Uma nova economia passa por “usar a tecnologia para o benefício da humanidade”, diz Rudy de Waele

O futurista Rudy de Waele diz que uma das tendências que vamos assistir é as empresas a dar retorno à sociedade e às comunidades, que não sentem no bolso o progresso que é alcançado.

Recessões, alterações climáticas, medicina personalizada. O que nos espera no futuro? Pensar nestas questões é o trabalho de Rudy de Waele, futurista e estratega que trabalha com marcas globais como Louis Vuitton, Microsoft e BMW. Mas para olhar para a frente também é preciso analisar o presente. E Rudy de Waele diz que um dos problemas será que, apesar de existir progresso, a generalidade das pessoas não colhe os frutos.

Com o crescente domínio de certas empresas, nomeadamente tecnológicas, terá de se encontrar uma forma de retribuir à sociedade, algo que já está a acontecer, aponta Rudy de Wale, ao ECO. Poderá partir dos supervisores e agentes reguladores, mas também das próprias empresas.

Em Portugal para uma conferência sobre o futuro da saúde, o HINTT 2019, o futurista falou ainda sobre a forma como a velocidade da inovação é muito mais rápida do que a velocidade a que as pessoas conseguem apreender, o que vai gerar dificuldades na regulação das novas tecnologias no setor.

O que faz um futurista?

Pesquisamos muito, estamos ligados a uma rede de futuristas, trocamos opiniões. Trabalhamos muito com intuição. Com a nossa experiência prevemos coisas que vão acontecer. Há muitas ideias que nos chegam que podem parecer boas mas demoram dez anos a concretizar. Futurista não é prever o que vai acontecer, mas criar consciência. Não passamos tempo suficiente nessa parte. As pessoas estão focadas em resolver problemas, mas de uma forma muito específica, e com a tecnologia está tudo ligado, por isso precisamos de pensar mais holisticamente. Torna-se mais importante, o novo tipo de design vai chegar daí.

Trabalha com empresas em vários setores, desde Coca-Cola a Google, passando pelo Banco Mundial. Quais são os principais receios das empresas?

Agora há muita incerteza, por causa da economia. O crash financeiro de 2008 ainda não foi digerido, estão a recuperar mas há muitos receios de que algo pior vai acontecer. O cenário político global também não parece muito promissor, está muito unilateral. A tecnologia, nomeadamente a “disrupção”, também cria muita incerteza porque as grandes empresas que estão a usar tecnologia tornam-se mais poderosas.

As dez empresas de topo no mundo são tecnológicas e todas fazem dinheiro com dados. Aqui na Europa não temos muitos dados — trabalhamos com muitas empresas americanas e os dados são enviados para lá e eles é que fazem dinheiro com os nossos dados. Há algo sistemicamente errado, precisamos de repensar as bases do que estamos a fazer e construir.

Temos problemas financeiros, económicos, políticos e sociais. Apesar de termos progresso nas últimas duas e três décadas, não o vemos. Onde está o dinheiro? Vai para um sítio para onde as pessoas não o veem. Vamos ter caos e incerteza antes de conseguirmos estabelecer para onde vamos.

Estamos a chegar a um novo tipo de dominação e concentração de poder que não vimos antes.

Rudy de Waele

Com esse domínio das empresas tecnológicas tem sido cada vez mais discutida a tributação desses negócios. Será esse o caminho?

Os impostos nunca foram um bom impulsionador da economia, sabemos isso historicamente. Mas as empresas tecnológicas tornam-se tão dominantes… Antes as empresas eram dominantes num só setor, mas as tecnológicas estão agora a entrar na saúde e em diferentes áreas.

Estamos a chegar a um novo tipo de dominação e concentração de poder que não vimos antes. Estas empresas têm um poder global, são poderosas em todos os países. Temos de encontrar maneiras de compensar de alguma forma o que se está a passar, e se há muita automação muita gente vai perder o trabalho, isso terá de ser compensado. A sociedade não pode ser a vítima disto, se só o pequeno grupo da empresa beneficia.

Há muitas coisas que estão a acontecer que costumavam ser responsabilidade da sociedade e do Governo. Por exemplo, com a tecnologia e ciência, vamos, em média, viver até aos 142 anos, em 50 anos pode ser até mais tarde. Os mais velhos ainda conseguem trabalhar. Temos estas mudanças numa sociedade que são responsabilidade do Governo, e o Governo não fala sobre isto ou não estão preocupados — vão criar problemas para nós.

Temos de pensar sobre os problemas com a ajuda das empresas e encontrar forma de compensar. E, por outro lado, parte das próprias empresas também. Há duas semanas, por exemplo, várias empresas norte-americanas juntaram-se e quiseram mudar o princípio do propósito da empresa do lucro para construir uma sociedade mais saudável. Depois de ver os primeiros anos deste desequilíbrio, vamos ver na próxima década como vamos conseguir encontrar equilíbrio novamente.

Tivemos eleições agora em Portugal. Como é que novos governos influenciam as previsões e as medidas aplicadas no futuro?

