Rumo ao défice zero? O “milagre” orçamental do Governo

O economista Joaquim Miranda Sarmento analisa as diferenças entre o Orçamento do Estado para este ano e o Programa de Estabilidade. E explica como a consolidação das contas públicas é conjuntural.

A apresentação do Programa de Estabilidade (PE) há duas semanas trouxe uma revisão do défice para 2018. Já não se prevê um défice de 1,1% (OE/2018), mas sim um défice de 0,3% (0,7% mas com um efeitos “one-off” que valem 0,4% PIB, entre Novo Banco, lesados do BES, incêndios e recuperação da garantia do BPP).

O défice para 2018 na versão do OE/2018

Em primeiro lugar, vale a pena olhar para este novo valor de 0,3%. O Governo previa para 2017, no OE/2018, um défice de 1,4% que depois se reduziria para 1,1% em 2018. Temos assim que a consolidação orçamental nominal entre 2017 e 2018 valia 0,3 p.p. Isto é, o efeito do ciclo económico somado às medidas discricionárias e à redução da despesa com juros representava em 2018 menos 0,3 p.p. de défice face a 2017.

O défice orçamental teria assim de se reduzir em 2018 cerca de 700 milhões de euros. Para alcançar esse objetivo, o Governo tinha medidas que, pelas minhas contas, agravavam o défice em cerca de 300 milhões de euros, ou seja, o défice tinha de ser reduzido em mil milhões de euros. O relatório do OE tem outro numero (o total das medidas dariam uma redução do défice de 500 milhões de euros), mas considerando apenas as medidas do lado da receita (que entre redução de impostos e aumento de outros impostos e aumento dos dividendos do Banco de Portugal, é neutra do ponto de vista orçamental) e as medidas do lado da despesa excluindo aquelas que são vagas e por explicitar, temos esse agravamento do défice.

Esta diferença de 800 milhões de euros vem dos 300 milhões de euros de “congelamento dos consumos intermédios” e dos 300 milhões de euros de “revisão da despesa” e 200 milhões de euros de “contenção da outra despesa corrente”).

Assim, o Governo contava com o crescimento económico para corrigir mil milhões de euros de défice nominal (cerca de 0,5% PIB). Perfeitamente alcançável com esta conjuntura extremamente favorável, desde que não houvesse muitos excessos do lado da despesa.

O défice para 2018 na versão do PE

Agora, o défice para 2018 passa a ser, sem “one-offs”, de 0,3%. Trata-se de uma revisão de 0,8 p.p. face ao objetivo de défice para 2018 constante do OE (ou seja, ao invés de 1.1% passa para 0.3%). Contudo, o ponto de partida (ou seja o défice de 2017) já não é 1,4% mas sim 0,9%. Como entre os 1,1% previstos no OE e os 03.% previstos no PE vão 0,8 p.p., temos que 0,5 p.p. são efeito “carry-over” do défice de 2017 ser mais baixo.

O que significa que a consolidação orçamental nominal já não é de 0,3 p.p. (passar de 1,4% para 1,1%) mas sim de 0,6 p.p. (passar de 0,9% para 0,3%). Na realidade, como vou explicar a seguir, o esforço de consolidação nominal é um pouco maior que os 0,6 p.p. que a simples observação da variação do défice pode induzir. É que as medidas tomadas para 2018 não são neutras do ponto de vista orçamental. No entanto, há uma outra diferença para 2018 entre o que foi apresentado no OE e o que foi apresentado agora no PE. E tem a ver com as medidas propostas para 2018.

No OE, o Governo previa medidas do lado da receita e despesa com impacto de redução do défice de 500 milhões de euros (embora as minhas contas, como referi, apontavam para que as medidas exequíveis agravassem o défice em 300 milhões de euros). Agora, no PE, o Governo prevê medidas para 2018 que agravam o défice em cerca de 80 milhões de euros. O que se alterou?

Do lado da receita, as medidas propostas no PE até tem um maior impacto na redução do défice face ao proposto no OE. No PE, as medidas do lado da receita reduzem o défice em quase 300 milhões de euros (tinham um impacto de 50 milhões de euros no OE). Essa diferença de 250 milhões de euros de mais receita resulta de mais 50 milhões de euros de fundos estruturais, mais 60 milhões de euros de derrama estadual (passou de 7% para 9%) e o descongelamento de carreiras na AP traduz-se num aumento de receita de IRS e segurança social de 150 milhões de euros.

Do lado da despesa, o OE previa medidas que, somadas, reduziam a despesa em 430 milhões de euros e o PE prevê medidas que, somadas, agravam a despesa em 360 milhões de euros, mesmo com uma maior poupança de juros (quase 100 milhões de euros). Esta diferença de mais de 900 milhões de euros resulta de 220 milhões de euros de combate e prevenção de incêndios, de mais 140 milhões de euros para o descongelamento das carreiras para além do que já estava previsto no OE/2018, mais 300 milhões de euros para prestações sociais e de o governo ter deixado cair uma das linhas mal explicadas, neste caso os 300 milhões de euros de “revisão da despesa”.

