada vez que a taxa de IRC descesse para todas as empresas, a derrama subiria. Da primeira vez que a taxa de IRC desceu, a derrama subiu. Da segunda vez que a taxa de IRC desceu, a derrama não subiu. O que quer dizer que no próprio acordo entre PS e PSD, o aumento da derrama ficou por fazer. É uma medida muito circunscrita porque não atinge o grosso das empresas, atinge as empresas com mais lucros, que normalmente em Portugal têm características próprias — operam em setores não transacionáveis, quase monopolistas, que normalmente têm sede fiscal noutros países para poder beneficiar de mecanismos de planeamento fiscal.

Que aproveitaram dois programas deste Governo, o PERES e o regime de avaliação de ativos.

Precisamente. Beneficiaram tanto do programa de reavaliação de ativos, como do próprio PERES. Inicialmente foram apresentados como programas que iriam aliviar o tecido empresarial em geral e depois quando fomos ver os resultados foram as grandes empresas que usufruíram destes programas. Por todos estes motivos, esse aumento da derrama para as grandes empresas terá sempre um impacto muito limitado do ponto de vista económico, para não dizer nenhum, e permite uma receita fiscal que pode compensar outras opções.

E tem havido abertura por parte do Governo?

Estamos em negociação. Tanto os argumentos para ter uma reforma mais profunda no IRS como para ter um aumento da derrama no IRC são bons argumentos. Permitem reverter um desequilíbrio que foi criado na sociedade portuguesa. Cada vez mais se sobrecarrega o trabalho e o consumo porque esses não podem fugir e cada vez menos o capital contribui para financiar o Estado, embora depois usufrua de todos os serviços do Estado, tal como as pessoas.

Quando se fala, no âmbito das alterações do IRS, em corrigir o efeito sobre os escalões superiores estamos a falar em manter o imposto estável para essas famílias, ou em aumentar os impostos aos mais ricos para compensar os mais pobres?

Neste momento, tudo o que estamos a discutir parte do pressuposto de neutralidade fiscal, ou desce, ou não mexe. Temos tido várias opções e obviamente não fechamos nenhuma hipótese. Mas o que está em cima da mesa é uma medida que desça os impostos a quem ganha menos, sendo neutral para todos os restantes contribuintes. É preciso ver como é que está a estrutura de IRS montada, porque embora faça sentido ter mais progressividade e por isso ter taxas muito mais altas nos escalões superiores, há muito poucos contribuintes nesses escalões superiores. É uma questão de justiça relativa, mas do ponto de vista da receita fiscal, mexidas na taxa dos escalões superiores têm efeitos na receita muito pequeninos.

O Bloco aceita uma alteração de IRS que se fique por mexer no segundo escalão apenas?

Não posso dizer que aceito nada a meio das negociações.

Mas pode dizer que não aceita.

O que posso dizer é que neste momento as propostas iniciais parecem muito insuficientes e que ainda estamos muito longe de conseguir um acordo satisfatório.

Há pouco, quando lhe perguntei quais seriam as matérias principais nas negociações para o Orçamento do Estado não falámos de pensões. As pensões já não são uma prioridade neste Orçamento?

Elas são uma prioridade. Foram muito importantes no último orçamento do Estado, são importantes desde o início. Uma das medidas que permitiu a viabilização do Governo foi o compromisso do PS em não congelar pensões tal como estava previsto no seu Programa eleitoral. Desde início que a preocupação com as pensões existe e foi possível descongelar pensões, atualizar a lei, repor a lei e fazer aumentos extraordinários de pensões. A recuperação dos rendimentos dos pensionistas, e o respeito por quem trabalhou num país em que os salários eram muito baixos e as pensões são tão baixas, continua a ser uma prioridade. Destacamos outros que são novidade neste orçamento e que preenchem pontos do acordo que ainda não tinham sido tocados.

Mas o Bloco reivindica um aumento extraordinário de pensões? O PCP reivindica um aumento de 10 euros, como é que vê esta proposta?

Vejo com bons olhos, obviamente. Qualquer pessoa que conheça os baixos níveis de pensões em Portugal e a pobreza que existe entre as pessoas reformadas depois de uma vida de trabalho vê que é óbvio que é preciso atualizar e aumentar essas pensões. É também por isso que insistimos tanto e que foi tão importante a questão das reformas antecipadas. Esses pensionistas perderam poder de compra pelo simples facto de se terem reformado por antecipação, muitas vezes porque estavam em situação de desemprego e desespero e foram empurrados para uma reforma antecipada com muita penalização, em parte por escolha do anterior Governo. Continuamos a trabalhar para que haja aumentos extraordinários de pensões.

