Plano franco-alemão quer criar “campeões industriais europeus”. Estratégia pode ser “perigosa”

  • Vasco Gandra, em Bruxelas
  • 23 Fevereiro 2019

França e Alemanha consideram que as empresas europeias estão em grande desvantagem a nível mundial. Querem "campeões europeus", mas a proposta suscita preocupação.

Paris e Berlim decidiram avançar com uma nova estratégia para transformar a política industrial europeia e reformar as regras da concorrência da UE, por forma a permitir a emergência dos chamados “campeões industriais europeus”. Mas a proposta suscita preocupação. Pode ser “perigosa”.

Ainda que partilhando as preocupações sobre as dificuldades da Europa em desenvolver mais empresas líderes a nível mundial, a CIP rejeita a ideia do “regresso a políticas nacionais de aposta em ‘campeões'”. Por outro lado, vários observadores consideram “perigosa” a alteração das regras europeias que transfere para os governos o “controlo político” de decisões na área da concorrência — uma competência da Comissão –, e que poderá reforçar o poder dos Estados-membros com maior peso.

A estratégia que Paris e Berlim propõem passa pelo investimento massivo na inovação, em particular na inteligência artificial, e pela revisão de algumas regras relativas à fusão de empresas. O objetivo é favorecer a criação de “campeões europeus” capazes de competirem com as grandes empresas norte-americanas e chinesas nos mercados mundiais. “Hoje, entre as 40 maiores empresas do mundo apenas cinco são europeias”, diz o Manifesto para uma Política Industrial Europeia adaptada ao século XXI, apresentado pelos ministros da Economia dos dois países.

Hoje, entre as 40 maiores empresas do mundo apenas cinco são europeias.

Manifesto fraco-alemão

A iniciativa surge após o “chumbo” de Bruxelas à fusão da Alstom (fabricante francês do TGV) com a Siemens (líder industrial sedeado na Alemanha) para criar um novo “campeão europeu” no setor ferroviário. A Comissão considerou que a operação teria um impacto negativo no mercado europeu e nos consumidores, reduzindo significativamente a concorrência.

Os governos alemão e francês consideram que a Europa só continuará a ser uma potência industrial em 2030 se os Estados-membros unirem forças em termos de financiamento, competências e know-how.

Paris e Berlim querem que a nova estratégia industrial europeia, baseada no Manifesto, seja executada já pelo próximo executivo comunitário — que deverá tomar posse até ao final do ano –, e esperam que os outros Estados-membros se associem. Pretendem apoiar a nível europeu projetos deep tech nas áreas da energia, clima, tecnologias digitais e segurança. Propõem uma estratégia no âmbito do InvestEU (conjunto de instrumentos financeiros para apoiar o investimento na UE) capaz de mobilizar fundos privados para financiar startup e empresas inovadoras.

Os governos alemão e francês apostam igualmente em reforçar a cooperação, entre ambos e na UE, no domínio da inteligência artificial através de uma rede comum de investigação e inovação sobretudo nas áreas da saúde, transportes e robótica, com ligação às empresas.

Em termos concretos, os dois países anunciaram um orçamento de 1,7 mil milhões de euros para desenvolver a produção de baterias para carros elétricos na Europa e diminuir assim a dependência em relação a fornecedores asiáticos. Os dois países querem identificar consórcios credíveis no setor automóvel e esperam que outros Estados-membros se juntem a este projeto.

Rever as regras da concorrência na UE

França e Alemanha consideram que as empresas europeias estão em grande desvantagem a nível mundial já que outros países “subsidiam massivamente” as suas próprias empresas. Enquanto não há “regras mais equitativas à escala mundial”, o manifesto franco-alemão propõe “modificações nas regras europeias da concorrência”.

Paris e Berlim sugerem atualizar as orientações relativas às concentrações de empresas por forma a terem em conta a concorrência a nível mundial, e não apenas na UE. E propõem uma alteração polémica que permite ao Conselho (governos) recorrer de decisões da Comissão — na área das fusões –, alterá-las “em casos bem definidos”, o que na prática sobrepõe o poder do Conselho ao da Comissão.

“Isto abre a porta a uma politização da política de concorrência e de fusões”, diz Guntram Wolff. O diretor do Bruegel, principal think tank económico em Bruxelas, tem “sérias dúvidas” sobre este “caminho perigoso” de “controlo político” da política de concorrência que deve ser exercida pela Comissão Europeia, e que é “independente”. A Comissão é garante a igualdade de tratamento, sublinha. Facilitar na política de fusões pode inclusive ter “consequências nos mercados”.

"A CIP rejeita a ideia de regresso a políticas nacionais de aposta em ‘campeões’, através da concessão de auxílios de Estado, na medida em que conduziria a distorções de concorrência no mercado único europeu.”

António Saraiva

Presidente da CIP

Em declarações ao ECO, o presidente da CIP concorda com “a necessidade de uma maior flexibilidade na avaliação dos mercados relevantes, nas orientações relativas às concentrações, por forma a ter mais em conta a concorrência a nível global”. Mas António Saraiva garante que “a CIP rejeita a ideia de regresso a políticas nacionais de aposta em ‘campeões’, através da concessão de auxílios de Estado, na medida em que conduziria a distorções de concorrência no mercado único europeu, particularmente prejudiciais para as empresas dos países com menor capacidade financeira”.

Para que o potencial do mercado único possa ser plenamente alcançado, António Saraiva defende “eliminar as barreiras que ainda subsistem quanto à livre circulação de mercadorias e à livre prestação de serviços, contrariar a introdução de medidas nacionais que prejudicam o seu bom funcionamento e avançar com determinação em domínios onde a fragmentação dos mercados é mais notória”, como a energia e a economia digital.

Já Johan Bjerkem, analista no European Policy Centre, defende que o manifesto franco-alemão tem “muitas coisas úteis” como a aposta na inovação e na inteligência artificial. Reconhece que a França e Alemanha, com mais empresas competitivas a nível mundial, “têm mais interesse” em criar campeões industriais. Em relação a uma possível alteração das regras da concorrência, antevê que “os países nórdicos e talvez outros, como Portugal, possam ser mais relutantes” e que poderá haver um “debate muito forte” entre os países com mais peso e outros que vão estar contra a proposta.

Bruxelas não mostra entusiasmo. Numa declaração ao ECO, um porta-voz da Comissão lembra que a “política da concorrência rigorosa, equilibrada e efetiva é um dos pilares do mercado interno”. “O controlo europeu das fusões é uma história de sucesso”, sublinha. Ainda assim, a Comissão está disponível para debater com os Estados-membros propostas que possam surgir.

Entretanto, alguns países estão já a marcar terreno. O primeiro-ministro da Letónia afirmou esta sexta-feira que a ideia de criar campeões europeus “não faz sentido” porque isso não cabe aos políticos.

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