O défice para 2018

Assim, é exequível que o défice possa reduzir-se para o objetivo de 0,3%? Tendo como ponto de partida os 0,9%, as medidas propostas aumentam o défice em 400 milhões de euros (0,2% PIB) (são os 80 milhões de euros previstos no PE mais as medidas vagas de “congelamento dos consumos intermédios” e “contenção da outra despesa corrente”).

Temos, pois, que o ponto de partida do défice será de 1,1%, o que obriga a um esforço de consolidação orçamental já não dos 0,6 p.p. que falávamos atrás, mas sim de 0,8 p.p., ou seja, cerca de 1,6 mil milhões de euros. No entanto, o efeito do crescimento económico (3,7% crescimento nominal, ou seja, 2,4% de crescimento real mais 1,4% de deflator do produto) poderá representar uma redução do défice próxima de 1% (sobretudo se este crescimento em 2018 continuar a reduzir o desemprego de forma rápida, gerando assim um crescimento da receita fiscal acima do crescimento económico).

Basta ver que o défice de 2017 é de 1,5 mil milhões de euros (sem “one-offs”) e só o aumento de receita fiscal e contributiva em 2018 é de 2,5 mil milhões de euros. Quando o PIB cresce nominalmente 10 euros, a receita fiscal e contributiva cresce, de forma quase automática, entre 3 a 4 euros. Assim, há margem para reduzir o défice, e até há margem para algum aumento da despesa corrente primária, como veremos mais à frente.
E ainda há alguma margem de contenção de despesa no investimento público.

Eu sei que vão dizer que o investimento em 2017 foi de 1,7% do PIB. Mas para 2018, a previsão do PE é de 2,3%. Isto dá uma diferença de 0,5 p.p. do PIB (cerca de mil milhões de euros). Além de que há margem nas autarquias, que em 2017, ano de eleições, gastaram mais 400 milhões de euros que em 2016 (100 milhões de euros de despesas correntes e 300 milhões de euros de investimento).

Desta forma, creio que o governo pode alcançar, sem “one-offs”, um défice de 0,3%. Até acho que se o ministro Centeno continuar a impor-se ao Doutor Centeno (o do programa do PS), ao resto do governo (“que são todos Centeno”) e à geringonça (que se habituou a engolir sapos e já defende a primazia das Finanças Públicas e a necessidade de Contas Públicas equilibradas), pode mesmo chegar a um défice próximo de zero. Ou seja, apresentar um equilíbrio orçamental já em 2018.

Penso é que se chegarmos a um défice próximo de 0%, essa boa nova apenas será apresentada em março de 2019 (quando em contas nacionais se fecha o défice de 2018). Apresentando essa boa nova em março de 2019 e não em outubro de 2018, na discussão do OE/2019 (onde o ministro trará um défice em linha com os 0,3%), tem três vantagens:

  1. Facilita a aprovação do OE/2019 pela extrema-esquerda.
  2. Permite ao Governo dar uma boa noticia mais próximo das eleições europeias e das Legislativas.
  3. Permite ao ministro Centeno ter mais um trunfo na sua corrida à sucessão do Comissário Moscovici (que já veio dizer que quer fazer um segundo mandato).

Porque desce (tão pouco) o défice?

O problema é que, mesmo chegando a um défice de 0% em 2018, o resultado não é propriamente extraordinário. É mesmo relativamente pouco ambicioso.

Por um lado, Portugal tem ainda um dos défices mais elevados da União Europeia e da zona Euro. Mesmo sem a operação da CGD, um défice em 2017 de 0,9% coloca-nos em 19º lugar nos 28 Estados. Sendo que temos a terceira maior divida pública, isto deve preocupar-nos, e muito. Basta pensar que, neste contexto de crescimento internacional e europeu e de taxas de juro historicamente baixas, há 10 países com excedentes orçamentais. Mas o ponto principal é que entre 2015 e 2018, o défice terá descido pouco e de forma cíclica e não sustentável.

Olhando para a tabela abaixo, verifica-se que em 2016 o défice reduziu-se, nominalmente, em mil milhões de euros. Mas a redução da despesa com juros e o aumento dos dividendos do Banco de Portugal representaram 700 milhões de euros. Como houve um corte de mais de mil milhões de euros de investimento e um aumento de cativações face a 2015 de quase 400 milhões de euros, percebemos como 2016 foi um ano de política expansionista. Havia que fazer rapidamente as reversões de medidas tomadas entre 2010 e 2014, para segurar o acordo político da geringonça. A margem orçamental foi sobretudo direcionada para a reversão de salários e da sobretaxa de IRS, bem como para a descida do IVA da restauração.

