“Os robôs são estúpidos. E nós não devíamos fazê-los inteligentes”

Andra Keay é uma evangelista da robótica que defende a não humanização dos robôs. Durante o Web Summit, esteve à conversa com o ECO para explicar o que quer dizer exatamente.

Quando, durante três dias, milhares de entusiastas da tecnologia e do empreendedorismo, vindos de todos os cantos do mundo, se juntaram em Lisboa para participar no Web Summit, todos conviveram com máquinas que, até há menos tempo do que se imagina, só existiam nos filmes: robôs que servem cafés, robôs que andam lado a lado com pessoas, robôs que parecem – mas não são – pessoas. No meio, havia uma pessoa – real – que não se deixava deslumbrar por esta “tecnologia enganadora”, que nos distrai de bens maiores.

Andra Keay faz da robótica a sua vida. É fundadora da Robot Launch Pad, uma aceleradora de startups de robótica, diretora da Silicon Valley Robotics e cofundadora do Robot Garden, um laboratório comunitário onde se desenvolvem, adivinhou, robôs.

A robótica é a vida de Andra, mas não é vida, muito menos humana. Esta evangelista da robótica defende com unhas e dentes que a chave da evolução e da segurança é a transparência: saber que um robô é um robô e, acima de tudo, que é estúpido e que não podemos exigir-lhe mais do que a sua estupidez lhe permite. Mas saber, também, que não temos de ter medo. Os robôs não conseguem roubar-nos emprego. Só conseguem ajudar-nos a trabalhar, se deixarmos.

Andra Keay passou pelo Web Summit para falar sobre isso mesmo, e sentou-se com o ECO para explicar o que quer dizer exatamente.

Andra Keay é diretora da Silicon Valley Robotics.
Andra Keay é diretora da Silicon Valley Robotics.Paula Nunes / ECO

 

Opõe-se à humanização dos robôs. Porquê?

É importante que separemos o conceito de robôs simpáticos, com quem temos interações sociais, dos robôs que são humanóides. Nós antropomorfizamos e encontramos personalidade em coisas bastante simples. Vemos personalidade nos nossos animais de estimação. Se pintarmos uma cara num objeto, reagimos a esse objeto de forma diferente. Quando somos capazes de tais respostas instintivas a algo que parece ter personalidade, é importante percebermos quais são as reações que vamos ter. Um robô que age com personalidade ou que parece humano pode não ser exatamente o que estamos à espera.

O que é que estamos à espera?

Normalmente, estamos à espera de uma capacidade muito maior do que aquela que o robô realmente tem. Um robô humanóide é enganador, não porque não é humano, mas porque assumimos que o robô pode ter uma compreensão melhor da interação que está a ter connosco. Leva a que lhe demos mais responsabilidade do que aquela que ele é capaz de ter.

Estamos à espera de uma capacidade muito maior do que aquela que o robô realmente tem. Um robô humanóide é enganador.

Andra Keay

Fundadora da Silicon Valley Robotics

Então é perigoso?

É, definitivamente, enganador. E pode levar-nos a transações insensatas, não apenas socialmente, mas mesmo financeiramente. Vemos robôs em locais de negócios, a fazer coisas como servir-nos comida, ou entregar-nos bagagem. Parece muito trivial, mas, quando não somos capazes de saber realmente com quem estamos a comunicar, cria falsas expectativas.

Acredito que, para uma boa interação, devem desenhar-se algumas funcionalidades sociais, alguma personalidade num robô. Isso é essencial para que possamos interagir. Mas a maior parte dos bons designs de robôs que vejo tem sido simplificada de forma muito consciente, para que seja bastante transparente que o robô é estúpido. Essa é a essência da questão. Neste momento, os robôs são estúpidos, não devíamos fazê-los inteligentes.

Para onde nos dirigimos, então? O que é que os robôs devem ser capazes de fazer sem nos enganar?

Vamos olhar para trás, para a evolução do carro. Houve tempos em que não havia sinais de trânsito, não havia normas sobre em que lado da rua se devia andar, ou o que era rua e o que era estrada. Estas coisas evoluíram conforme os problemas surgiram e conforme novos grupos de poder emergiram à volta das novas tecnologias. E foi um processo lento, demorou 20, 30 anos, até desenvolvermos a ideia de termos semáforos.

