Raríssimas? Estas práticas são vulgaríssimas

Se nos esquecermos de pagar 50 euros de “selo do carro” é certo e sabido que vamos ter problemas. Mais à vontade ficamos se recebermos um apoio público de 500 mil euros e formos desleixados com ele.

Confesso que não consigo colocar Paula Brito e Costa – a quem, falha minha, só notei a existência com a reportagem da TVI – no “pelourinho” em que está colocada sem apelo nem agravo.

Não estou com isto a desvalorizar as suas práticas de gestão e, muito menos, os tiques despóticos, arrogantes e de uma enorme falta de ética que demonstra nos registos das reuniões internas. Pensar e agir daquela forma já é muito mau. Verbalizá-lo como ela o fazia demonstra uma total falta de noção e um perigoso sentimento de impunidade.

Ao mesmo tempo, sabendo-se o que hoje se sabe, é impossível não encontrar na fundadora da Raríssimas raras qualidades, que escasseiam no país.
Eu, que não consigo imaginar o que é perder um filho para uma doença depois de revirar meio mundo à procura de um milagre da medicina, só posso também vergar-me perante quem fez dessa perda o ponto de apoio para uma obra que é uma referência consensual entre quem percebe do assunto.

Parece evidente que a Raríssimas não era um “esquema” de fachada para encher os seus próprios bolsos. A instituição existe e presta, de facto, serviços de qualidade a muitas centenas de doentes que não os encontravam no país antes disso. É importante que a Raríssimas sobreviva à sua criadora que, num determinado momento, perdeu a noção da linha que separava os interesses e o dinheiro de uma e de outra.

Mas se chegou até aqui, é porque Paula Brito e Costa percebeu bem e desde cedo a forma como funciona uma boa parte do país, limitando-se a seguir, regra a regra e com mestria, essa cartilha. Senão, vejamos.

  1. A primeira noção é que sem o Estado do nosso lado é muito difícil chegar a algum lado. O Estado são os governos, as autarquias, as entidades fiscalizadoras ou licenciadoras. Seja qual for a área há sempre licenças, autorizações, papéis que “pedem deferimento”. Nos maiores negócios, ter “acesso” ao poder é fundamental. Porque facilita o recurso a financiamento, quando é caso disso, ou porque facilita o caminho dentro do labirinto burocrático. Os Belmiros de Azevedo que fazem questão de separar devidamente essas águas não abundam e na área social, por razões óbvias, esta é uma realidade sem excepções porque há sempre financiamento público associado. A velha questão é se a todas as exigências burocráticas e obstáculos administrativos corresponde um elevado nível de rigor e fiscalização do dinheiro dos contribuintes. Sabemos a resposta: não.
  2. A presença de “notáveis” é fundamental em qualquer projecto. Porquê? Porque é preciso ter acesso ao poder. É preciso ter o Estado do nosso lado – ou pelo menos não contra nós – para melhor sermos conduzidos no processo burocrático. A proximidade dos “embaixadores” aos poderes instituídos é grande e daí só podem vir coisas boas: são um apoio em caso de problemas, aumenta exponencialmente a visibilidade mediática da instituição, seja ela qual for; é quase uma certificação de seriedade à causa; depois de ter dois ou três “notáveis” associados (que podem ser da área política ou não) e que dão a cara ao nosso lado, todos os outros virão também. Havendo financiamento público, “o guito há-de aparecer” mais facilmente com pessoas importantes por perto. E o que faz mover estes “embaixadores”? Tratando-se de projectos remunerados, isso mesmo, o dinheiro. Se não, é sempre bom estar associado a causas nobres e contribuir para o bem comum – sim, não vamos ser cínicos, isso também existe com alguma frequência.
  3. A fiscalização do Estado é, salvo raras excepções, muito fraca. Uma dessas excpeções é, como sabemos, a máquina fiscal. Se nos esquecermos de pagar os 50 euros anuais de “selo do carro” é certo e sabido que vamos ter problemas. A falta não escapa à terrível máquina fiscal que pode até penhorar ordenados para se fazer pagar. Mais à vontade ficamos se recebermos um apoio público de 500 mil euros e formos desleixados na sua utilização. Como se viu neste caso da Raríssimas, nem as denúncias que já havia há meses fizeram mover o tal Estado que está a sempre a pedir mais um “papel” para tudo para depois não verificar nada. Não é de desprezar a importância que os “notáveis” também podem ter para atrasar, fazer esquecer ou mesmo ocultar fiscalizações mais inoportunas. Se estes forem politicamente bem posicionados podem ser decisivos. Como diz Frank Underwood: “o poder é muito semelhante ao negócio imobiliário. Tem tudo a ver com localização, localização, localização. Quanto mais próximo do poder maior é o valor da propriedade”.
  4. Os órgãos de fiscalização internos não funcionam. Se o Estado fiscaliza mal muitas entidades privadas não são também um grande exemplo. Assembleias gerais, conselhos fiscais, conselhos de auditoria, auditores internos e externos, conselhos de administração acima de comissões executivas… A imaginação não tem limites quando se fala de “governance”. O certo é que, por mais que na teoria tudo isto faça sentido, na prática e nos maiores grupos privados aquelas posições são ocupadas por “notáveis” (ver ponto 2., acesso ao poder) a quem se pagam avenças mensais ou “senhas de presença” bem simpáticas. Se nos casos do BPN, GES, PT ou Caixa sabemos que os órgãos de fiscalização não funcionaram porque haveriam de funcionar na Raríssimas? Nuns casos como noutros, está-se nesses órgãos para aprovar “de cruz” o que houver para aprovar. Aquilo são montras de “notáveis” ou de “senadores”, não são órgãos com utilidade prática.
  5. A linha que separa os interesses e deveres profissionais dos pessoais é muito difusa. No Estado, na política, nas empresas, nas instituições sociais. O motorista ao serviço do governante pode levar e buscar as crianças à escola ou levar o marido ou mulher aqui e ali? O cartão de crédito da empresa também serve para pagar o jantar com um amigo? A namorada ou namorado podem ir também numa viagem profissional à conta dos organizadores? Basta olhar para as relações familiares e pessoais neste governo e nos dirigentes socialistas para se perceber o potencial de conflitos de interesses que a mistura dos dois planos tem.

É óbvio que nada disto é aceitável, desculpável ou pode servir de atenuante. Mas neste caso, altamente mediatizado e entendível por todos, temos em pequena escala um mostruário do que se passa no país das elites políticas, económicas e sociais. Estas coisas não podem dar sempre bom resultado, pois não? E algo de errado andamos a fazer há muito tempo para continuarmos subdesenvolvidos.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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