Vítor Caldeira, da tranquilidade europeia aos choques com a política em Portugal
Agitação mediática a que o organismo liderado por Vítor Caldeira tem sido sujeito no início do ano contrasta com a tranquilidade mediática com que viveu os seus anos enquanto presidente do TCE.
O presidente cessante do Tribunal de Contas (TdC), Vítor Caldeira, alicerçou a sua carreira no Tribunal de Contas Europeu (TCE), sediado no Luxemburgo, mas foi já este ano que vários relatórios do órgão que tutelou suscitaram maior fricção política.
O primeiro-ministro, António Costa, confirmou na terça-feira que não iria propor a recondução de Vítor Caldeira como presidente do Tribunal de Contas, alegando que fixou com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a não renovação dos mandatos como princípio nas nomeações para cargos de natureza judicial.
António Costa rejeitou qualquer relação entre a opção de não reconduzir Vítor Caldeira e as críticas do Tribunal de Contas à proposta do executivo para a revisão da contratação pública, acrescentando que “há quatro anos que o atual presidente do Tribunal de Contas sabia qual era o dia do termo do seu mandato: em 30 de setembro de 2020”.
Entretanto, na terça-feira à noite, o Presidente da República nomeou, sob proposta do primeiro-ministro, o juiz conselheiro José Tavares presidente do TdC, que toma hoje posse em Belém.
Já no início deste ano, mais de três depois do início do mandato de Vítor Caldeira – que se iniciou em 01 de outubro de 2016 -, que o Tribunal de Contas ficou na ‘mira’ do Governo e do presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Fernando Medina (PS), por relatórios sobre a venda de imóveis da Segurança Social à autarquia, alegadamente abaixo do preço de mercado, e sobre irregularidades no financiamento ao Ensino Superior.
Também em fevereiro o presidente da Câmara Municipal do Porto (CMP), Rui Moreira, queixou-se da demora da decisão do TdC sobre o matadouro de Campanhã, que já contava 365 dias para obter o visto prévio daquela entidade, depois de uma primeira recusa em 2019 e posterior recurso da câmara.
Em 05 de março, foi divulgado mais um relatório do TdC, considerando que Hospital das Forças Armadas (HFAR) estava a ser utilizado abaixo das suas capacidades, “particularmente por as prestações ao Serviço Nacional de Saúde, que previam a realização, pelo HFAR, de exames e cirurgias aos utentes do SNS, terem ficado aquém do esperado”.
Na semana passada, um parecer do Tribunal de Contas indicou que as novas regras de contratação pública, propostas pelo Governo, aumentam “as possibilidades de conluio na contratação pública e distorção de concorrência”, conforme noticiado pelo jornal Público.
A agitação mediática a que o organismo liderado por Vítor Caldeira tem sido sujeito no início do ano contrasta com a tranquilidade mediática com que viveu os seus anos enquanto presidente do Tribunal de Contas Europeu, entre 2008 e 2016.
Desde 2000 que Caldeira tinha sido responsável por várias direções na instituição europeia que viria a presidir, tendo sido responsável pela auditoria das atividades bancárias europeias, pela Declaração de Fiabilidade do Tribunal (DAS), Decano do Grupo de Auditoria do Tribunal responsável pela parte financeira, e pela Divisão encarregada do Desenvolvimento e Relatórios de Auditoria.
Vítor Caldeira acumulou ainda condecorações e reconhecimentos, como a portuguesa Grande cruz da Ordem Militar de Cristo, em 2014, a Ordem de Mérito de Supervisão nas Américas, e ainda medalhas de mérito e doutoramentos Honoris Causa em países como a Albânia, Bulgária e Polónia.
Antes de ir para as instituições europeias, trabalhou na Inspeção-Geral de Finanças entre 1984 e 2000, foi Diretor e Subinspetor-Geral, responsável pelas auditorias da UE e pelo Sistema de Controlo Interno da Administração Financeira do Estado.