Estamos outra vez numa fase em que as coisas estão a evoluir. Essas questões visuais e de comportamento à volta dos robôs representam mesmo um perigo físico, não só um perigo emocional. Os designers começam a convergir em alguns aspetos, por exemplo, usa-se som e luz para que as pessoas se apercebam de que uma coisa está a mexer-se. Passamos daí para códigos assertivos: se os olhos estão azuis, o que é que isso significa? Se os olhos ou as rodas estão vermelhos, o que é que isso significa? Se calhar vamos evoluir para um código de cores em que verde é ligado e vermelho é desligado e azul é estar a mover.

Andra Keay passou pelo Web Summit para partilhar a sua visão da robótica.
Andra Keay passou pelo Web Summit para partilhar a sua visão da robótica.Paula Nunes / ECO
Como é que os robôs representam perigos físicos e emocionais?

Sabes aquele apito que os carros têm quando estão a andar para trás? Muitos fabricantes de robôs que conheço perceberam que os seus robôs eram muito silenciosos quando se moviam, e os consumidores ficavam assustados e ofendidos. “Como é que isso se atreve a estar no meu espaço?!” E não percebem que os robôs não compreendem regras sociais. Tudo o que um robô faz tem de ser programado.

Como disse, ainda estamos numa fase muito, muito estúpida dos robôs. É surpreendentemente difícil programar regras sociais sobre quão longe o robô deve estar das pessoas quando anda num sítio cheio de pessoas, porque há um leque demasiado grande de circunstâncias que mudariam a resposta de cada vez. As pessoas são instintivas sobre isso e, quando os robôs se parecem demasiado com os humanos, esperamos que eles tenham o mesmo tipo de instintos e respostas. É importante desenharmos uma forma muito mais simples de interface. O ideal é que eles não falem, não usem palavras. Usem sons, mas não palavras. Reduzam a complexidade dos robôs para que nós possamos reduzir as nossas expectativas.

Consegue dizer três ou quatro coisas que os robôs vão ser capazes de fazer no próximo ano, que vão de facto mudar as nossas vidas?

Aquilo de que não nos vamos aperceber é a forma como os robôs vão sair de ambientes fechados de fábrica para começarem a espalhar-se para um leque de outras tarefas em manufatura e montagem. Neste momento, temos robôs seguros, robôs que são colaborativos. Agora, vai mudar o paradigma, porque vamos ter robôs a exponenciar a forma como fazemos o nosso trabalho. Isso está a começar nas áreas da manufatura, logística, está a começar a chegar à agricultura, também está a mover-se para os ambientes de retalho. Vamos começar a ver carrinhos de compras inteligentes, por exemplo. Quando digo inteligentes, quero dizer que eles estão, na verdade, a seguir indicações simples como não poderem atropelar pessoas, ou parar quando chegam a uma parede.

Vamos ter robôs a exponenciar a forma como fazemos o nosso trabalho.

Andra Keay

Fundadora da Silicon Valley Robotics

Mas estes são apenas robôs de entrega ou de inventário. Estamos, rapidamente, a dominar a capacidade de manipular os objetos, através de robôs. As pessoas habituaram-se à ideia de drones, mas veem-nos mais como um brinquedo de consumidores, e não como objetos altamente úteis. Até há pouco tempo, os drones não eram capazes de longos voos, era difícil e caro ter drones capazes de voos autónomos, por isso, geralmente, eram voos com controlo remoto.

Agora que estão mais acessíveis, mantém-se a questão: o que é que estamos a retirar de bom de conseguirmos ver de ângulos que, antes, não conseguíamos? O que é que a câmara área nos está realmente a dar que está de facto a fazer a diferença? Há drones a saírem agora que têm a capacidade de manipular. Por exemplo, resolver problemas em linhas elétricas. Há casos em que não é suficiente ver, ajuda poder fazer alguma coisa. E vamos começar a ver isso nos robôs que estão a entrar nos supermercados e cafés. Não serão apenas máquinas de inventário e entrega, poderão ser capazes de manipular. Colocar alguma coisa numa prateleira, tirar alguma coisa de uma prateleira.

