Portugueses estão revoltados com os motoristas? Especialistas dizem que a greve é “difícil de entender”
Os motoristas avançaram para a greve, sem que a negociação estivesse esgotada, salientam os sociólogos. Esta paralisação é, portanto, "difícil de entender" até face às consequências previstas, dizem.
“Sem que a negociação estivesse esgotada” e ainda com outros meios de luta à disposição, os motoristas de matérias perigosas avançaram para a convocação de uma greve. Uma decisão, deste modo, “tão radical” que se torna de difícil compreensão para a opinião pública nacional, dizem os sociólogos ouvidos pelo ECO. Os especialistas sustentam assim o aviso deixado pelo Presidente da República de que estes trabalhadores arriscam mesmo ter contra si “a generalidade dos portugueses” perante um “sacrifício” que se pode considerar “excessivo”.
No final de julho, o ministro do Trabalho e da Segurança Social sublinhou que este conflito laboral relativo a “divergências salariais para 2021 e 2022” tinha criado “uma situação dificilmente compreensível” pelos portugueses. Uma semana e meia depois, o primeiro-ministro veio reforçar esse alerta, dizendo haver um “claro sentimento nacional de revolta e de incompreensão perante uma greve” que deverá decorrer a meio de agosto (o arranque está marcado para dia 12), ainda que já estejam acordados os aumentos salariais líquidos de 250 euros para janeiro do próximo ano.
Sentimento semelhante foi rapidamente expresso por Marcelo Rebelo de Sousa, que avisou que estes sindicatos arriscam ter contra si “a generalidade dos portugueses”, que podem considerar que o “sacrifício é excessivo”. O Presidente da República salientou que é “preciso que os meios não venham prejudicar os fins”, sendo portanto necessário adequar o caminho escolhido aos objetivos traçados. E acrescentou: ” A melhor maneira de melhorar as condições laborais, nas cargas e descargas, ou em qualquer outro tipo de atividade [é] promover a negociação”.
Negociação que os sociólogos ouvidos pelo ECO garantem não tinha sido ainda esgotada antes de os motoristas partirem para a convocação da greve, o que torna difícil à opinião pública nacional compreender esta paralisação.
“Uma greve deve ser uma situação de última instância e, portanto, é difícil compreender uma decisão tão radical“, frisa Elísio Estanque, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Na mesma linha, o professor Jorge Malheiros diz que “esta necessidade de fazer uma exibição de força tem à distância alguma coisa de precipitado. Creio que não estariam esgotadas as formas de negociação mais clássicas, tenho uma dúvida, não tenho uma certeza”. E o sociólogo Boaventura de Sousa Santos acrescenta que “havia todas as condições para chegar a acordo”, o que desgasta ainda mais a compreensão dos portugueses em relação a esta causa.
São grupos pequenos e a mensagem que passa é que, sabendo que dominam um setor que pode causar perturbações no país, estão a usar isso mesmo como trunfo de negociação.
Para Elísio Estanque, há três contornos principais deste movimento reivindicativo que o tornam particularmente difícil de entender para os portugueses: não só o facto da negociação com os patrões não ter sido ainda esgotada, mas também a “duração indeterminada” desta paralisação (tendo em conta as consequências negativas que já se esperam na vida do país) e a reduzida história dos sindicatos que a convocaram. “São grupos pequenos e a mensagem que passa é que, sabendo que dominam um setor que pode causar perturbações no país, estão a usar isso mesmo como trunfo de negociação“, sublinha o professor.
A propósito, Jorge Malheiros atribui uma parte da “incompreensão” e “insatisfação” gerada em torno desta greve a esta nova forma de sindicalismo, “que é diferente da clássica”, que fica marcada por uma maneira de estar nas negociações pautada “pela exigência” e que ainda não é totalmente transparente para a sociedade geral. “Esse sindicalismo deixa dúvidas”, defende o professor.
“A incompreensão e a revolta decorrem da rigidez das posições dos vários participantes, muito especialmente dos líderes sindicais”, corrobora Boaventura de Sousa Santos, sublinhando que essa posição é particularmente grave tendo em conta que “havia condições para chegar a acordo”. “Na sociedade portuguesa, há obviamente um sentimento de revolta [em relação a esta ameaça de greve], porque desde 1974 adquirimos uma experiência de negociação coletiva que quase sempre teve êxito, sobretudo quando o bem-estar dos portugueses no seu conjunto podia ser posto em causa“, atira, lembrando que esta paralisação, a avançar, deverá perturbar o funcionamento da economia.
Uma greve aproveitada pela direita?
Depois do susto de abril, os motoristas voltam agora à carga. Para Elísio Estanque, a convocatória “abrupta” desta segunda paralisação, depois do alívio decorrente da resolução de um caso “que parecia ameaçar ganhar contornos mais complicados”, não só descredibilizou os trabalhadores em questão, como também “ajudou a que muita gente desconfie dos motivos” por detrás desta luta.
Tal sentimento é ainda agravado pela proximidade da ida às urnas, que está marcada para 6 de outubro. Elísio Estanque sublinha que “as conjunturas são aquilo que são”, mas não deixa de destacar que estas situações “criam pânico social” e “tendencialmente prejudicam quem está no poder”. “Não estou a dizer que os motoristas têm essa intenção”, diz o sociólogo, mas “há setores da sociedade interessados” nesses potenciais ganhos eleitorais.
Tenho desconfianças sobre quais são as forças politicas que estão por detrás [destas greves]. Em muitas países, no Chile, por exemplo, as greves foram usadas para desestabilizar Governos de esquerda.
“Sabe-se que essa greve é muito perturbadora do funcionamento da sociedade e causa desconforto no Governo”, acrescenta Jorge Malheiros. E Boaventura Sousa Santos vai mais longe: “Tenho desconfianças sobre quais são as forças politicas que estão por detrás [destas greves]. Em muitas países, no Chile, por exemplo, as greves foram usadas para desestabilizar Governos de esquerda. Não é de excluir que haja forças estrangeiras interessadas em promover a greve e a impedir que se chegue a um consenso que a evite”.
O sociólogo sublinha que as “forças conservadoras” têm vindo a adotar posições “muito agressivas no sentido de inviabilizar qualquer possibilidade de Governos de esquerda na Europa”. “É obviamente um aproveitamento político por via de forças da direita nacional e internacional”, remata.
A greve de abril deixou os postos de abastecimento praticamente sem combustível, tendo motivado um acordo entre os patrões e os motoristas que prevê uma progressão salarial, com início em janeiro do próximo ano. A 15 de julho, os sindicatos decidiram, contudo, marcar uma nova greve, acusando os patrões de não cumprir esse mesmo acordo.
Patrões, motoristas e Governo já realizaram várias reuniões para evitar a concretização da greve que foi marcada para 12 de agosto, mas ainda não foi possível chegar a um consenso. O Executivo de António Costa tem ainda de fixar os serviços mínimos, caso avance a paralisação em causa.
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