Economista-chefe do Credit Suisse considera que a resposta europeia à pandemia está a ser "muito bem-sucedida", mas alerta para o risco de novos focos localizados, que poderão travar a recuperação.
O Credit Suisse antecipa que a economia portuguesa afunde cerca de 9% este ano, num tombo superior ao estimado para a Zona Euro. Mas com o choque inicial já ultrapassado, o banco de investimento considera que o foco deve ser recuperar os setores de atividade direcionados para o futuro já que, ao contrário do que aconteceu na última crise, o país tem agora margem para estimular a economia.
Em entrevista ao ECO, o economista-chefe europeu Neville Hill explica que a rede de segurança do Banco Central Europeu (BCE) e da União Europeia (UE) vão permitir que Portugal continue a financiar-se em mercado sem dificuldades para dar resposta a uma segunda vaga do coronavírus.
Como vê o impacto do vírus até agora? O pior já passou ou ainda está para vir?
O vírus teve um impacto extraordinário e extremo na economia europeia e portuguesa no primeiro semestre deste ano. O choque que vimos na atividade económica — particularmente em abril e março, quando os países introduziram medidas restritivas — foi excecionalmente grave. O golpe inicial foi extraordinário, com a contração mais rápida e mais severa da atividade económica que qualquer um de nós vai ver durante a vida.
A evolução do PIB da Zona Euro e de Portugal será bastante negativa este ano. Antecipamos quedas de cerca de 8% na Zona Euro e, em Portugal, mais próxima de 9%. A primeira metade do ano foi o mais difícil, mas ainda há grandes desafios nos quais estamos focados agora, em termos de efeitos a longo prazo do coronavírus.
Quais são os maiores desafios que vê?
A Europa mostrou-se muito bem-sucedida durante o confinamento, reduzindo o número de casos e mortalidade, o que permitiu que os países viessem a aliviar as restrições. Isso permitiu uma certa recuperação económica. Vimos uma recuperação muito acentuada em dados como as vendas a retalho, o consumo e algumas formas de atividade comercial, pois foram os comportamentos que foram autorizados a reiniciar.
Até agora, a experiência da Europa com o coronavírus parece bastante favorável em comparação com os Estados Unidos. O grande risco a partir daqui é o que estamos a começar a ver, que são surtos localizados por toda a Europa devido às férias de verão. Isso é muito preocupante devido à velocidade da recuperação. Significa que algumas áreas provavelmente sofrerão confinamentos localizados e também que estamos cada vez mais expostos ao vírus.
Como é que espera que a recuperação económica evolua?
Para que as economias voltem ao normal, será necessária uma grande imunidade, uma vacina eficaz ou um tratamento eficaz. Infelizmente, há um limite para a rapidez com que a economia pode recuperar totalmente do vírus, o que significa que não esperamos que o PIB da Zona Euro volte ao nível pré-coronavírus até ao final do próximo ano ou o início de 2022. Pode alterar-se se tivermos a sorte de ter uma vacina antes disso.
Estamos à espera de um ritmo de recuperação mais lento nos próximos 18 meses. E penso que haverá maior volatilidade quando assistirmos às várias regiões a aplicarem novamente restrições em resposta a novos surtos. A forma de lidar com a questão é através da vacina.
Para reduzir a dívida no futuro é necessário ter uma economia saudável e funcional ao sair desta crise. Se os governos falharem na resposta à segunda vaga, as economias estarão num estado muito pior para lidar com os efeitos de longo prazo.
Se houver um segundo surto e o confinamento for restabelecido, como é que países muito endividados como Portugal conseguirão pagar esse esforço?
A resposta curta é que simplesmente vão ter de o fazer. A imagem que descrevi é sombria, mas queria realmente frisar o fato de que a situação poderia ser muitas e muitas vezes pior se não fosse a resposta da política económica dos governos europeus, o Banco Central Europeu (BCE) e, mais recentemente, a União Europeia. Os danos colaterais para a economia — na situação financeira das empresas, dos bancos e das famílias — poderiam ter implicado que as economias estivessem uma década ou mais a recuperar desta crise, em vez de meses ou potencialmente apenas alguns anos.
É importante lembrar que a resposta da política económica que vimos na primeira onda do vírus foi fenomenalmente bem-sucedida e é imperativo que os governos façam o mesmo ou algum outro tipo de estímulo em resposta a uma segunda onda. Consequentemente, é imperativo que outros decisores políticos, em particular o BCE, garantam que esses governos têm e podem manter “poder de fogo” para o fazerem. Penso que os governos — mesmo os muito endividados como Portugal ou Itália — têm capacidade para dar apoio às economias numa segunda onda.
O que é que quer dizer com “têm de o fazer”?
A métrica mais importante aqui são os custos de financiamento dos países. Graças à enorme compra de dívida pública que o BCE está a levar a cabo neste momento, países como Portugal ou Itália podem financiar-se com taxas de juros fenomenalmente baixas. Portugal pode financiar-se a 10 anos a menos 0,5%, o que é fenomenalmente baixo. Nessa perspetiva, os mercados financeiros e o BCE permitirão que esses países aumentem a dívida caso seja a Europa financiar essa resposta política e, a longo prazo, penso que esta é a resposta correta. Penso que, para reduzir a dívida no futuro, é necessário ter uma economia saudável e funcional ao sair desta crise. Se os governos falharem na resposta à segunda vaga, as economias estarão num estado muito pior para lidar com os efeitos de longo prazo.
