Banco de Portugal rejeita vender reservas de ouro para combater crise

Portugal está em estado de emergência. A despesa pública vai disparar. É esta a altura de vender o ouro, do qual temos uma das maiores reservas do mundo? O BdP diz que não tem "intenção" de vender.

Portugal, que se encontra numa situação de emergência, tem uma das maiores reservas de ouro do mundo. As previsões apontam para um aumento significativo da despesa e uma queda abrupta da receita, levando o défice a disparar. Perante uma pandemia e uma situação económica sem precedentes, poderá o país vender ouro? Ao ECO, o Banco de Portugal assegura que não existe “intenção de realizar qualquer venda”.

A questão não é nova: também durante a última intervenção da troika debateu-se a possibilidade de se usar as reservas de ouro do Banco de Portugal (BdP) para ajudar o Estado a sair da crise. Portugal tem 382,5 toneladas de ouro há vários anos distribuídas entre Complexo do Carregado, o Banco de Inglaterra, a Reserva Federal dos EUA e o Banco de Pagamentos Internacionais, detendo a 14.ª maior reserva de ouro, de acordo com o Fundo Monetário Internacional.

Como acontece habitualmente em tempos de crise e de instabilidade nos mercados financeiros, o ouro tem vindo a valorizar, abrindo a porta à tomada de mais-valias para quem comprou no passado, apesar de ainda estar longe do pico de 2011 perto dos 1.900 dólares por onça. Neste momento, com o ouro a cotar mais de 1.600 dólares por onça e face ao câmbio atual entre o dólar (moeda em que o ouro está cotado) e o euro, a reserva de ouro nacional vale mais de 20 mil milhões de euros, cerca de 10% do PIB anual.

"A reserva de ouro mantém-se estável há vários anos (382,5 toneladas), não existindo intenção de realizar qualquer venda.”

Fonte oficial do Banco de Portugal

A primeira questão que se coloca é se Portugal o pode vender e de quem é a decisão. Até ao final de 2019 havia um acordo entre bancos centrais, incluindo o Banco Central Europeu (BCE) e o Banco de Portugal, que limitava a venda de ouro, mas este deixou de existir. Na altura, o BCE justificou que o nível de “maturidade” do mercado do ouro e o facto de nenhum banco central ter vendido ouro nos últimos anos (pelo contrário, compraram) levou à conclusão que não era necessário mais um acordo formal.

Ou seja, o Banco de Portugal está livre dessas restrições e pode vender o ouro. Mas a decisão cabe exclusivamente ao banco central? Em resposta ao ECO, fonte oficial do banco central confirma que “as reservas de ouro são geridas pelo Banco de Portugal de acordo com o estabelecido na sua Lei Orgânica (Lei nº 5/98, de 31 de Janeiro), que não inclui a prestação de garantias“.

Ao ECO, o professor de macroeconomia da Nova SBE, Pedro Brinca, corrobora: “As reservas de ouro são propriedade do Banco de Portugal que é independente do Governo” pelo que “não é óbvio em termos institucionais e legais” como é que essas reservas poderiam ser usadas “sem a anuência” do banco central. As reservas, onde está o ouro, servem para “intervir no mercado para defender a moeda se for preciso”, mas “estando nós sem politica monetária própria e cabendo esse papel ao Banco Central Europeu, o papel das reservas de ouro para o cumprimento desse objetivo deixa de fazer sentido, pelo menos diretamente“, explica.

Barra de ouro que está exposta no Museu do Dinheiro na sede do Banco de Portugal, em Lisboa.

Se o vender, BdP terá de o distribuir em dividendos para que chegue ao Estado

Este tema já causou dúvidas no passado na União Europeia, tendo Itália pedido uma opinião formal ao BCE. Ainda sob a liderança de Mario Draghi, o BCE emitiu uma opinião formal onde diz que os tratados europeus preveem que cabe aos bancos centrais nacionais deter e gerir as reservas, onde se inclui o ouro.

