A dívida como modo de vida
O que se pede não é uma nova oportunidade para passar a fazer as coisas bem feitas. O que se quer é um esquema para perpetuar a nossa estranha forma de vida: os outros que paguem a nossa dívida.
O que se pede não é uma nova oportunidade para passar a fazer as coisas bem feitas. O que se quer é um esquema para perpetuar a nossa estranha forma de vida: os outros que paguem a nossa dívida e os encargos com os nossos públicos eleitorais.
Terça-feira
A discussão sobre a sustentabilidade e eventual reestruturação da nossa dívida faz lembrar a história do jovem que mata os pais e depois vai a tribunal pedir clemência pelo facto de ser órfão.
Apresentamos os números da desgraça: dívida pública acima de 130% do PIB, factura com juros próxima dos 8 mil milhões de euros por ano e um crescimento anémico que torna tudo um fardo com o dobro do peso. E perante eles esperamos que todos concluam: não conseguimos pagar, temos que reestruturar, é necessário que nos perdoem uma parte, que facilitem o pagamento.
Os números da desgraça fomos nós, colectivamente, que os fizemos. Nós governos, autarquias, empresas públicas, que gastámos mais do que devíamos. Nós cidadãos, que elegemos sucessivamente esses governos. Nós banqueiros, que atirámos para o colo dos contribuintes facturas inimagináveis. Nós todos que temos falhado na construção de uma economia competitiva e que cresça.
A dívida e a sua eventual insustentabilidade é o símbolo maior do nosso falhanço colectivo, expressão da nossa falência económica.
Muito se há-de ainda falar do assunto nos próximos meses. O PCP e o Bloco de Esquerda vão continuar a pedi-lo — ignorando que um perdão da dívida portuguesa significa por os contribuintes alemães, austríacos, espanhóis ou belgas a suportar a sua quota parte da factura. E o Governo vai continuar a querer manter o tema afastado da sua agenda.
Enquanto são apenas os tradicionais partidos do protesto e contra a economia de mercado a fazê-lo os danos para a credibilidade e confiança no país são geríveis. Mas quando passar a ser o governo a fazê-lo o caso muda de figura: o Tesouro não pode ir ao mercado pedir mais dinheiro emprestado às segunda, quartas e sexta para avisar que não vai pagar esses empréstimos nos restantes dias.
António Costa vai continuar a empurrar o tema para a frente, tentando ganhar tempo perante os partidos que suportam o seu governo. Foi o que fez na entrevista à RTP, quando apontou para as eleições alemãs de Outubro do próximo ano para defender que até lá a questão das dívidas não entrará na agenda europeia.
Entretanto, em Janeiro, haverá o relatório do grupo de trabalho acordado com o Bloco de Esquerda para discutir a sustentabilidade da dívida… externa. Não da pública, mas da pública e privada que é devida a financiadores estrangeiros. Esta anda, em termos líquidos (as dívidas menos os créditos a receber do exterior) pelos 100% do PIB e é muito diversa. É o somatório das responsabilidades de bancos, empresas e do Estado.
O que tristemente não se vê, da parte dos mais acérrimos defensores da reestruturação da dívida, é a mínima vontade de tornar o Estado sustentável para que não se voltem a fazer novas dívidas. A ideia será então reestruturar agora e novamente daqui a uns anos, quando a acumulação de défices voltar a tornar a dívida insustentável. O que se pede não é uma nova oportunidade para passar a fazer as coisas bem feitas. O que se quer é um esquema para perpetuar esta nossa estranha forma de vida: os outros que paguem a nossa dívida e os encargos com os nossos públicos eleitorais.
Quarta-feira
Porque é que voltamos sempre aos mesmos assuntos e os discutimos como se fosse a primeira vez? Há duas décadas debateu-se o eterno assunto dos salários dos gestores públicos quando Fernando Pinto foi contratado para a TAP. Alguns anos depois, a entrada de Paulo Macedo para a administração tributária voltou a gerar a mesma polémica. E agora, a propósito da Caixa, voltamos ao ponto de partida.
Será que é assim tão difícil estabilizar um regime que perdure no tempo? Entendam-se. Acham que ninguém no universo do Estado deve ganhar acima do Presidente da República ou do primeiro-ministro? Pois que assim seja, desde que estejam disponíveis para suportar o custo dessa decisão: serão muito poucos os que, tendo competência, aceitarão a generalidade dos cargos nessas condições.
Acham, pelo contrário, que se podem contratar gestores a preço de mercado para o Estado? Assumam isso e paguem o custo das críticas demagógicas.
Mas evitem o triste espectáculo de contrariar o que sempre defenderam por mero oportunismo político: a direita para “entalar” o governo; a esquerda para safar o governo. Ter o PCP e o BE a votarem contra a limitação de ordenados de gestores públicos defendida por PSD e CDS não é natural. Ninguém sai bem desta fotografia. E isso paga-se com a credibilidade dos agentes políticos.
Quinta-feira
Como se esperava, o Banco Central Europeu prolongou até ao final do próximo ano o programa de compra de dívida pública que tem mantido vários países com acesso ao financiamento nos mercados. A perspectiva do fim das facilidades do BCE poderia ser catastrófico numa altura em que em relação à moeda única há mais dúvidas e ameaças do que certezas.
Mas esta política monetária tem um custo: vicia os governos nestas facilidades e desincentiva-os a fazerem reformas e mudanças para tornarem as respectivas economias e orçamentos sustentáveis.
A prazo, alguma grande mudança terá que ocorrer na zona euro. Pode ser a saída ordenada de alguns países do clube, a mutualização de uma parte das dívidas com novas perdas de soberania orçamental e uma maior coordenação das políticas económicas. Ou isso ou uma nova crise financeira que tenha efeitos semelhantes mas seguindo por um caminho tortuoso e não planeado.
Mas como bem disse António Costa, antes das eleições alemãs nada se decidirá. E depois disso mete-se o Natal e o Ano Novo e logo a seguir outra eleição surgirá. Estranhas democracias as nossas, onde as eleições só atrapalham.
(O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico)
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