Vítor Caldeira licenciou-se em Direito pela Clássica de Lisboa, tem uma pós-graduação em Estudos Europeus pelo Instituto Europeu da mesma instituição, onde também foi professor assistente, tendo-o sido também no Instituto Superior das Novas Profissões (1996-1999).
Segundo o Tribunal de Contas, o preço de venda de onze imóveis da Segurança Social à Câmara de Lisboa para arrendamento acessível, acordado em 2018, por 57,2 milhões de euros, foi inferior em 3,5 milhões ao valor de mercado, e na mesma noite em que foi divulgada a auditoria, já de madrugada, o ministério de Ana Mendes Godinho apressou-se a negar qualquer irregularidade.
Na manhã seguinte, o presidente da CML disse que o relatório do órgão liderado por Vítor Caldeira de estava ferido de incompetência, e a ministra da tutela defendeu que a operação “cumpriu o interesse público nas suas várias dimensões”.
“O relatório do Tribunal de Contas é um relatório lamentável a todos os títulos e é um relatório tecnicamente incompetente”, disse Fernando Medina numa conferência de imprensa convocada na manhã seguinte à divulgação do documento.
Em reação, o TdC afirmou ter sido “coerente e conforme à lei”: “O Tribunal reafirma que enquanto órgão independente atua em estrita conformidade com a Constituição e a Lei, com neutralidade política, isenção e imparcialidade”, reforçou.
Na segunda polémica, foi a vez do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, entrar em ‘choque’, quando em fevereiro foi tornada pública uma auditoria que dava conta que o financiamento das instituições de ensino superior ignorou a fórmula prevista na Lei de Bases que define as verbas a atribuir, e também foi na mesma madrugada que o Governo voltou a reagir.
“A Lei de Bases do financiamento do ensino superior tem sido integralmente cumprida”, defendeu o ministério, acrescentando que a “transparência e o detalhe da execução do programa orçamental são adequados, sendo públicos e escrutináveis”.
Durante o dia seguinte, Manuel Heitor foi à TSF dizer que o trabalho do TdC sobre o financiamento do Ensino Superior se limitava “a uma avaliação geral, de lugares comuns, de índole política”, e era “um elogio à burocracia e à ignorância”.
Em resposta, o TdC disse que a declaração do ministro não foi “aceitável” e que a apreciação de que tinha sido feira uma avaliação de índole política “carece de fundamento”.
Sobre o matadouro de Campanhã, Rui Moreira considerou em fevereiro que a demora na obtenção do visto prévio (que foi posteriormente concedido, em abril, após sucesso do recurso da CMP) configurava um “veto de gaveta”, que só podia ser ultrapassado com uma decisão.
Para o independente, o tempo do Tribunal de Contas “não se coaduna com o tempo da democracia”, onde os presidentes de câmara são eleitos para mandatos de quatro anos.
Já sobre o terceiro relatório, o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, teceu comentários mais conciliadores, considerando “os pareceres do Tribunal de Contas sempre muito úteis”, e que no caso concreto do HFAR, o organismo vinha “apenas confirmar o diagnóstico que tinha sido feito” pela Defesa.
“Estamos em condições de dizer que ainda no primeiro semestre muitas das questões identificadas pelo TdC terão resposta na reorganização do sistema de saúde militar”, acrescentou então o ministro.
No parecer divulgado na semana passada e noticiado pelo Público, o Tribunal de Contas considera que as alterações propostas ao regime de contratação pública são “suscetíveis de contribuir para o crescimento de práticas ilícitas de conluio, cartelização e até mesmo de corrupção na construção pública”.
A visão do TdC alicerça-se “no pressuposto genericamente aceite de que a atividade da contratação pública é um campo fértil e de risco acrescido para esse tipo de atuação ilícita”.
Na terça-feira, o primeiro-ministro fez questão de salientar a “legitimidade” do parecer do Tribunal de Contas em relação ao diploma do seu executivo, defendendo que no processo legislativo “é importante considerar outros pontos de vista e outras visões”.
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