Demasiada transpiração, tão pouca organização
Em vez de exibirmos as estatísticas, devíamos era estar a perguntar-nos: como é possível que tantas horas de trabalho em Portugal resultem em tão pouca produção?
Se houvesse um indignómetro decente — medidor das indignações nas redes sociais — ele certamente nos mostraria que, nos temas de economia, poucas estatísticas causam tanto clamor como aquela, já clássica, que compara o número de horas trabalhadas em cada país da União Europeia.
É assim há muitas décadas mas só na última, por razões fáceis de entender, se começou a olhar para isso. E esses motivos óbvios chamam-se troika, corte de feriados feito há uns anos, Angela Merkel e, mais recentemente, Jeroen Dijsselbloem.
Há uns dias o tema lá voltou, desta vez pela mão de um estudo do Observatório das Desigualdades do ISCTE, que agregou as estatísticas oficiais sobre o tema para voltar a concluir: sim, trabalhamos mais horas do que a média da União. Pior, em termos de indignação: trabalhamos até mais horas do que alemães e holandeses — este dado estava no título da notícia da TSF e tudo –, que uma vez ou outra não se inibiram de sugerir que aqui pelo Sul da Europa não se trabalha bem (como é óbvio, a declaração do ex-presidente do Eurogrupo sobre “copos e mulheres” bateu todos os recordes no indignómetro).
Eu duvido seriamente que ir buscar estas estatísticas para, regularmente, as “esfregar na cara” de quem sugere que temos muito a fazer para aumentar a produção seja uma boa ideia. E não é, certamente, um motivo de orgulho nacional. Antes pelo contrário.
Vamos focar-nos apenas na Alemanha. O que as estatísticas nos dizem é que em Portugal cada trabalhador trabalha, em média, 7% mais horas do que um seu colega na Alemanha. Ao mesmo tempo, os números informam-nos que cada trabalhador no mercado português produz anualmente, em média, menos 37,4% do acontece no mercado de trabalho alemão. Mais horas trabalhadas, muito menos produção e nós vemos nisso uma “medalha” que exibimos à primeira oportunidade? Devíamos era estar a perguntar-nos: como é possível que tantas horas de trabalho resultem em tão pouco? O que temos que fazer para mudar radical e rapidamente este estado de coisas?
A resposta estatística a este aparente paradoxo chama-se produtividade e está na base de enormes equívocos nos debates e entendimento destes temas: tempo de trabalho, produção, níveis salariais e o que daí resulta em países mais e menos ricos.
O que se passa é que a produtividade em Portugal — produção por cada hora trabalhada — é 46% inferior à que se verifica na Alemanha. Ou seja, em média, se em cada hora um trabalhador produz 100 na Alemanha, em Portugal esse valor é de apenas 54.
Os equívocos nestas discussões partem, muitas vezes, das confusões entre conceitos. A produtividade é um conceito de eficiência e não de resultado. Não deve, por isso, ser confundida com produção.
Se duas pessoas, em circunstâncias iguais, fabricam umas calças idênticas, elas produziram a mesma coisa. Mas se uma dessas pessoas gastou apenas metade do tempo da outra a fazer essas calças, então ela tem uma produtividade que é o dobro da segunda.
Maior produtividade significa o uso de menos recursos — horas, trabalhadores, dinheiro — para produzir a mesma coisa. E é isso que nos distingue, nesta matéria, dos países mais avançados do mundo — e também é por isto que eles são mais avançados e podem praticam salários mais elevados.
Há mil e uma explicações que justificam estas diferenças de produtividade, sendo que é impossível determinar com precisão aceitável quais são os contributos de cada uma para o problema.
Temos gestores e chefias pouco qualificados onde, muitas vezes, o problema começa, porque isso leva a empresas e métodos de trabalho mal organizados. Por outro lado, a produção média do país está colocada a num nível mais baixo da escala de valor, o que faz render menos os produtos fabricados — é mais produtivo fazer uma t-shirt branca que leva uma marca como Hugo Boss e é vendida por dezenas de euros do que uma t-shirt branca sem marca vendida numa feira de rua ou numa grande superfície por dois ou três euros.
O Estado também tem a sua fatia de responsabilidade, por obrigar os cidadãos e empresas a dedicar-lhe muitas horas com burocracias inúteis ou esperas em hospitais, tribunais e repartições várias.
A relativamente baixa qualificação média dos trabalhadores em Portugal também dá o seu contributo, embora talvez não seja este o grande problema, como durante muito tempo se pensou. Sinal disso são as unidades de multinacionais que, trazendo a sua cultura de gestão, atingem por cá produtividades e qualidade ao nível do melhor dos seus grupos.
E depois temos também questões culturais que atravessam as organizações: patrões e chefes que valorizam mais a presença no local de trabalho do que o resultado que daí resulta e trabalhadores que respondem à letra a esses péssimos estímulos e incentivos. Isto faz com que se confunda “horas de trabalho” com “horas passadas no local de trabalho”. Por isso, o que se arrasta até às 20h00 no escritório mesmo tendo feito muito pouco ao longo do dia está muito mais próximo do “colaborador modelo” do que o que entrou às 8h30 e saiu às 17h00 mas fez o dobro. Aquele “veste a camisola” da empresa; este está-se nas tintas e “já viram a que horas é que ele se balda?”. Em Portugal o mérito bem medido fica muitas vezes a perder para o “graxismo” nas suas mais variadas formas.
Estes são nós muito difíceis de desatar porque não se resolvem atirando com dinheiro para cima deles, como acontece com as infraestruturas ou os equipamentos físicos. “Hardware” temos nós com relativa fartura na economia. O problema essencial está ao nível deste “software” que implica capacidade de organização, liderança, posicionamento estratégico, construção de marcas e produtos com valor acrescentado, transferência de conhecimento e mais ênfase nas chamadas “soft skils” do que nas outras capacidades.
Decerto que ignorar ou desvalorizar o problema e toda a sua complexidade e importância não são um bom contributo para o resolver. Mas é isso que fazemos quando, à mínima questão, sacamos das estatísticas para, supostamente, salvar a honra colectiva: cá está, trabalhamos mais horas do que vocês.
A menos que queiramos seguir modelos asiáticos de economias de mão-de-obra barata e intensiva, esse não é um argumento que nos deva orgulhar ou que nos defenda do que quer que seja. Antes pelo contrário, é talvez o principal sintoma do nosso falhanço colectivo: demasiada transpiração mas pouca organização.
* O autor escreve segundo as normas do antigo acordo ortográfico.
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