Plano franco-alemão quer criar “campeões industriais europeus”. Estratégia pode ser “perigosa”
França e Alemanha consideram que as empresas europeias estão em grande desvantagem a nível mundial. Querem "campeões europeus", mas a proposta suscita preocupação.
Paris e Berlim decidiram avançar com uma nova estratégia para transformar a política industrial europeia e reformar as regras da concorrência da UE, por forma a permitir a emergência dos chamados “campeões industriais europeus”. Mas a proposta suscita preocupação. Pode ser “perigosa”.
Ainda que partilhando as preocupações sobre as dificuldades da Europa em desenvolver mais empresas líderes a nível mundial, a CIP rejeita a ideia do “regresso a políticas nacionais de aposta em ‘campeões'”. Por outro lado, vários observadores consideram “perigosa” a alteração das regras europeias que transfere para os governos o “controlo político” de decisões na área da concorrência — uma competência da Comissão –, e que poderá reforçar o poder dos Estados-membros com maior peso.
A estratégia que Paris e Berlim propõem passa pelo investimento massivo na inovação, em particular na inteligência artificial, e pela revisão de algumas regras relativas à fusão de empresas. O objetivo é favorecer a criação de “campeões europeus” capazes de competirem com as grandes empresas norte-americanas e chinesas nos mercados mundiais. “Hoje, entre as 40 maiores empresas do mundo apenas cinco são europeias”, diz o Manifesto para uma Política Industrial Europeia adaptada ao século XXI, apresentado pelos ministros da Economia dos dois países.
Hoje, entre as 40 maiores empresas do mundo apenas cinco são europeias.
A iniciativa surge após o “chumbo” de Bruxelas à fusão da Alstom (fabricante francês do TGV) com a Siemens (líder industrial sedeado na Alemanha) para criar um novo “campeão europeu” no setor ferroviário. A Comissão considerou que a operação teria um impacto negativo no mercado europeu e nos consumidores, reduzindo significativamente a concorrência.
Os governos alemão e francês consideram que a Europa só continuará a ser uma potência industrial em 2030 se os Estados-membros unirem forças em termos de financiamento, competências e know-how.
Paris e Berlim querem que a nova estratégia industrial europeia, baseada no Manifesto, seja executada já pelo próximo executivo comunitário — que deverá tomar posse até ao final do ano –, e esperam que os outros Estados-membros se associem. Pretendem apoiar a nível europeu projetos deep tech nas áreas da energia, clima, tecnologias digitais e segurança. Propõem uma estratégia no âmbito do InvestEU (conjunto de instrumentos financeiros para apoiar o investimento na UE) capaz de mobilizar fundos privados para financiar startup e empresas inovadoras.
Os governos alemão e francês apostam igualmente em reforçar a cooperação, entre ambos e na UE, no domínio da inteligência artificial através de uma rede comum de investigação e inovação sobretudo nas áreas da saúde, transportes e robótica, com ligação às empresas.
Em termos concretos, os dois países anunciaram um orçamento de 1,7 mil milhões de euros para desenvolver a produção de baterias para carros elétricos na Europa e diminuir assim a dependência em relação a fornecedores asiáticos. Os dois países querem identificar consórcios credíveis no setor automóvel e esperam que outros Estados-membros se juntem a este projeto.
Rever as regras da concorrência na UE
França e Alemanha consideram que as empresas europeias estão em grande desvantagem a nível mundial já que outros países “subsidiam massivamente” as suas próprias empresas. Enquanto não há “regras mais equitativas à escala mundial”, o manifesto franco-alemão propõe “modificações nas regras europeias da concorrência”.
Paris e Berlim sugerem atualizar as orientações relativas às concentrações de empresas por forma a terem em conta a concorrência a nível mundial, e não apenas na UE. E propõem uma alteração polémica que permite ao Conselho (governos) recorrer de decisões da Comissão — na área das fusões –, alterá-las “em casos bem definidos”, o que na prática sobrepõe o poder do Conselho ao da Comissão.
“Isto abre a porta a uma politização da política de concorrência e de fusões”, diz Guntram Wolff. O diretor do Bruegel, principal think tank económico em Bruxelas, tem “sérias dúvidas” sobre este “caminho perigoso” de “controlo político” da política de concorrência que deve ser exercida pela Comissão Europeia, e que é “independente”. A Comissão é garante a igualdade de tratamento, sublinha. Facilitar na política de fusões pode inclusive ter “consequências nos mercados”.
"A CIP rejeita a ideia de regresso a políticas nacionais de aposta em ‘campeões’, através da concessão de auxílios de Estado, na medida em que conduziria a distorções de concorrência no mercado único europeu.”
Em declarações ao ECO, o presidente da CIP concorda com “a necessidade de uma maior flexibilidade na avaliação dos mercados relevantes, nas orientações relativas às concentrações, por forma a ter mais em conta a concorrência a nível global”. Mas António Saraiva garante que “a CIP rejeita a ideia de regresso a políticas nacionais de aposta em ‘campeões’, através da concessão de auxílios de Estado, na medida em que conduziria a distorções de concorrência no mercado único europeu, particularmente prejudiciais para as empresas dos países com menor capacidade financeira”.
Para que o potencial do mercado único possa ser plenamente alcançado, António Saraiva defende “eliminar as barreiras que ainda subsistem quanto à livre circulação de mercadorias e à livre prestação de serviços, contrariar a introdução de medidas nacionais que prejudicam o seu bom funcionamento e avançar com determinação em domínios onde a fragmentação dos mercados é mais notória”, como a energia e a economia digital.
Já Johan Bjerkem, analista no European Policy Centre, defende que o manifesto franco-alemão tem “muitas coisas úteis” como a aposta na inovação e na inteligência artificial. Reconhece que a França e Alemanha, com mais empresas competitivas a nível mundial, “têm mais interesse” em criar campeões industriais. Em relação a uma possível alteração das regras da concorrência, antevê que “os países nórdicos e talvez outros, como Portugal, possam ser mais relutantes” e que poderá haver um “debate muito forte” entre os países com mais peso e outros que vão estar contra a proposta.
Bruxelas não mostra entusiasmo. Numa declaração ao ECO, um porta-voz da Comissão lembra que a “política da concorrência rigorosa, equilibrada e efetiva é um dos pilares do mercado interno”. “O controlo europeu das fusões é uma história de sucesso”, sublinha. Ainda assim, a Comissão está disponível para debater com os Estados-membros propostas que possam surgir.
Entretanto, alguns países estão já a marcar terreno. O primeiro-ministro da Letónia afirmou esta sexta-feira que a ideia de criar campeões europeus “não faz sentido” porque isso não cabe aos políticos.
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