Não temos uma proposta concreta [para o aumento extraordinário de pensões].

Mariana Mortágua

Deputada do BE

Qual é o valor de aumento extraordinário de pensões que propõem?

Não temos uma proposta concreta. Tal como no IRS não temos uma proposta de valor em concreto, estamos a ver as várias possibilidades e neste momento temos as prioridades muito bem definidas e no âmbito das negociações aprofundaremos essa questão.

Há uma tensão entre Bloco e PCP para ver quem anuncia as medidas positivas?

Cada partido tem preocupação em poder dizer ao seu eleitorado que está a cumprir aquilo a que se comprometeu. Mas da mesma forma que é importante para cada partido poder dizer que está a cumprir e quais são as suas prioridades e que se bateu por essas medidas, também sabemos que o trabalho feito em conjunto no âmbito desta maioria parlamentar é o que permite qualquer medida, independentemente de quem a anuncia. Ela é sempre o resultado de um trabalho conjunto e de uma conjuntura política em que o BE e o PCP trabalham, para o mesmo lado e no mesmo sentido. Essa consciência de partilharmos a mesma direção, no sentido de caminho, é muito óbvia e está muito presente.

O Bloco já disse que quer avançar com novas regras de contribuições de recibos verdes. Para ter essas novas regras é preciso fazer também alterações ao regime fiscal desses trabalhadores?

Não necessariamente. Há um compromisso do Governo para fazer uma alteração sobretudo das contribuições para a Segurança Social, com prioridades que para nós são importantes e que qualquer pessoa que trabalhe a recibos verdes está farto de conhecer. São os buracos na carreira contributiva, as dívidas à Segurança Social que não acabam, fechar e abrir atividade, pagar Segurança Social quando não se trabalhou no mês anterior e não se tem dinheiro para a pagar.

Houve um trabalho conjunto, para que fosse criado um novo regime de contribuições para permitir aos trabalhadores em recibos verdes tapar estes buracos e conseguir carreiras contributivas longas sem estar em permanente dívida com a Segurança Social, ou a fazer pagamentos que não correspondem aos seus rendimentos. A grande proposta é aproximar as contribuições dos rendimentos das pessoas no tempo, em vez de pagar à Segurança Social com base nos rendimentos do ano passado, podendo não estar a ganhar nada este ano.

A criação de um mínimo de existência também para os trabalhadores independentes faz parte da forma de manter a uniformidade das regras?

Essa foi uma proposta que surgiu no âmbito das negociações. É pública já, é uma proposta meritória, vai no sentido positivo, mas faz parte do conjunto de medidas que ainda estão em discussão e que surgiram numa fase muito preliminar das negociações.

No ano passado apareceu o imposto Mortágua para ajudar a financiar a Segurança Social.

Apareceu um adicional ao IMI para ajudar a financiar pensões…

Este ano temos mais algum imposto?

Não temos nenhum imposto. A questão do financiamento da Segurança Social é complexa e não pode ser discutida apenas de ano para ano em pequenas medidas. A estrutura produtiva das sociedades, o valor acrescentado criado pelas empresas, já não depende tanto do trabalho como de tecnologia e de capital — e portanto na riqueza que se forma é justo que o capital passe a dar um contributo maior para financiar sistemas de Segurança Social.

Ainda mais quando o trabalho que existe é cada vez mais precarizado e com baixos salários. Nenhum sistema de Segurança social pode ser viável se estamos a pagar pensões de pessoas que tiveram alguns direitos laborais, e felizmente que tiveram, e entretanto se desestruturou toda a estabilidade que as pessoas tinham na sua vida de trabalho. E hoje vivem a 500 euros por mês, quando têm trabalho, e recibos verdes, ou estágios. Não se financia Segurança Social com isto, nem a nossa nem a de país nenhum.