Nessa tarefa, os bancos centrais nacionais não podem seguir instruções dados por qualquer Governo, ficando preservada a sua independência perante o poder político. Os tratados também proíbem o financiamento monetário (bancos centrais financiarem os défices dos Estados), algo que seria infringido pela transferência do ouro para o balanço dos Estados.

No entanto, o texto sugere que o ouro pode ser vendido e o rendimento dessa operação poderia ser distribuído ao Estado através do “processo normal de distribuição de dividendos”. “O Banco de Portugal tem completa autonomia na decisão sobre como gerir essas reservas, incluindo se quer distribui-lo nos dividendos que paga ao Governo”, assegura o economista Ricardo Reis, professor da London School of Economics, ao ECO.

Após a queda do Sistema de Bretton Woods (convertibilidade entre ouro e dólar), o metal precioso passou a fazer parte dos ativos de reserva dos bancos centrais onde se incluem também os direitos de saque especiais junto do FMI e as reservas em moedas estrangeiras, por exemplo. Estas reservas servem principalmente como uma camada de segurança face a choques externos, mas também podem ser utilizados como fonte de rendimento e para dar liquidez à economia.

Vender ou não vender: eis a questão

Independentemente de ser ou não possível vender o ouro, coloca-se a questão sobre é vantajoso fazê-lo. “A questão essencial aqui é se faz sentido ter uma medida permanente para combater um problema transitório [dado que] o ouro só se vende uma vez“, sintetiza Pedro Brinca. É, por isso, preciso distinguir a situação que se vive daquela que se poderá viver no futuro caso esta crise seja mais duradoura.

Ainda que com muita incerteza no horizonte, o economista da Nova SBE considera que esta será uma opção “se Portugal não tiver condições financeiras de gerir esta crise e estivermos a falar de uma situação de sobrevivência“. “Mas não me parece que estejamos nesse ponto”, conclui. Os juros das obrigações portuguesas subiram no mercado secundário, mas voltaram a descer e continuam em níveis historicamente baixos por causa da política monetária da Zona Euro.

"A questão essencial aqui é se faz sentido ter uma medida permanente para combater um problema transitório [dado que] o ouro só se vende uma vez.”

Pedro Brinca

Para o professor de macroeconomia é, para já, “precoce pensar em cenários de alienação de ativos sob pressão orçamental”, ainda que aponta mais para um défice de dois dígitos do PIB em 2020 do que menos. “Compreende-se o argumento de que a alienação das reservas de ouro faz sentido, mas mesmo nesse contexto, deve ser feita de forma planeada e concertada de forma a maximizar a receita daí proveniente e não sob pressão de realização de receita”, argumenta.

Ricardo Reis considera que esta questão é “uma enorme distração com pouca relevância prática”. “Temos poupanças em ouro, [mas] também temos muita dívida, muito muito mais do que o ouro”, argumenta, admitindo que se possa usar “algumas poupanças” (com a venda do ouro) para reduzir a dívida em determinado momento mas que isso “não resolve problema nenhum em si”.

"Precisamente nesta altura de grande incerteza que colocará o sistema monetário internacional (e o dólar como moeda de reserva) sob enorme risco é de manter as reservas de ouro de Portugal.”

Ricardo Cabral

Contudo, há quem seja mais convicto a rejeitar esta possibilidade. “Precisamente nesta altura de grande incerteza que colocará o sistema monetário internacional (e o dólar como moeda de reserva) sob enorme risco é de manter as reservas de ouro de Portugal“, responde ao ECO Ricardo Cabral, economista que fez parte do grupo de trabalho do Governo/BE sobre a dívida.

Durante a última crise, perante o perigo do colapso da Zona Euro, houve vozes que defenderam a manutenção das reservas de ouro para o caso de o euro deixar de existir e ser necessário um ativo que permita a Portugal fazer transações a nível internacional. “A manutenção de um nível substancial de reservas também assegura que uma eventual saída do euro não ponha em causa a capacidade de ter uma moeda nacional com alguma estabilidade“, explica Pedro Brinca, assinalando, porém, que Portugal “é um dos países com mais reservas de ouro a nível mundial”.

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