Depois, chegámos a 2017 e há de facto uma redução do défice muito significativa. São quase menos três mil milhões de euros de défice, e mesmo com a poupança de juros e mais dividendos do Banco de Portugal, temos menos 2.5 mil milhões de euros de défice. É verdade que o investimento continuou bastante baixo, mas, mesmo assim, acima de 2016 e as cativações em 2017 foram menores que em 2016.

Como é que o défice se reduziu em 2.5 mil milhões de euros em 2017? A receita de impostos (recorde-se que as medidas de redução de alguns impostos – IRS e IVA da restauração – foram compensadas por aumento de outros impostos – indiretos), aumentou, por via do ciclo económico, 2,3 mil milhões de eurose a receita de contribuições sociais aumentou 1,1 mil milhões de euros. Estes 3,4 mil milhões de euros a mais de receita fiscal compensou a redução da outra receita corrente em 250 milhões de euros e da receita de capital em 150 milhões de euros. Tudo somado, a receita total cresceu três mil milhões de euros. Isso permitiu que a despesa corrente primária crescesse em 2017 cerca de 650 milhões de euros e ainda reduzir o défice no tal valor de 2,5 mil milhões de euros.

Vemos que, para 2018, mesmo sendo “mais ambicioso”, o governo apenas vai reduzir o défice em 600 milhões de euros, resultantes da redução de despesa com juros e do aumento dos dividendos do Banco de Portugal.

Caso se confirme o crescimento da receita fiscal e contributiva em 2,5 mil milhões de euros e da receita total em 3,4 mil milhões de euros, isso deixa ao governo uma “folga” de aumento da despesa corrente primária de 2,1 mil milhões de euros e de aumento do investimento de mil milhões de euros.

Explica-se assim como pode haver margem para cumprir o défice. Mas também como podíamos ser muito mais ambiciosos na consolidação orçamental. Só que, para o ano, há três eleições e o primeiro-ministro já disse que quer ganhar as três!

O défice estrutural

O Governo previa no OE/2018 que, para 2017, o défice estrutural fosse de 1.7% e em 2018 de 1.3%. Apresenta agora no PE um défice estrutural para 2018 de 0,6%. Ou seja, sem medidas de redução estrutural do défice, uma vez que o saldo de medidas discricionárias têm sido nulo ou ligeiramente negativo, como se explica que o défice estrutural se reduza de 2017 para 2018 em 1 p.p. do PIB?

A única explicação só pode ser a de revisão da série do PIB potencial. Essa revisão, se começou em 2013-2014, explica, via efeito cascata, isto é, via a melhoria do défice estrutural ao longo dos últimos 4-5 anos, este salto de um ponto percentual (p.p.) entre os dois documentos que o governo apresentou com seis meses de diferença.

Mas se esta diferença é difícil de explicar, ainda mais é o que se prevê para 2018 e anos seguintes. No PE, a redução do défice estrutural é de apenas 0,4 p.p. em 2018 e 0,3 p.p. em 2019, o que é inferior ao recomendado pela Comissão Europeia (redução não inferior a 0,5% PIB para países que ainda não atingiram o objetivo orçamental de médio prazo que no caso de Portugal é um saldo estrutural de 0,25% do PIB, o que no PE é atingido em 2020).

Creio que haverá uma ausência de redução do défice estrutural entre 2017 e 2019. Nesse caso, a redução do défice estrutural no PE estará sobrestimada porque o Governo prevê crescimentos do PIB potencial muito acima do previsto pelas instituições internacionais, e com maior PIB potencial, a componente estrutural das receitas é maior e o défice estrutural menor. Isto é, com as estimativas de crescimento do PIB potencial que conhecemos do OE/2018 não há qualquer redução do défice estrutural, mantendo-se este em torno dos 2%.

Veremos o que a Comissão Europeia dirá na sua avaliação, que vai ocorrer durante o mês de maio.

Síntese final

Este PE mostra como a consolidação orçamental tem sido conjuntural e baseada em fatores cíclicos. Faltam propostas de reformas estruturais. Se o PE traduz o Plano Nacional de Reformas, os efeitos de tais reformas estruturais não estão visíveis na evolução das contas públicas.

Bem pode agora o ministro Centeno falar de poupar para os tempos difíceis e que é necessário preparar o país para os embates recessivos futuros. Isso andámos muitos a dizer desde 2016. Veio com dois anos de atraso, senhor ministro. E agora, em cima de um ano eleitoral e com o senhor já a olhar para Bruxelas, pouco ou nada vai conseguir fazer. Mesmo que chegue ao défice zero, isso será ilusório. Será nominal e conjuntural. Estruturalmente, os problemas só se agravaram desde 2016. Na próxima recessão, Portugal voltará a confrontar-se com os mesmos problemas de Finanças Públicas.

“Se os nossos príncipes de Itália, depois de governarem, vierem as perder os seus reinos, que não acusem a sorte, mas sim a falta de coragem”. Maquiavel

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