Como a pequena Valónia quase bloqueou o gigante acordo comercial entre UE e Canadá
Há finalmente "boas notícias" da Bélgica e o CETA vai para a frente. Mas porque é que a Valónia se recusava assinar o acordo de livre comércio entre a UE e o Canadá? E o comércio livre é uma coisa má?
Têm sido tempos difíceis para os defensores do comércio livre. Enquanto nos Estados Unidos os candidatos à Casa Branca Hillary Clinton e Donald Trump se digladiam sobre qual dos dois mais odeia os acordos de comércio livre NAFTA (da América do Norte) e TPP (dos países da orla pacífica), na Europa o TTIP (entre a UE e os Estados Unidos) levou milhares de pessoas para as ruas em protesto e as negociações parecem ter chegado a um impasse.
Agora é a vez do CETA, que esteve no centro de grande tensão ao longo desta semana ao ser colocado em risco por uma pequena região belga: a Valónia. Uma cimeira marcada para esta quinta-feira entre os líderes da União Europeia e o primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau, onde deveria ser assinado o acordo, chegou a ser desmarcada, avançou o jornal francês Le Monde, mas esta manhã chegaram as boas notícias: os belgas encontraram um compromisso, e o acordo vai para a frente.
O CETA, ou Acordo Integral de Economia e Comércio, eliminaria 98% das tarifas entre o Canadá e a União Europeia, e acabou de ser negociado em agosto de 2014, precisando depois de ser aprovado pelo Conselho da União Europeia, pelo Parlamento Europeu e por todos os Estados-membros — o veto de um só Estado-membro resultaria na falência do acordo.
Foi isso que esteve em jogo ao longo desta semana: parecia que a Bélgica ia ser impedida de assinar o acordo devido à oposição vinda de um dos seus parlamentos regionais, o da Valónia. Esta manhã, porém, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, já anunciava “boas notícias” vindas da Bélgica.
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Um encontro esta manhã entre os representantes das diferentes regiões belgas e o primeiro-ministro terminou com a decisão de ratificar o acordo, juntando uma nota interpretativa ao CETA que estipulará certas proteções: entre elas uma maior proteção dos serviços públicos do país e uma cláusula que permite não participar nas partes do acordo ligadas à agricultura.
O que é a Valónia afinal, e porque se opunha ao acordo?
A Valónia constitui mais ou menos metade da Bélgica — é a parte do país onde a maior parte das pessoas fala francês, e tem um parlamento regional próprio que frequentemente entra em disputa com a outra principal região: a Flandres, onde se fala holandês.
O ministro valão Paul Magnette é o principal ator que tem mobilizado a região contra o CETA. Numa entrevista esta terça-feira com o jornal francês Libération, Magnette explicou que não se opõe ao tratado em si. “Não sou anti-globalização, eu quero um acordo”, afirmou o ministro.
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Aquilo que considerava inaceitável era uma parte do acordo que já tem gerado controvérsia junto de outras organizações europeias: o facto de o tratado incluir a criação de um mecanismo de resolução de disputas entre investidores e Estados — ou seja, empresas estrangeiras que não concordassem com certas regulações num Estado onde se queriam instalar poderiam processar o próprio país. “Preferia que esta entidade desaparecesse completamente”, disse Magnette ao Libération.
Segundo Magnette, o Canadá concorda com a Valónia neste tema, que é “puramente interno à União Europeia”. A preocupação parte da ideia de que uma empresa pudesse processar um Estado por discordar com regras que, ao salvaguardar a segurança ambiental ou os direitos do consumidor, prejudicassem o seu negócio.
A Valónia também se opõe ao acordo por questões ligadas com a agricultura: os valões, assim como várias Organizações Não Governamentais europeias, consideram que o acordo abre o caminho para a Europa ser inundada de produtos agrícolas canadianos mais baratos e, teme-se ainda, de pior qualidade, que deixarão os agricultores europeus vulneráveis a uma concorrência que não conseguirão acompanhar.
Os valões defendem que deveria haver uma “exceção agrícola” no CETA, onde se leria que os produtos agrícolas não devem ser considerados como tendo apenas um valor comercial. O ministro valão da Agricultura, René Collin, expressou-o assim no Twitter: “As nossas quintas familiares devem ser preservadas, pelos nossos agricultores e… pela qualidade dos nossos pratos!” Este problema será, em parte, resolvido pela nota interpretativa a juntar ao acordo final.
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Quais são os prós e contras do CETA?
Segundo a União Europeia, após a aprovação do CETA os exportadores europeus vão poupar cerca de 500 milhões de euros em impostos todos os anos. A maior parte dos deveres aduaneiros desapareceriam, o que, explica um documento da Comissão Europeia (disponível aqui em PDF), não implica um afrouxar das imposições de segurança e qualidade da UE: “As importações do Canadá terão de cumprir as regulamentações da União Europeia”.
Além disto, as pequenas e médias empresas que façam exportação e importação de certos tipos de bens — incluindo, por exemplo, brinquedos, maquinaria, equipamento de medição ou eletrodomésticos — beneficiarão de uma uniformização dos testes de qualidade, o que significa que não será preciso testar os produtos duas vezes para exportar para a União Europeia e para o Canadá. “Isto é particularmente importante para as empresas mais pequenas, para as quais pagar duas vezes pelo mesmo teste é proibitivo”, lê-se no mesmo documento.
