“Artº 93º: Cada Deputado tem um voto” e outras piadas parlamentares

O aprofundamento do pântano parlamentar permite que se diga que “são todos iguais”. Porque fazem todos o mesmo? Não. Mas uns fazem perante a passividade cúmplice de todos.

A partir do momento em que se conheceu que havia deputados a fazer o registo de presença nas sessões parlamentares por outros, sabia-se que era uma questão de tempo até chegarmos ao nível seguinte, muito mais grave: deputados que votam diplomas por outros que não estão presentes em plenário.

O caso concreto que já se conhece – outros serão conhecidos proximamente, não haja ilusões – é este, passado na bancada do PSD: a deputada Mercês Borges votou duas vezes o Orçamento do Estado para 2019. Uma por si e outra pelo seu colega Feliciano Barreiras Duarte que, nessa tarde, não estava no Parlamento por motivos de saúde familiar.

Podemos dar as voltas que quisermos para tentar desvalorizar esta prática. Podemos sustentar que isso não alterou o desfecho da votação, o que é verdade, já que o Orçamento seria aprovado da mesma forma com ou sem voto de Feliciano Barreiras Duarte. E podemos afirmar que a regra é haver um sentido de voto por bancada, o que também é real, desvalorizando o voto individual.

Claro que estes argumentos nos fazem, de imediato, colocar novas questões: se assim é, porque é que a prática é o voto individual, uma farsa de decisão pessoal que afinal não existe?

Por muito que se argumente, isso não altera a essência do acto: trata-se da prática de fraude na votação de diplomas que têm impacto, muitas vezes significativo, na vida de milhões de cidadãos. Fraude que ocorre no último local onde podia: a casa onde se sentam os representantes dos eleitores, o órgão legislativo máximo que deve a sua legitimidade à realização de eleições livres e não fraudulentas.

Os juristas saberão responder: uma lei aprovada no Parlamento de forma fraudulenta pode ter a sua aplicação contestada nos tribunais? Que Caixa de Pandora pode isto abrir?

Esta casa onde se fazem as leis não pode ser a primeira onde elas se violam de forma grosseira e despreocupada.

É provável que alguns deputados e os próprios órgãos da Assembleia da República, a começar pelo seu presidente Eduardo Ferro Rodrigues, não conheçam o Regimento que, no artigo 93º diz sobre o voto dos deputados:

  1. Cada Deputado tem um voto.
  2. Nenhum Deputado presente pode deixar de votar sem prejuízo do direito de abstenção.
  3. Não é admitido o voto por procuração ou por correspondência.
  4. O Presidente da Assembleia só exerce o direito de voto quando assim o entender.”

Só isso justifica a leveza, a roçar a leviandade, com que reagiram a esta revelação, como se se tratasse de uma falha administrativa menor, sem importância e o “business as usual” parlamentar.
Sobre a deputada Mercês Borges, vale a pena reproduzir a mesma notícia do Observador que registou as suas declarações:

  • “Mercês Borges não vê mal em ter registado Feliciano Barreiras Duarte para efeitos de votação e admite que já carregou ‘muitas vezes por vários outros colegas’. E acrescentou: ‘Isto não é só no PSD que acontece, é em todas as bancadas.’

A deputada admite que, ‘se o computador estava ligado’ ao seu lado, pode ‘ter carregado no botão porque a ideia que tinha era que ele ia voltar. Não foi com nenhum instinto de maldade, não foi por vigarice’. A deputada acrescenta: ‘Que atire a primeira pedra quem não sabe que isto acontece’. Lê-se e não se acredita. É tão desconcertante que fica a dúvida se é ingenuidade a mais ou noção de responsabilidade a menos.

Também é sintomático que a deputada se tenha demitido de cargos na bancada parlamentar – era presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito ao Pagamento de Rendas Excessivas aos Produtores de Electricidade e coordenadora da bancada do PSD na Comissão do Trabalho -, quando não foi no exercício destes que cometeu a fraude na votação parlamentar. Mas que se tenha mantido como deputada, este sim o cargo eleito que não soube honrar, onde é depositada a confiança dos eleitores e no exercício do qual violou as regras. Tudo errado, do início do fim.

A tibieza da reacção parlamentar, a começar pelo habitual “agarrem-me senão ainda convoco uma conferência de líderes” de Ferro Rodrigues, mostra a falta de noção do que se está a passar.

Como é que políticos tão experimentados, competentes e na sua larga maioria sérios, não entendem que o Parlamento está a afundar-se numa grave crise reputacional por uma sucessão de práticas imorais, ilegais ou mesmo criminais, que não estão a ter qualquer resposta da instituição?
Estão a deixar tudo para o Ministério Público resolver?

O tema começa a ser cansativo e redundante mas, a cada novo capítulo que é revelado, ainda se consegue ir mais fundo no pântano. A incapacidade de reacção é que continua intacta.

Não basta que algumas das restantes bancadas – PCP, CDS e BE – venham dizer que estas práticas são graves, garantindo que nas suas “casas” elas não ocorrem. Acredita-se que é verdade até porque se não for o risco de poderem ser desmentidos é elevado.

Nem basta ao PS, num registo diferente de quem não põe as mãos no fogo, vir dizer que se deputados socialistas o fizessem “não tinham o direito de permanecer no âmbito do grupo parlamentar do PS”.

Aliás, quando é o líder parlamentar do PS, Carlos César, a falar de padrões éticos no Parlamento isso diz-nos bem do nível a que já chegámos. Ele que recebe um subsídio pago pelos contribuintes por viagens que faz para os Açores que já tinham sido pagas pelos mesmos contribuintes através de subsídio parlamentar, achando tudo isto normal e muito ético, no que é apoiado pela presidência da AR.

Os deputados, todos, têm que ter a noção que é a imagem do Parlamento que está em causa e que a instituição é sempre mais importante e vital do que o eleito A ou B. Estes passam, mas a instituição fica.

Em defesa da instituição e do que representa no regime democrático, não podem permitir que uma dúzia ou duas de elementos com práticas ilegais e inaceitáveis ponham em causa todo o Parlamento e cada um dos 230 deputados eleitos directamente pelos cidadãos.

O encobrimento mútuo e a absoluta falta de vontade em apurar de forma independente e total o nível de irregularidades de que estamos a falar abrem todo o espaço a que se diga que “são todos iguais”. Porque fazem todos o mesmo? Não. Mas uns fazem perante a passividade cúmplice de todos.

Quando uma deputada afirma que “isto não é só no PSD que acontece, é em todas as bancadas” e “que atire a primeira pedra quem não sabe que isto acontece” e não há, no momento seguinte, uma reunião de emergência, a noção da gravidade do que está e causa e o início de uma auditoria profunda e independente às presenças e votações no Parlamento, podemos mesmo pensar que “são todos iguais”, ainda que não façam todos o mesmo.

São casos a mais: moradas falsas, duplo subsídio para viagens para as ilhas, ajudas de custo sem necessidade de justificação, presenças falsas nas sessões, fraudes nas votações, total opacidade nos salários dos deputados, auditorias do Tribunal de Contas a apontar várias graves irregularidades.

É triste que não haja ninguém à altura de travar a decadência do Parlamento. Mas não tenhamos dúvidas: quando o populismo anti-regime nos entrar pela porta dentro, todos vão dizer que não têm qualquer responsabilidade nisso. Mas têm. E muita.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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