Born to be Susegad
Susegad é a palavra que define Goa e Goa é a palavra que define o estado mais pequeno e relutantemente indiano.
Susegad não é estar quietinho. Susegad é uma doce herança da lusofonia: a luso-letargia. É a dolce vita à goês, é estar à patrão (outra palavra que ficou depois de mandar o til à fava) mesmo que só se esteja a água e pão (mais uma). É aquele vírus português que infetou as populações colonizadas, do Brasil a Cabo Verde, com certeza em Moçambique e determinantemente em Timor. É um vírus que bate mais forte com o calor. É aquele “deixa a vida te levar”, aquela cadeira a baloiçar, aquela intuição que o mundo não precisa de nós para rodar e que a pressa é inimiga da concentração, da concretização e sobretudo, da felicidade.
Susegad é a palavra que define Goa e Goa é a palavra que define o estado mais pequeno e relutantemente indiano. Foi por aqui e em Cochim que os portugueses montaram arraiais desde meados de 1500 e, sendo que só saíram há 57 anos, há ainda uma geração que arranha com prazer a língua de Camões.
“São portugueses? Eu também falo português.” E tratam logo de desenferrujar connosco as palavras que aprenderam com os avós. Que a língua tem o paradoxo da pérola — gasta-se se não for usada — e é aqui ostentada com nostalgia e vaidade, joia de família, herança emocional.
“Bem-vindos a Panaji”, antiga Pangim. Antes de ser capital de Goa, Pangim era uma vila piscatória onde desembarcaram os navegadores ainda à tremer de medo e enjoo, diretos à igrejinha caiada para agradecer a chegada. Tornou-se finalmente oficial no século XIX, com a decadência de Velha Goa (outrora conhecida como Ela, a Roma do Oriente por sua riqueza, importância e quantidade de igrejas por metro quadrado).
Não há português que não sinta em casa da avó quando chega ao bairro antigo, aqui em Panaji. Começa logo pelos apelidos das casas, parece que estamos num colégio do Estoril: estão cá os Bragança, os Menezes, os Collaço, os Álvares, os D’Sousa, os Fernandes, e por aí fora. Também cá está o melhor do catering de balcão, do croquete ao rissol, passando pela óbvia chamuça, o clássico chouriço e o maravilhoso pao. Mas o melhor deste bairro é ser a concretização daquela famosa expressão de ineficácia burocrática, “Ah, isto agora mete-se o Natal e, depois o Ano Novo, de modos que só lá para fevereiro”.
Com efeito, as Fontainhas ficam entre a Rua do Natal e a 31 de janeiro, de modo que é o sítio perfeito para estar susegad, dormir bem e comer melhor. O bairro vizinho de São Tomé — como a ilha indica –, pede que se prolongue o relaxe e, quanto ao Altinho… bom, o Altinho é para se subir quando se estiver fartinho de se estar em baixo. Além disso, a igreja da Imaculada Conceição é melhor a descer que a subir, com ou sem Santos a ajudar.
Além de uma comezaina no Club Vasco da Gama e típica passeata, de mãos atrás das costas, pela marginal do rio Mandovi, é mister explorar o forte dos Reis Magos e o forte Aguada, arriscar um jackpot de rupias num dos casinos aquáticos e aprender a atravessar a estrada. Este sim, é o primeiro desafio de um ocidental na Índia. Como em breve irão perceber, o fervor religioso vem destes momentos rápidos e furiosos, em que a pessoa se agarra ao Panteão que estiver mais à mão, seja hindu, muçulmano ou cristão.
Não é de boas famílias quem não for ver o antigo esplendor da Velha Goa, as suas variadas igrejas, a magnífica Basílica do Bom Jesus e a Sé Catedral, o “nosso” manuelino e o corpo quase incorruptível de São Francisco Xavier. Ao contrário dos navegadores que agradeciam a chegada, a minha velinha acesa pede fortuna na partida, uma aventura por terra a roçar o aborrecido, ventos mornos em velas moles. Uma viagem leve e fácil ou, como o jovem Camões aqui aprendeu a dizer em Konkani, uma viagem susegad… os Lusíadas podem esperar!
Crónicas indianas são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. Durante quatro meses, o ECO publica as melhores histórias da viagem à Índia. Pode ir acompanhando todos os passos aqui e aqui.
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