Descobri que sou incompatível com a minha mulher

O governador do Banco de Portugal tem um conflito de interesses na Caixa. A vice-governadora também. Os advogados escolhidos também. Isto não é um conflito de interesses, é uma explosão de interesses.

Já vamos ao governador que pediu escusa de participar na análise à auditoria à Caixa Geral de Depósitos (CGD) por ter sido administrador do banco público num período negro que está a ser investigado pelo próprio Banco de Portugal.

Comecemos antes por Elisa Ferreira, cujo marido foi vice-presidente da La Seda, uma das empresas cujo calote deu maior prejuízo à Caixa. E pelos escritórios de advogados — Vieira de Almeida e Linklaters — que foram escolhidos pela Caixa para analisar os atos de gestão desse período para, eventualmente, colocar ações de responsabilidade civil sobre ex-gestores. O problema é que esses escritórios trabalharam com alguns desses ex-gestores ou clientes da Caixa.

É caso para dizer que somos um país pequeno. O problema é que mesmo depois de detetarmos estes conflitos de interesse, nem sempre os eliminamos e continuamos a conviver com eles. É quando deixamos de ser um país pequeno e passamos a ser um país pequenino. Vamos por partes, sem grande esperança de chegar a parte alguma.

Casamento por amor e não por compatibilidade

Comecemos então pela socialista Elisa Ferreira. Escreve a agência Lusa que Fernando Freire de Sousa, marido de Elisa Ferreira, foi secretário de Estado para a Competitividade e Internacionalização do governo PS de António Guterres e é, atualmente, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N).

Fernando Freire de Sousa foi ainda vice-presidente da La Seda entre 2004 e 2008. Na lista dos créditos mais ruinosos da Caixa, o pior de todos foi precisamente o dado à Artlant (nome dado ao projeto químico de Sines) para o financiamento de uma fábrica da La Seda. A Caixa emprestou mais de 350 milhões de euros e já deu como perdidos 211 milhões, ou seja, 60% desse empréstimo.

Duarte Pacheco do PSD tem razão quando questiona “se não existirá na administração do Banco de Portugal outros administradores [para além de Carlos Costa], que por razões diretas ou familiares, não terão o mesmo problema e não deviam pedir escusa da análise à auditoria”.

Elisa Ferreira também devia pedir escusa de lidar com assuntos relacionados com a auditoria à Caixa. A vice-governadora não tem culpa de ter sido apanhada na situação em que está — as pessoas casam-se por amor e não por compatibilidades — mas, a partir do momento em que está nessa situação tem, obrigatoriamente, de pedir escusa. Quanto mais tarde o fizer pior é, eticamente e juridicamente, já que eventuais decisões contraordenacionais do Banco de Portugal correm o risco de vir a ser impugnadas se tiverem a sua assinatura.

O pai de Gabriela e a mulher de Siza

Basta seguir o exemplo de um outro regulador. Gabriela Figueiredo Dias, quando chegou a presidência da CMVM, pediu de imediato escusa de lidar com assuntos relacionados com o BPI (que estava a ser alvo de uma OPA do Caixabank) já que Jorge de Figueiredo Dias, vogal do BPI, é o pai de Gabriela Figueiredo Dias.

Também nos lembramos de Siza Vieira, o mais incompatível dos ministros do António Costa. Além do caso EDP e da empresa de imobiliário, quando ficou com a pasta da Economia e a tutela do Turismo foi-lhe apontado o dedo por eventuais incompatibilidades, já que a mulher dirige a Associação de Hotelaria de Portugal.

Na altura, Siza disse que “nos termos da lei e conforme dita a minha consciência, declarar-me-ia impedido de atuar” quando fosse confrontado com decisões sobre o setor. Acrescentou, em jeito de ironia: “descobriram, ao fim de 30 anos, que sou incompatível com a minha mulher”.

Três advogados para fazer o trabalho de um

Também no capítulo das incompatibilidade e dos conflitos de interesse, Paulo Macedo foi ao Parlamento revelar que a Caixa não vai contratar nem um, nem dois, mas “pelo menos” três escritórios de advogados para tratarem da auditoria da EY e apurar se há motivos para colocar ações de responsabilidade civil sobre ex-gestores do banco público: a Vieira de Almeida, a Linklaters e a Sérvulo.

Dos cinco processos que estão a ser analisados, a VdA invocou incompatibilidades em dois deles, já que ex-gestores ou clientes da Caixa foram também clientes do escritório. Então foi preciso escolher, além da VdA, a Linklaters que também veio invocar incompatibilidade num dos processos. Então foi preciso contratar, além da Vieira de Almeida e da Linklaters, a Sérvulo. Paulo Macedo admitiu, na Assembleia da República, que poderia ainda ir buscar outros escritórios se continuassem a surgir situações de conflitos de interesse.

Isto levanta duas questões: a Caixa não tem mais sítio onde gastar o nosso dinheiro? Se, por exemplo, a VdA tem um conflito de interesses porque esteve com Manuel Fino no passado (mais um dos que deu um calote à Caixa), faz sentido que decida sobre ações de responsabilidade civil de gestores que deram créditos a Manuel Fino ou outros clientes igualmente ruinosos?

Carlos Costa e os pontos nos ii

Sabe o leitor quem foi administrador da Caixa que aprovou esse crédito ruinoso a Manuel Fino? A revista Sábado escreve que o atual governador do Banco de Portugal, que era administrador da Caixa no período negro de Armando Vara e Santos Ferreira, participou nas reuniões que aprovaram créditos a operações ruinosas como as de Manuel Fino, Joe Berardo e Vale do Lobo.

Carlos Costa tem um passado duvidoso na banca comercial, que vai das offshores do BCP à aventura da Caixa em Espanha quando ele tinha o pelouro da internacionalização. No banco central, como ficou assente nas comissões de inquérito, o seu papel para prevenir o colapso do BES e do Banif foi medíocre e tardio. Sabe-se agora, teve a sua quota-parte de responsabilização na aprovação dos créditos mais ruinosos da Caixa. Créditos que estão a ser investigados pelo próprio Banco de Portugal, instituição a que preside. Conta o Jornal Económico que Carlos Costa está fora dos lote dos gestores que estão a ser investigados pelo Banco de Portugal, vá-se lá saber porquê.

Carlos Costa anunciou na sexta-feira que vai pedir escusa de participar nas decisões do Banco de Portugal que tenham a ver com a Caixa e com a auditoria da EY. No caso de Elisa Ferreira chega, mas no caso de Carlos Costa não basta pedir escusa. O governador está na posse da auditoria da EY há sete meses e só agora que o documento veio a público, por causa de Joana Amaral Dias, é que sentiu um rebate de consciência e resolveu pedir escusa.

Carlos Costa é a prova viva de que o cargo de governador de banco central é inamovível. Vamos pôr os pontos nos is. Não há incoerência, incúria, incómodo, incompetência ou incompatibilidade que o façam sair do lugar.

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