Barragens do Douro Internacional e desigualdade territorial

A riqueza produzida por essas barragens é gerada pelos recursos naturais dessas regiões que são particularmente favoráveis a uma exploração de elevada rentabilidade.

A anunciada venda dos direitos de exploração de seis barragens, pela EDP mostra como não funciona em Portugal o princípio da solidariedade territorial.

Todas as barragens se localizam em Trás-os-Montes, três delas no Douro Internacional, uma das regiões mais pobres do país, onde o PIB per capita é de apenas cerca de um terço do da região de Lisboa. Os serviços essenciais que o Estado deveria disponibilizar, nomeadamente de saúde e educação, mobilidade, e mesmo os de pura soberania, têm vindo a ser encerrados, sucessivamente. Ambos esses fatores têm produzido um efeito de desertificação imparável nas últimas décadas, tendo a população diminuído para menos de metade, desde a década de 1960.

Apesar disso, essas barragens são das maiores unidades industriais do país, das mais rentáveis e daquelas que produzem maior riqueza. Sim, nessas zonas deprimidas e desindustrializadas, situam-se algumas das maiores unidades industriais do país.

Dessa riqueza beneficia a concessionária da exploração, até agora a EDP, e os seus acionistas. Beneficia o Estado, que cobra as receitas do IVA da venda da energia elétrica e o IRC que tributa os lucros da exploração. Beneficia a Câmara de Lisboa, que cobra o maior volume da derrama, só pelo facto de a sede da empresa aí se situar. E beneficia o país todo.

Mas em nada beneficiam as populações onde as barragens se localizam, com exceção de uma parte ínfima da derrama municipal. Nem mesmo ao IMI têm direito, dado que, sendo o Estado o proprietário dos respetivos imóveis, está isento do imposto.

Quando a concessão do direito à exploração dessas barragens terminou, o Estado colheu também, bem ou mal, o rendimento da renovação dessa concessão, à EDP.

Ficámos agora a saber que a EDP vai vender esse direito à exploração, cobrando pelo respetivo trespasse 2,2 mil milhões de euros. Dos ganhos resultantes desse negócio receberá o Estado o IRC que incide sobre a respetiva mais-valia e a Câmara de Lisboa, a parte mais substancial da respetiva Derrama. Além disso, sobre o trespasse da concessão, deverá o Estado cobrar 5% de Imposto do Selo.

Também relativamente a este negócio as populações não só nada ganham, como poderão perder ainda a parcela mínima da derrama que ainda recebem.

A riqueza produzida por essas barragens é gerada pelos recursos naturais dessas regiões que são particularmente favoráveis a uma exploração de elevada rentabilidade, pelo rio, pelas especificidades das suas correntes, pela orografia do terreno, pelo forte declive do seu leito, que é único no país. É o aproveitamento desses recursos naturais que gera toda essa riqueza, pelo que ela deveria pertencer, em primeiro lugar, a essas populações, porque a elas pertencem esses recursos.

A construção das primeiras dessas barragens, Picote em 1957 e Miranda em 1962, aproveitando os financiamentos do Plano Marshall, destruiu a economia milenar que dependia do rio, desde a pesca aos aproveitamentos industriais da corrente do rio, ao comércio com Espanha e ao próprio contrabando, que cada barragem tornou impossível. As expropriações dos terrenos férteis das respetivas margens, foram feitas pelo regime de Salazar, com um profundo desprezo pelos interesses das populações.

Apesar disso, houve o cuidado de beneficiar as populações com uma parte, embora ínfima, dos benefícios dos empreendimentos, nomeadamente com a construção de várias infraestruturas, como hospitais, escolas, centros culturais e redes de fornecimento de energia e de água.

Nesse tempo, a economia local beneficiou ainda da criação de emprego em operários e quadros que garantiam a exploração das barragens. Esse emprego desapareceu, praticamente na sua íntegra, com a automatização e a centralização das operações de gestão.

Atualmente, e desde há mais de 20 anos, os benefícios para as populações são nulos e essas barragens são, para elas, um passivo. Os beneficiários da exploração das barragens, o Estado e a EDP, criaram um contexto em que se apropriam integralmente da riqueza por elas produzida, colocando as populações à margem do acesso a essa riqueza.

O Estado, como proprietário e a concessionária como exploradora, adotaram, há muito tempo, uma atitude meramente extrativa da riqueza que as barragens produzem. E o Estado Democrático não só não corrigiu essa atitude extrativa, como a intensificou.

A riqueza produzida por estes empreendimentos não é igual àquela que é criada por qualquer empresa privada, dado que se trata do aproveitamento intensivo dos recursos naturais autóctones para a produção de riqueza, e esses recursos são bens comuns das populações locais.

Este caso vem desvelar como é obsoleto o modelo de coesão territorial e como, na prática, o Estado está a transferir recursos das regiões mais desfavorecidas para as mais ricas, exatamente o contrário dos propósitos enunciados, de solidariedade e de coesão territorial.

Uma das principais causas da crise das democracias ocidentais é a desigualdade na distribuição da riqueza. Essa desigualdade manifesta-se, não só quando comparamos o PIB por habitante, mas também quando comparamos a distribuição da riqueza pelas regiões do país. Neste caso, à desigualdade entre os cidadãos, acresce a desigualdade entre as regiões do país. E estas são duas das causas mais profundas dos problemas de fracionamento nas sociedades atuais. Um estudo recente do FMI mostra que a desigualdade territorial é um fator de atraso económico e de iniquidade social (The Great Divide: Regional Inequality and Fiscal Policy, 2019). Se queremos evitar os problemas dos exacerbamentos regionalistas, devemos evitar e corrigir, antes de mais as suas causas.

O desprezo do Estado por estas regiões manifesta-se, ainda, no secretismo com que todo o processo de trespasse das conceções se está a fazer, à margem das populações. O Estado é do dono das barragens, mas os recursos naturais que produzem a energia são bens comuns das populações locais. O concessionário não pode dispor do direito à sua exploração sem o acordo do Estado, mas este negócio não pode ser feito sem uma participação e um esclarecimento das populações, acerca dos respetivos impactos, financeiros, ecológicos e económicos, bem como da forma como os seus recursos naturais passarão a ser explorados.

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