E é isso que espera? Que haja falhas?
O programa de quantitative easing (QE) do BCE está, na verdade, a comprar praticamente toda a nova dívida pública da Zona Euro, inclusivamente a portuguesa. Os governos podem ir ao mercado financiar-se e vão ter sempre um comprador, o que tem sido absolutamente crítico nos últimos dois meses.
Agora, o fundo de recuperação da UE convenceu os participantes dos mercados financeiros de que há muito mais solidariedade por parte dos Estados-membros para lidar com esta crise do que houve na crise de 2010 a 2012. Os custos de financiamento agora são insignificantes em comparação com os custos que Portugal tinha em 2011. Nessa altura, Portugal pagava mais de 10% e agora paga perto de 0%.
Durante a crise financeira, a dívida de Portugal era genuinamente um entrave ao que o governo podia fazer. E agora não é. Diria que isso se deve em parte à credibilidade que o governo português ganhou ao tentar controlar a dívida nos últimos cinco a dez anos.
Considera que os governos estão a aproveitar essa margem dada pelos baixos juros da dívida?
Uma das principais coisas que os governos têm de fazer, agora que o choque inicial da crise passou, é mostrar um bom discernimento no planeamento da resposta de política económica. De certa forma, o importante é garantir que é apoiada a economia do futuro e não do passado.
Não ficaria surpreendido se o número de países da Zona Euro aumentasse substancialmente nos próximos dez anos. Mas também não ficaria surpreendido se o número de países membros da União Europeia diminuir.
Dizia que o BCE é o principal comprador de dívida da Zona do Euro. Espera medidas extraordinárias, como perdão de dívida?
Não espero que o BCE venha a fazê-lo. Mas a realidade é que, se virmos o QE que realizam desde 2015, mantiveram sempre os títulos no balanço, nunca os venderam de volta ao mercado. Os montantes são reinvestidos à medida que atingem as maturidades, por isso é provável que demore algum tempo até que o BCE comece a reduzir o montante de dívida que detém, mesmo após o fim do programa de compra.
Essas obrigações permanecerão no balanço do banco central por algum tempo, o que significa que os governos têm tempo e espaço para se ajustarem e tentarem controlar as finanças públicas nos próximos três a cinco anos, de forma gradual e menos penosa para a atividade económica, em contraste com a consolidação extrema das finanças públicas que vimos na primeira metade da última década, que claramente teve um impacto muito negativo na atividade económica.
O BCE alguma vez vai conseguir deixar de estar no mercado como grande credor? O que é que preciso?
O BCE não vai querer reduzir o balanço até que a inflação acelere substancialmente, o que vai demorar muito tempo. Quando virmos a inflação a subir, pode ser o momento apropriado para os governos começarem esse reequilíbrio, mas ainda estamos muito longe disso. Ficaria surpreendido se o BCE reduzisse a folha de balanço antes de 2025. Penso que continuará com a deter esses obrigações na maior parte da década. Uma condição necessária para isso é uma inflação mais alta. O BCE tenta fazê-lo há uma década e não consegue. A altura em começar a diminuir o balanço será um momento de sucesso, porque será uma resposta à inflação mais alta e ao forte crescimento económico.
Em relação ao Fundo Europeu de Recuperação, os países europeus estão finalmente a responder ao apelo que o BCE faz há anos por uma política orçamental conjunta?
Sim, penso que sim. É o princípio disso. Emitir dívida em nome do conjunto, permitir à UE e à Comissão Europeia que tenha esse poder de fogo financeiro, é um passo muito importante no caminho para a integração orçamental. O processo foi reiniciado com o anúncio franco-alemão no início deste ano, que também era um símbolo muito forte de que o processo de integração da Zona Euro e da UE foi reiniciado após uma longa pausa. Ironicamente, a saída do Reino Unido do UE permitiu que esse processo fosse reiniciado novamente. Se o Reino Unido ainda fosse membro da UE, penso que a cimeira europeia teria sido ainda mais difícil de alcançar.
O processo será difícil e potencialmente traumático, porque, em última análise, a única forma de conseguirmos passar do fundo de recuperação para uma capacidade orçamental conjunta é através de uma reformulação dos tratados europeus e será muito difícil. Ainda assim, a dinâmica está agora em direcionar-se para uma maior consolidação orçamental a nível europeu. Haverá algumas escolhas difíceis a fazer. Não ficaria surpreendido se o número de países da Zona Euro aumentasse substancialmente nos próximos dez anos. Mas também não ficaria surpreendido se o número de países membros da União Europeia diminuir.
Quais os países que espera que saiam?
Não sei, mas o que acho que alguns países poderão preferir não fazer esse caminho de maior integração e preferir uma relação mais distantes da UE. A Noruega é um bom exemplo de um país que prefere estar integrado apenas no mercado único.
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“Na última crise, a dívida de Portugal era um entrave ao Governo. Agora, não é”, diz economista-chefe do Credit Suisse
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