Privacidade e segurança foram os temas em dabate nesta conferência, que girou em torno das revelações de Edward Snowden, atualmente asilado em Moscovo. Mas também se falou do fisco e da 'cloud'.
Sala composta, convidados ilustres no palco, mas sem o protagonista presente. Foi assim a conferência “Snowden Talks”, que decorreu esta quarta-feira, 22 de setembro, em Lisboa. Sob o mote “Estará alguém seguro?”, em debate estiveram as questões mais atuais relacionadas com privacidade e segurança. O evento serviu de rampa de lançamento à antestreia nacional de Snowden, um filme de Oliver Stone que mostra como Edward Snowden, ex-analista da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América (NSA), conseguiu roubar milhares de documentos confidenciais sobre programas de espionagem em massa alegadamente levados a cabo pela NSA, passando-os depois à imprensa. O palco escolhido foi o Grande Auditório do ISCTE — e o certo é que, mesmo que Edward Snowden quisesse estar presente em carne e osso, não podia: encontra-se asilado em Moscovo, na Rússia, à espera da clemência norte-americana que pode mesmo nunca chegar.
First things first. Se Snowden não pode vir, traga-se quem já escreveu muito sobre o assunto. Essa pessoa é Luke Harding, repórter do jornal britânico The Guardian e autor do livro The Snowden Files, a obra de não-ficção que serviu de inspiração ao argumento do filme. Foi quem abriu a conferência no ISCTE, onde recordou aos presentes — maioritariamente entusiastas, estudantes e jornalistas — que “todos os dispositivos eletrónicos podem ser comprometidos”. Ri-se muito. Sabe do que fala. Ou não tivesse já sido, ele próprio, alvo de invasões de privacidade e perseguição enquanto correspondente em Moscovo, supostamente por parte do FSB, a agência russa de contraespionagem que sucedeu ao KGB. Mas essa é outra história — e já foi contada aqui.
[Se Edward Snowden voltasse aos Estados Unidos], suspeito que iam continuar a vigiá-lo. A manterem-se de olho nele.
Agora, é de Edward Snowden que se fala. Segundo Harding, o ex-analista “está saudável, está contente” e até “gostou do filme”. Já as opiniões sobre como olhar para aquilo que Snowden fez ainda divergem. Foi bom? Foi mau? Como deve agir Barack Obama, o presidente norte-americano? Deverá realmente ser dado o tão aclamado perdão? O filme relançou o debate: Snowden já afirmou publicamente que espera que isso aconteça ainda este ano, antes do fim do mandato de Obama.
Mas para quê? A desconfiança é geral e muito poucos acreditam que, ao regressar aos Estados Unidos, pudesse voltar a ter uma vida dita normal. Luke Harding acha o mesmo: “[Se o Snowden voltasse], suspeito que iam continuar a vigiá-lo. A manterem-se de olho nele”, disse. Além disso e, para já, Moscovo é o sítio seguro a partir do qual o norte-americano de 33 anos ainda vai espalhando a sua palavra. Fá-lo há sensivelmente um ano e sempre através do Twitter: segue a conta da NSA, divulga conselhos de segurança informática e dá opinião sobre tudo — até acerca da mais recente aplicação de mensagens da Google. Conta já com mais de dois milhões de seguidores. E Luke Harding prefere que assim continue.
“Uma enorme hipocrisia”
“Esta conversa revela uma enorme hipocrisia.” A frase (e opinião) é de José Pacheco Pereira, um dos convidados do painel que se seguiu: “A Privacidade Digital: são as empresas e os Estados uma ameaça para os cidadãos”. O escritor e comentador deu a volta à discussão, que estava a ser feita em termos genéricos, apontando baterias ao fisco português. Mais concretamente o sistema eFatura, que permite ao Estado recolher informações suscetíveis de violar a privacidade dos cidadãos. “Está lá tudo: os livros que comprámos, o que almoçámos, onde fomos”, disse. E acrescentou: “Eu não considero que o Estado tenha o direito de aceder a estes dados. Eu hei de combater sempre o eFatura, porque não é legítimo.”
Qualquer embrião público ou privado de uma polícia que queira perseguir alguém, não precisa hoje de mais do que aquilo que já é recolhido dos cidadãos em termos de dados.
Pedro Veiga, coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança e outro dos intervenientes no painel, explicou que, quanto à proteção das estruturas críticas ao funcionamento da sociedade, a segurança ainda não é perfeita mas tem “melhorado”. O caminho deve ser o de “aumentar o nível de segurança das estruturas informáticas da administração pública”, tendo em conta que certas infraestruturas “são críticas para o nosso bem-estar”, disse. E porquê? Porque “é a informação dos cidadãos que está em causa”, explicou. O especialista aproveitou para lembrar que “a espionagem industrial” é uma realidade “que tem efeitos económicos nefastos”. Um ataque “pode mandar abaixo empresas quando certas informações são roubadas”, disse.