A União Europeia também argumenta que profissões sujeitas a regulamentações específicas como os arquitetos, os contabilistas ou os engenheiros vão ver as suas qualificações reconhecidas no Canadá, e vice-versa, e que será mais fácil para uma empresa multinacional que trabalhe no Canadá e na União Europeia transferir os seus funcionários para além das fronteiras.
Os críticos do acordo focam-se, por sua vez, no mecanismo que permitirá às grandes empresas processar Estados que aprovem novas leis ou regulamentações possam vir a reduzir os seus lucros futuros, que consideram um perigo para a proteção dos consumidores.
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Mas não é apenas isso. Muitos criticam o secretismo das negociações do CETA, que, como as do TTIP, foram realizadas à porta fechada, neste caso entre 2009 e 2014. O acordo, dizem várias organizações que se lhe opõem, favorece excessivamente as grandes empresas multinacionais e deixa os cidadãos individuais mais vulneráveis ao desemprego.
Têm ainda preocupações relacionadas com um possível afrouxamento das regulamentações ambientais que possa vir a prejudicar o meio ambiente dos países envolvidos. Argumentam ainda que as tarifas já são suficientemente baixas nas trocas entre o Canadá e a União Europeia.
Quais seriam as consequências de uma rejeição do CETA?
Para as relações económicas transfronteiriças da UE, haveria duas consequências principais: o falhanço do CETA abriria as portas para o fim do TTIP; e a dificuldade na sua aprovação mostra ainda como vai ser difícil para o Reino Unido criar um acordo favorável após oficializar o Brexit.
Do lado do TTIP, ou Acordo de Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimento: trata-se de um acordo de comércio livre que está a ser negociado entre a União Europeia e os Estados Unidos, e que tem sido muito criticado pelas mesmas razões que são apontadas ao CETA, com o Canadá. O TTIP é mais mediático e tem atraído atenção negativa das ONG, e além disso ainda tem de enfrentar dificuldades na sua outra casa: os Estados Unidos. Tanto Hillary Clinton como Donald Trump já se declararam anti-TTIP. Uma rejeição do CETA poderia ser o pontapé final no controverso tratado com os Estados Unidos.
Do lado do Reino Unido, muitos viam o CETA, com a quase eliminação das tarifas e a facilidade de movimento de trabalhadores de empresas multinacionais, como um bom modelo para um acordo futuro para os britânicos quando saírem da União Europeia, após o Brexit que aprovaram em junho por referendo. O fim do CETA é um mau augúrio para quem esperava uma solução mais aberta.
“Se não conseguimos com o Canadá, duvido que consigamos com o Reino Unido”, disse mesmo a comissária europeia do comércio, Cecilia Malmström, esta semana, citada pelo jornal The Guardian. Também o deputado britânico Tom Brake demonstrou uma posição semelhante ao afirmar que o bloqueio do CETA pela Valónia demonstra que os que defendem que o Reino Unido pode “fazer valer a sua força” depois do Brexit estão “iludidos”.
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Mas o comércio livre é uma coisa má?
O consenso entre os economistas é um retumbante “não”. O comércio livre, a longo prazo, é uma coisa boa. O problema é que muitas vezes as consequências adversas do comércio livre podem ser de grande impacto a curto prazo sobre uma parte específica da população, com perda de empregos em certos setores e grandes consequências a nível individual, enquanto as suas consequências positivas, que são de grande escala, são distribuídas por todos os cidadãos e por isso podem parecer pequenas.
Uma sondagem de 2012 realizada junto de mais de 50 economistas, realizada pela Universidade de Chicago, concluiu que 85% concordam que o comércio livre é bom a longo prazo, com 5% a responderem não ter a certeza, e sem nenhuma resposta negativa. Mas as ressalvas que os economistas sondados fizeram demonstram a importância de tomar em conta outros fatores que não apenas a economia pura e dura.
“Os ganhos e as perdas não estão distribuídos por igual”, disse o investigador da Universidade de Yale, Joseph Altonji, que “concordou muito” com a ideia de que o comércio livre era positivo. “Os programas de aprendizagem e treino são uma parte importante das políticas de comércio”, acrescentou, sublinhando assim que os governos devem tomar passos para ajudar aqueles que estão em risco de perder o emprego devido a uma maior abertura — por exemplo, os trabalhadores de fábricas que possam fechar devido à importação de produtos semelhantes feitos a custo inferior noutros países. Esta preocupação reflete a que a Valónia tem com o seu setor agrícola, cujas vulnerabilidades poderiam ser exploradas pelo CETA se não houvessem cláusulas de proteção.
A investigadora Caroline Hoxby, da Universidade de Stanford, tinha uma perspetiva semelhante: “A riqueza mundial é distribuída com mais eficiência sob o comércio livre, o que faz com que a pessoa média fique melhor. Mas os indivíduos podem enfrentar custos com o ajuste”.
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