Que crimes estão em causa e que penas podem ser aplicadas no caso Marega? Advogados explicam

Regras com poucos meses da FIFA e UEFA são objectivas: árbitro pode interromper ou dar o jogo por encerrado por comportamentos racistas, dizem advogados contactados pelo ECO/Advocatus.

Parar o jogo, suspender o jogo e abandonar o jogo. Estes são os três passos que o árbitro que dirigiu o jogo de domingo do Vitória de Guimarães e do FC Porto deveria ter seguido, segundo as regras da FIFA e da UEFA. Regras criadas nem há um ano (em julho e em outubro respetivamente) caso sejam detetados comportamentos racistas em campo ou em recintos desportivos. Mais: devido a estes mesmos comportamentos racistas, o árbitro deveria ou poderia ter dado por terminado o jogo e atribuir a derrota à equipa infratora. Neste caso o Vitória de Guimarães.

No passado domingo, em Guimarães, durante um jogo da 21.ª jornada da I Liga de futebol entre o Vitória de Guimarães e o FC Porto, o avançado dos ‘dragões’ Marega abandonou o jogo, após ter sido alvo de cânticos e insultos racistas por parte de adeptos da equipa minhota. Vários jogadores do FC Porto e do Vitória de Guimarães tentaram convencê-lo a ficar, mas Marega mostrou-se irredutível na decisão, tendo acabado por ser substituído, numa altura em que os ‘dragões’ venciam por 2-1, resultado com que terminou o jogo. Ao abandonar o relvado, Marega apontou para as bancadas do recinto vimaranense, com os polegares para baixo, numa situação que originou uma interrupção de cerca de cinco minutos.

Que medidas poderiam ser tomadas pelo árbitro?

“O novo Código Disciplinar da FIFA permite que os árbitros interrompam um jogo de futebol por incidentes racistas, podendo mesmo dá-lo por encerrado e atribuir a derrota à equipa infratora ou aos seus adeptos. Adicionalmente, sanções podem ser impostas aos clubes e aos adeptos”, segundo explicou a advogada Catarina Limpo Serra, associada coordenadora do departamento de contencioso da CCA Law Firm.

Alexandre Miguel Mestre, consultor da Abreu Advogados e professor universitário da área de direito do desporto e com vasta obra publicada na área, relembra a chamada regra dos três passos, não seguida pelo árbitro Luís Godinho no domingo à noite: “Em caso de ofensas racistas sérias há três passos a seguir pelo árbitro: parar o jogo; suspender o jogo; abandonar o jogo. No segundo passo, recomenda-se a suspensão por cinco a dez minutos, e até que os jogadores, nesse período, aguardem nos balneários. Também importa que o speaker faca um anúncio público. Tanto quanto se sabe, o árbitro terá transmitido ao delegado da Liga que não reiniciaria o jogo caso os atos racistas subsistissem, mas depreende-se que rapidamente achou que havia condições para o jogo prosseguir, sem seguir o referido método dos três passos”.

Tese sustentada igualmente pelo advogado sénior da Morais Leitão, José Maria Montenegro: “O árbitro pode solicitar um aviso no sistema de som do estádio. Se o incidente persistir, o árbitro deverá suspender o jogo por um período, pedindo às equipas que se recolham aos balneários e que seja renovado o aviso no sistema de aviso de som. Não surtindo efeitos estes procedimentos prévios, o árbitro poderá dar o jogo por terminado”.

Que crimes e que penas estão em causa?

No da seguinte ao da partida, o Ministério Público instaurou um inquérito, sob investigação no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Guimarães. Uma medida que surge depois de a PSP ter anunciado estar a analisar imagens de videovigilância para identificar os suspeitos de ataques racistas feitos ao jogador maliano. Horas mais tarde, a Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD) anunciava a instauração de um processo contraordenacional na sequência do mesmo incidente.

Segundo o Código Penal, estarão em causa os crimes de descriminação e incitamento ao ódio e à violência (artigo 240, número 2 alínea b)) com moldura penal de seis meses a cinco anos de pena de prisão e ainda o crime de injúria (artigo 181º e 182º) dirigido contra o próprio jogador, cuja moldura penal é até três meses de prisão ou pena de multa até 120 dias. Segundo explicam a sócia da CCA, Marta Duarte e o consultor da Abreu, Alexandre Miguel Mestre.

“Sendo a ofensa praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação, como é o caso, por ter ocorrido num jogo de futebol televisionado, a pena é elevada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do art. 183.º n.º 1 do C.P”, acrescenta a advogada Natacha Soares. Porém, este crime de injúria tem de ser participado pelo próprio jogador do FC Porto, já que não é crime público. O que significa que só é investigado caso alguém faça queixa.

Pode ainda haver lugar ao pagamento de uma coima. Segundo o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, a prática de atos ou o incitamento à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos é punida com coima entre 1000 e 10 000 Euros, sem prejuízo da aplicação cumulativa de sanções acessórias como seja a interdição de acesso a recintos desportivos por um período até dois anos.

“Estes atos de natureza racista serão considerados crime se forem praticados num contexto de organização ou de propaganda organizada – caso em que a pena vai de um a oito anos de prisão –, ou se se considerar que está em causa uma divulgação pública de atos de difamação ou injúria de pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, entre outros elementos de discriminação – caso em que que a pena vai de seis meses a cinco anos de prisão”, segundo explica José Maria Montenegro, da Morais Leitão.

Que prova pode fundamentar estes crimes?

Sempre que sobre uma pessoa haja suspeitas da prática de um crime, a PSP pode fazer a identificação de qualquer pessoa no estádio, nos termos do art. 250.º do Código de Processo Penal. Consequentemente, a PSP, no momento, poderia ter identificado os autores das palavras e dos sons. Não tendo acontecido, ‘sobra’ o sistema de videovigilância.

Tal como resulta do Regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos “os recintos desportivos (como os estádios) onde se realizam espetáculos desportivos de natureza profissional têm obrigatoriamente de ter instalado um sistema de videovigilância que permita a gravação de imagem e som e impressão de fotogramas (gravação que é obrigatória desde a abertura até ao encerramento do recinto desportivo)”, explica José Maria Montenegro.

Este sistema de videovigilância pode ser utilizado quer pelas forças de segurança quer pela APCVD (Autoridade para Prevenção e o Combate à Violência no Desporto), incluindo para efeitos de instrução de processos de contraordenação e não só criminais.

“O promotor do espetáculo desportivo tem o dever de manter em perfeitas condições um sistema de videovigilância que permita o controlo visual de todo o recinto desportivo e respetivo anel ou perímetro de segurança. O Vitória SC está obrigado a conservar as imagens pelo período de 60 dias”; explica ainda Natacha Soares.

Alexandre Miguel Mestre relembra que “porventura os stewards (assistentes de recinto desportivo, segurança privada), terão também visualizado algo que possa ser articulado/comunicado às autoridades policiais”.

Catarina Limpo Serra acrescenta ainda que “qualquer forma lícita de identificação será, em princípio admitida, por exemplo, reconhecimento facial e áudio, vídeos, fotografias. A federação de futebol italiana sugere, por exemplo, um sistema semelhante ao VAR apenas para este propósito, identificação de adeptos com comportamentos racistas”.

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