Também estou entusiasmada com todas as novas aplicações que não consigo imaginar neste momento e que talvez as pessoas a construírem robôs também ainda não conseguem imaginar. Mas o facto de os robôs estarem a deixar de se tornar muito especializados, muito caros e um equipamento industrial, para se tornarem em algo que as pessoas conseguem comprar, é entusiasmante.

Andra Keay acredita que os robôs são "estúpidos". E isso não deve ser um problema.
Andra Keay acredita que os robôs são “estúpidos”. E isso não deve ser um problema.Paula Nunes / ECO
Vamos poder ter esses robôs nas nossas casas?

As nossas casas não têm muito espaço para este tipo de coisas. Se olharmos para a escala dos ambientes, os robôs estão a começar a sair de ambientes estruturados, mas ainda têm de estar em ambientes semiestruturados. A casa é o ambiente menos estruturado que podemos ter. Todas as casas são diferentes e todas as casas estão cheias de obstáculos: portas, degraus, animais, coisas no chão, mobília.

Quando é que os robôs vão estar prontos para estar em ambientes não estruturados?

Há uma boa dúzia de empresas a tentar lançar robôs de casa, mas vão ter de fazer cedências em termos de capacidades. Acho que não vai ser tão espetacular como estamos à espera, mas o facto de haver tantos a serem desenvolvidos significa que a próxima geração de robôs vai ser mais avançada.

Os robôs não são capazes de ter empregos, são capazes de cumprir tarefas. Temos de olhar para eles na perspetiva de como podem potenciar o nosso trabalho.

Andra Keay

Fundadora da Silicon Valley Robotics

Onde vamos ver comportamentos mais sofisticados e coisas mais interessantes é no segmento business to business [B2B]. Há muita pesquisa a ser feita sobre como as pessoas estão a reagir e a interagir, o que permite olhar para isso e decidir se é preciso fazer alguma coisa diferente. Há muita coisa que pode ser feita, particularmente se estivermos a trabalhar perto do gestor de um negócio, que realmente entende o espaço e que pode dizer, no momento, que é preciso adicionar um ou outro ponto diferente. Por exemplo, um robô de serviço de entrega num hotel. A proposta original é fazer entregas aos hóspedes, esse é o valor. Mas, no fim de contas, o valor é que depois da entrega, o robô pergunta como está a ser a estadia, o hóspede responde e o hoteleiro sabe, no meio da estadia de alguém, se esse hóspede está contente ou não. Se alguém deixar um comentário negativo, a questão pode ser resolvida. Atualmente, espera-se até a pessoa fazer o check out e deixar a crítica negativa ao sair. Até termos robôs a circular e a interagir com as pessoas, não tínhamos percebido que essa era uma possibilidade.

Espero que as pessoas com uma boa noção dos seus negócios olhem para isto e percebam onde haveria vantagens em ter robôs a melhorar os seus negócios. Como disse, os robôs são estúpidos. Não devíamos pensar que são mais inteligentes do que realmente são. E não são, na verdade, capazes de ter empregos, são capazes de cumprir tarefas. Por isso, temos de olhar para eles na perspetiva de como podem potenciar o nosso trabalho, como podem ser úteis.

Não podemos duplicar a quantidade de terra para cultivar comida, mas temos de duplicar a quantidade de comida. Isso pode ser feito com robótica.

Andra Keay

Fundadora da Silicon Valley Robotics

O que espera do futuro?

As pessoas têm de perceber que a robótica ainda está numa fase inicial. Estou entusiasmada porque olho para o futuro e penso no grande impacto que vai ter sobre a próxima geração. Precisamos de robótica em algumas áreas, em particular na agricultura. Não podemos duplicar a quantidade de terra que usamos para cultivar comida, mas temos de duplicar a quantidade de comida que produzimos. Por outro lado, perdemos trabalho na terra, o mundo está a urbanizar-se e a envelhecer. De forma geral, os agricultores estão a reformar-se e não há ninguém para responder a isto. E também estamos a trabalhar com muitas práticas tóxicas de agricultura, que poderiam ser resolvidas se tivéssemos mais precisão na agricultura. Isso pode ser feito com robótica. Estou muito entusiasmada com a perspetiva de a robótica ser utilizada para resolver um enorme problema global. Os humanóides são só uma distração. Ainda não estamos prontos para humanóides e eles não estão prontos para nós.

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