Há duas prioridades: primeiro, sem salários altos, dignos, e estabilidade das relações laborais será sempre muito difícil ter uma Segurança Social financiada. Segundo, como é que se introduz no esquema de financiamento da Segurança Social uma dependência de outros fatores que não sejam unicamente o trabalho. Daí a proposta, histórica aliás, dos sindicatos de que a Segurança Social seja financiada com base no valor acrescentado das empresas. Se é o bruto, se é o líquido, há diferenças técnicas sobre isso. Essa é uma das vias. Outra consignar impostos, é caso do adicional ao IMI, que é por natureza sobre grande fortuna, sobre grande património, ajudando também à natureza redistributiva do sistema fiscal. Há outras possibilidades, mas é preciso é compreender o problema de fundo e não ter a tendência para usar pequenos remendos para resolver uma coisa que tem de ser resolvida do ponto de vista estrutural.

E quanto à proposta de aumentar a TSU para combater a excessiva rotatividade? Porque é que esta medida não avança?

Não é certamente por falta de vontade do BE.

Mas não tem sido trabalhada?

Tem sido, temos aliás falado bastante nessa proposta e insistido nela porque achamos que é uma boa proposta. É outra das propostas que permite ter alguma receita.

Não tem custos para o Orçamento?

Não, pelo contrário. A ter terá receita, porque é diferenciar as taxas de segurança social conforme o vínculo laboral que é criado, penalizando mais o trabalho temporário e incentivando mais o trabalho permanente. As vantagens são óbvias: incentiva-se a criação de vínculos laborais estáveis, com tudo o que isso traz de bom à sociedade, desincentiva-se o trabalho temporário, e conforme a medida for modelada pode trazer benefícios ao Orçamento da Segurança Social. Na altura quando foi apresentada, tinha uma receita fiscal bastante considerável.

Quanto?

350 milhões de euros no primeiro ano — era o que previa o PS.

Falemos de cativações: os valores aplicados em 2016 foram muito elevados. Em 2017 ficámos a saber recentemente que o Governo usou novamente essa ferramenta — vamos chamar-lhe assim — para a execução orçamental. Para o Orçamento de 2018 é aceitável ter um valor outra vez de mil milhões de euros de cativações ou mais?

Há duas questões nas cativações. A primeira é a questão metodológica, é a forma como elas aparecem e onde é que elas são discutidas ou não e a falta de transparência com que aparecem. A segunda são os valores e nós temos discutido ambas. Primeiro é a questão da transparência. Nós fizemos uma pergunta ao Governo e pela primeira vez conseguimos ter dados um pouco mais finos, que nos permitiram, por um lado, ver que em 2017 e em 2016 o montante foi muito elevado. Permitiram ver que este ano [o montante que permanece cativo] já está consideravelmente abaixo face a 2016…

Mas o valor de início foi muito elevado, foi ainda superior.

Claro. As cativações no Orçamento do Estado têm-se mantido estáveis ao longo do tempo. São quase cópias de orçamento para orçamento. Cativações legais, ou seja, aquilo que é legalmente cativado no início do ano. E essas não se têm alterado, têm vindo ao longo dos anos a ser o instrumento normal. Podemos discutir se são ou não elevadas demais — é outra conversa.

Só que adicionalmente a estas cativações, o Governo criou outro mecanismo através do decreto de execução orçamental, que é um decreto que não vem à Assembleia [da República], e que não é discutido. Isto já deixa de ser aceitável, porque acrescenta falta de transparência à falta de transparência que as cativações já tinham e traz problemas de discussão democrática do orçamento, em que se dá a possibilidade ao Governo de executar um orçamento que fica bastante distante do que foi discutido e votado na Assembleia da República.

Posto isso…

Há três coisas que têm de ser feitas: a primeira é preciso garantir que a Assembleia pode controlar e monitorizar as cativações — e para isso é preciso ter relatórios ou que nos dados de execução orçamental, mensalmente ou trimestralmente, possa vir discriminado onde é que as cativações estão a ser feitas… porque nós temos que ter o direito de poder questionar se quem tem as cativações é o INEM ou a CMVM ou qual é o instituto que está a sofrer destas cativações, onde é que elas estão a existir.

As cativações que houver têm que vir na lei do Orçamento do Estado e essa é a posição que nós temos e que já transmitimos ao Governo.

Mariana Mortágua

Deputada do BE

Em segundo lugar, é preciso que estas cativações não possam constar de documentos que não são discutidos na Assembleia da República. Se o Governo quer fazer cativações, tem que assumir que as quer fazer e colocá-las no Orçamento do Estado e levá-las à votação, porque é assim que o processo democrático funciona. As cativações que houver têm que vir na lei do Orçamento do Estado e essa é a posição que nós temos e que já transmitimos ao Governo.