Vejo isto em todo lado, não só em Portugal, temos uma falta de liderança, especialmente em governos. Milton Friedman disse que o melhor que as empresas podem dar à sociedade é lucro. As pessoas estavam concentradas em fazer lucro. No Governo não se faz muito dinheiro, por isso todos os melhores trabalhos são desenvolvidos em empresas privadas.

Todo o conhecimento e inteligência estão em empresas privadas. Nas empresas privadas temos um entendimento que tem de ser mais conscientes e tem de ser mais responsáveis pela sociedade. Os governos estão a debater-se com uma grande visão, estão a ouvir as grandes empresas privadas e os financiadores, o que cria um desequilíbrio e que não e uma boa forma de criar uma sociedade saudável. Precisamos de reavaliar quais são os valores que temos como seres humanos e comunidade.

Que hábitos tradicionais não vão mudar com a tecnologia?

As coisas que não vão mudar e o que faz as pessoas felizes. Ir a um bar ou restaurante com amigos. Viajar, apesar de poder haver uma mudança na forma como viajamos, devido às alterações climáticas. O que faz as pessoas felizes não vai mudar.

Já hábitos do trabalho e como trabalhamos pode mudar, como podemos ligar os valores pessoais ao que fazemos no trabalho, e como podemos ser felizes no trabalho. Cada vez mais pessoas têm um esgotamento, as estatísticas apontam para que 50% das pessoas que trabalham estão deprimidas ou com burn out, e é porque não se focam no que as faz felizes.

Se nos focarmos nestas coisas novamente penso que vamos criar uma nova economia, como podemos usar a tecnologia para o benefício da humanidade e não apenas para o benefício do sistema que criámos, que se concentra no lucro.

Perguntam-me sobre poder da China e dos Estados Unidos, mas acho que na Europa temos o maior poder do futuro.

Rudy de Waele

As alterações climáticas são agora um tema em destaque por todo o mundo. Como vai influenciar o desenvolvimento futuro?

O mundo está a acordar. Houve um inquérito em alguns países da Europa e 21% das pessoas disseram que voavam menos por causa da Greta [Thunberg] e porque estão conscientes dos danos que fazem. A Comissão Europeia já está a aplicar medidas sobre os carros a diesel e a utilização de plástico, por exemplo.

As pessoas perguntam-me sobre poder da China e EUA mas acho que na Europa temos o maior poder do futuro. A Europa está mais bem posicionada para o futuro porque temos os melhores valores. Temos boas filosofias, pessoas que se importam umas com as outras e na Comissão Europeia transforma-se isso em leis e regulamentação.

Na China e nos EUA, os sistemas não são sustentáveis, vão-se destruir. Temos uma abordagem muito saudável na Europa. Esta influência vai crescer e vamos ver a mudança, e a Europa será o primeiro sitio onde o vamos ver.

Veio a Portugal para discutir o futuro da saúde. Quais serão as próximas grandes inovações no setor?

Genética, genómica. Biologia sintética, porque podemos agora editar o genoma humano, o que significa que podemos cortar as doenças humanas numa célula. O que é que isso significa para o futuro? Vamos criar bebés perfeitos, como os nazis queriam? O que significa num nível ético? Estamos a criar uma super-raça, que será criada primeiro pelas pessoas que têm dinheiro, que vão depois dominar, porque vão ser perfeitas, vão dominar o resto das pessoas que não são perfeitas?

Há tantas questões éticas diferentes, e não estamos preparados para isso. Porque a velocidade da inovação é muito mais rápida do que a velocidade a que conseguimos apreender estas coisas a um nível mental. Mesmo depois de compreender, como podemos pôr estas coisas na legislação? Há uma grande necessidade de tratar estas inovações com urgência. Como as inovações podem vir de fontes não reguladas, podem vir das mãos de pessoas que têm más intenções.

A segunda inovação na saúde é a nanotecnologia. Com isto vamos conseguir curar e detetar doenças muito mais rápido do que alguma vez conseguimos. Já há, por exemplo, um dispositivo que consegue detetar se tem cancro no pulmão só com os químicos presentes na respiração. Podemos engolir comprimidos com nanotecnologia que conseguem comunicar o que se passa no estômago. Vamos ter muita inovação nas próximas duas a três décadas, especialmente no setor da saúde, é um dos setores mais inovadores.

Com todas essas questões éticas, como se regula a utilização desta tecnologia? É responsabilidade do Governo ou das empresas?

Um bom diálogo é essencial, entre o Governo e as empresas privadas. Se tem a ver com a saúde, se a pessoa dá os direitos a uma empresa para melhorar a sua saúde é uma decisão pessoal. Se há um bom diálogo entre os dois, tem de vir dos dois. Como disse o CEO do European Institute of Innovation and Technology, tem a ver com o ecossistema, quem está presente nele. Criar um diálogo à sua volta é essencial para o progresso e regulamentação.

A nova tecnologia desenvolvida na saúde vem com custos que apenas aqueles com mais posses poderão pagar, no início. Isto vai criar mais desigualdades no acesso aos cuidados de saúde?