Seguiu-se Sandra Miranda Ferreira, diretora técnica da Microsoft Portugal. A multinacional norte-americana foi referenciada nas fugas de informação de Snowden como uma das primeiras a, alegadamente, colaborar com os programas de espionagem da NSA. Por exemplo, em julho de 2013, o The Guardian avançou que a Microsoft terá trabalhado em conjunto com os serviços de inteligência dos Estados Unidos, incluindo a NSA, no sentido de permitir que comunicações de utilizadores fossem intercetadas — mesmo as encriptadas. Por isso, as questões a Sandra Miranda Ferreira focaram-se essencialmente nisto.
Não terá sido bem assim. Segundo a executiva da Microsoft Portugal, fazê-lo de forma voluntária — isto é, participar voluntariamente “em programas de recolha massiva de dados” — seria “um tiro no pé”. Algo como “assassinar o nosso modelo de negócio”, defendeu. No entanto, lembrou que as tecnológicas estão “obrigadas a cumprir a lei”, pelo que a Microsoft só deu (e dá) despacho “a requisições sobre utilizadores específicos e quando achamos válido”. Foi por isso que, quando se desencadeou o escândalo da NSA, a Microsoft lançou um portal da transparência. Nele, encontram-se descriminados todos os pedidos de acesso a dados de cidadãos por parte de autoridades, a nível global.
Segurança e privacidade: o binómio clássico
Clássico mas muito atual. Quando se fala desta dualidade, o problema é sempre até onde vale a pena sacrificar um ponto para garantir o outro. Segurança? O povo quer. Privacidade? Também. Certo é que, nos dias que correm, existem já formas fáceis de comunicar com encriptação avançada. Surgem na forma de chat e, na prática, isso significa que as mensagens enviadas só podem efetivamente ser lidas pelos participantes da conversa.
Por um lado, isso é bom. Mas, por outro, é tido como certo que grupos terroristas, incluindo membros do autoproclamado Estado Islâmico, usam aplicações deste género para poderem comunicar de forma secreta. Uma dessas aplicações chama-se Telegram — e este assunto não passou ao lado da conferência. Respondendo a uma questão do público, Rui Cruz, jornalista e fundador do site Tugaleaks, explicou que o aumento do uso da internet para o mal é um fenómeno natural: “Há mais gente a usar a internet para o bem do que para o mal. Mas, em termos de percentagem, enquanto cresce o uso da internet, cresce também a percentagem dos que a usam para o mal na mesma proporção da vida real”, contou.
Para terminar, falou-se de cloud — ou da “nuvem”, em português. Afinal, é ou não mais segura do que outras soluções de armazenamento? Numa altura em que brechas de segurança aparecem com frequência nas notícias, Sandra Miranda Ferreira considerou que é uma das melhores soluções: pode-se “usar a máquina durante duas ou três semanas e, quando já não se precisa, desliga-se. Só se paga aquilo. É a democratização da internet”, referiu. A especialista da Microsoft Portugal defendeu também que, num “par de anos”, já não falaremos de várias clouds, mas de uma só cloud. “A capacidade de investimento [em segurança] na ‘nuvem’ é maior” do que, por exemplo, a de uma empresa que conta com uma estrutura informática própria. “Todos os fornecedores vão ter um ou mais parceiros para garantir essa segurança. Não [tem de ser] um one man show“, disse. Antes, deverá ser uma espécie de trabalho de equipa.
[Na ‘nuvem’ pode-se] “usar a máquina durante duas ou três semanas e, quando já não se precisa, desliga-se. Só se paga aquilo. É a democratização da internet.
A exibição do filme Snowden, em antestreia nacional, foi a seguir. É, assumidamente, uma “dramatização” da história original. Mas também tem merecido críticas, por só mostrar Edward Snowden como o herói — e não como o ‘traidor’ que roubou informação confidencial, pondo em causa a segurança nacional do próprio país. Nem mesmo os jornais envolvidos na fuga de informação estão de acordo. O The Guardian defende a clemência, o The Washington Post acha que não. O que mudou com Snowden? Por um lado, tudo: estamos mais conscientes do valor da nossa privacidade. Por outro lado, nada: “Se eles (a NSA) vão parar de espiar [os cidadãos]? Claro que não”, garantiu o jornalista Luke Harding no início do evento. Ainda se esperou por uma eventual aparição do ex-analista da NSA, quiçá em forma de robô (o Snowbot) como já fez em algumas conferências. Mas, evidentemente, Edward Snowden não apareceu.
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#SnowdenTalks. A conferência a que Edward Snowden não iria — ou iria?
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