E depois há obviamente o montante das cativações que é demasiado alto, mesmo historicamente, mas essa discussão tem que ter lugar no Orçamento do Estado que é o local próprio.

Mas há uns anos as cativações eram vistas como uma ferramenta de boa gestão, de controlo de receitas inflacionadas que depois não se concretizavam…

São uma ferramenta de gestão orçamental e ninguém questiona isso. Não questionando a existência de cativações teoricamente, é preciso ver: tem que ser uma ferramenta democrática, transparente, não exagerada… Porque uma coisa é ter cativações que permitam gerir os pormenores do orçamento, outra é usar sistematicamente as cativações como mecanismo para atingir metas do défice que depois não estão necessariamente ligadas às necessidades orçamentais. E há outra questão, que também é metodológica, que é quem é que tem o poder para cativar e descativar. Como é que se avalia as necessidades? Quem é que determina se a despesa numa escola é ou não mais urgente que a despesa num hospital? Quem toma essas decisões? Porque elas podem ser muito importantes. Por isso é que assumindo que é um instrumento de gestão orçamental, é um instrumento que tem de ser muito mais escrutinado. Era um bocadinho ciência oculta até começarmos a debater isto. Ninguém sabia muito bem o que era nem onde estava.

Mas têm servido para manter os serviços em austeridade? Os serviços ainda estão em viver em austeridade?

A partir do momento em que os orçamentos dos vários serviços públicos foram cortados de forma brutal em todas as áreas — transportes, educação, saúde… as pessoas sabem, foram milhares de milhões de cortes. Desde que este Governo entrou em funções, os orçamentos foram reforçados, todos eles genericamente. Não só o orçamento foi reforçado mas o executado foi reforçado. E portanto quando a direita diz “estão a cortar nos serviços públicos com as cativações”, não é verdade. É preciso ser justo na análise que se faz. Os orçamentos estão a ser reforçados. Há mais dinheiro gasto em todos os ministérios e serviços públicos. Agora também é verdade que esse mais dinheiro gasto não é o total do orçamentado, e fica aquém do orçamentado porque há cativações em muitos serviços. E havendo reforço orçamental na educação, na saúde, nos serviços públicos, esse reforço orçamental está muito aquém dos cortes que foram feitos pela direita. Em serviços públicos que já não eram propriamente os mais financiados.

De certa forma a necessidade de aplicar estas cativações não decorreu da opção de se ter uma política de devolução de rendimentos? Foi preciso fazer escolhas…

Isso é a narrativa da direita, que não tem nenhuma narrativa e tem que encontrar uma e portanto tenta opor devolução de rendimentos a serviços públicos quando na verdade, para já, ambas as coisas estão a ser feitas. E além disso é impossível dizer que uma coisa foi feita em detrimento da outra quando se acaba o ano com margem orçamental. Isso quer dizer que havia mais dinheiro para investir em serviços públicos e houve uma escolha de não o fazer.

Havia mais dinheiro para investir em serviços públicos e houve uma escolha de não o fazer.

Mariana Mortágua

Deputada do BE

O problema aqui não é se a manta vai mais para um lado ou mais para o outro. O problema é o tamanho da manta. E a verdade é que a manta pode ser maior neste momento. E são precisos os dois lados para recuperar aquilo que foi fustigado pela austeridade, tanto ao nível dos rendimentos, como dos serviços públicos, porque serviço público também é rendimento; melhorar o SNS também é rendimento para as pessoas… É preciso é aumentar a manta e ao nível dos serviços públicos há margem para reforçar estes orçamentos.

E é preciso reforçar, há muitos serviços públicos que continuam a sobreviver com grandes dificuldades. Não vale a pena dizer que está tudo bem, não está tudo bem. Não está tudo bem nos hospitais, não está tudo bem nas escolas, há passos que foram dados que são importantes mas que estão muito longe, a começar por quem mantém os serviços públicos, que são funcionários públicos e as carreiras estão congeladas há uma década. E trabalhar no serviço público quando não há progressão na carreira, quando não há perspetivas de evolução, quando se foi tão atacado não só monetariamente mas moralmente nos últimos anos, isso também conta. Isso também é importante recuperar, essa dignidade dos serviços públicos e de quem trabalha neles.

  • Margarida Peixoto
  • Grande Repórter
  • Miguel Couto
  • Paula Nunes
  • Fotojornalista

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