Se não mudarmos os nossos valores será assim. Se acreditarmos que há os 1% e os 99% vai acontecer. Uma boa comunicação e visão que estamos aqui juntos no mesmo planeta, é o sistema em que temos de acreditar para isso não acontecer. É o que temos feito nas últimas décadas, saímos de duas guerras mundiais e conseguimos criar um sistema de saúde tremendo para toda a gente do nada.

Por isso sou muito positivo em relação a humanidade. Lançámos a bomba atómica e mesmo assim conseguimos encontrar regulações e um bom equilíbrio. Usar um elemento negativo para criar resultado positivo.

Há cada vez mais apps para controlar a saúde, e até o novo Apple Watch já tem uma função que permite fazer um eletrocardiograma. Esta é a tendência do futuro, as pessoas vão tornar-se as suas próprias médicas?

Se olhar para as startups da área como Oscar e Lemonade, as startups que usam dados pessoais para novos modelos estão a mover-se e são do futuro. A nova geração tem um mindset muito diferente sobre responsabilidade pessoal para se manter saudável e medir os dados para pagar menos que alguém que não quer ter a responsabilidade, é uma escolha.

É uma questão difícil a nível ético porque, em muitas doenças, não se sabe como são ou de onde veem, de maus comportamentos ou vícios. Sabemos que algumas doenças originam de certos comportamentos, se tomarmos responsabilidade para não fumar ou ter uma alimentação saudável então devíamos pagar menos. O mindset vai crescer com a nova geração e nova tecnologia.

Quando paramos de investir no futuro temos de estar prontos para as surpresas mais dramáticas. É preciso continuar a investir.

Rudy de Waele

Com a crescente utilização, os antibióticos estão a começar a deixar de funcionar. Como se vai resolver?

Esse é um bom exemplo do que acontece quando se pára de inovar. Durante anos e décadas, o setor da saúde esteve a investir em investigação nas bactérias e outros para os antibióticos, e nas últimas duas a três décadas pararam de investir porque pensaram que tinham resolvido o problema. Entretanto as baterias ficam mais resistentes e agora os antibióticos mal resultam. Por isso, temos de reinvestir.

A lição da inovação é continuar a investir, continuar a inovar, nunca parar de inovar e avançar. Um organismo vivo, a natureza, está constantemente a evoluir. Quando paramos de investir no futuro temos de estar prontos para as surpresas mais dramáticas. É preciso continuar a investir.

O que trava o desenvolvimento da tecnologia na saúde?

Um dos problemas é que as farmacêuticas tornam-se demasiado poderosas e param de investir e inovar, e sentam-se no próprio trono, o que nunca é uma coisa boa. Uma das reações que vemos em várias comunidades, que já está a acontecer, é que em muitas comunidades, muitas pessoas ficam contra os fármacos e preferem um tipo preventivo de medicina. Começam a tomar melhor conta do corpo, como a medicina personalizada, quanto mais conhecem do corpo melhor conseguem tomar conta de si próprios. Estas pessoas já não precisam de comprimidos.

O setor da saúde e medicamentos será mais sobre medicina preventiva e personalizada, mas ainda teremos os cuidados de saúde para doenças mais pesadas, é muito útil ter bons cuidados. Se souber a genética, o tipo, pode ver quão sensível é a um certo tipo de doenças por isso da para apostar mais na prevenção.

Há cada vez mais pessoas a tornarem-se vegetarianas ou vegan. Isto terá uma influência nos cuidados de saúde?

Tornei-me vegan há dois anos e mudou a minha vida por completo. Sou muito mais dinâmico, resistente a várias coisas e sinto-me mais saudável. Não poluir o corpo com gorduras ou açúcares maus é uma forma de ficar mais saudável. A geração mais nova torna-se vegetariana por causa da saúde e pelas alterações climáticas.

Vai ter um grande impacto. No Reino Unido, um em cada três jovens tornaram-se vegetarianos ou vegan, o que é um enorme avanço. Vamos ter mais empatia uns pelos outros, também por seres no planeta. Pode parecer espiritual mas acredito que esse é o caminho a seguir, porque a outra forma não é sustentável.

Quais são os riscos dos avanços da tecnologia?

O risco [dos avanços da tecnologia] é de nos transformarmos em robôs. Não é sobre robôs tirarem os nossos empregos, o que muitas pessoas receiam, mas é uma coisa boa porque os trabalhos que os robôs estão a ocupar são principalmente de tarefas rotineiras, o que são trabalhos que não gostamos de fazer de qualquer das formas. Não está a aperfeiçoar-nos enquanto humanidade.

A coisa má é que as pessoas começam a comportar-se como robôs, começamos a reagir aos telemóveis e notificações, só reagimos a outputs do mundo exterior, não pensamos nós próprios no que nos faz felizes. Há mais coisas na vida que só o telemóvel, ter consciência que há mais na vida que só trabalho. Podemos mudar isso, a crença que temos de trabalhar no duro para ter uma boa vida. Podes viver uma boa vida com menos, se mudarmos o sistema de pensamento.

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