Se o salário mínimo não subir em 2021, o Governo estará a dar um sinal negativo à economia, diz Vieira da Silva. O ex-ministro defende que há condições para um aumento do SMN.
Congelar o salário mínimo no próximo ano seria dar um sinal negativo à economia. Quem o diz é o ex-ministro do Trabalho José António Vieira da Silva, que, em entrevista ao ECO, defende há condições para avançar com um reforço das remunerações mais baixas. Ainda assim, reconhece que há setores nos quais tal caminho poderá implicar mais dificuldades.
O socialista sublinha que “sem rendimentos das famílias, há postos de trabalho que se perdem”, especialmente num momento em que a procura externa está muito fragilizada.
Sobre o Plano de Recuperação e Resiliência apresentado em Bruxelas, Vieira da Silva avisa que é preciso ter uma “visão de conjunto” do país e fazer a inovação chegar a todos os setores, sem criar fraturas. Defende, ainda, uma aposta nas qualificações dos trabalhadores, que destaca como principal défice de Portugal.
Nesta que é a segunda parte da entrevista de Vieira da Silva ao ECO, o ex-governante deixa também uma nota sobre as eleições presidenciais, revelando que faz um “balanço globalmente positivo” da ação de Marcelo Rebelo de Sousa.
O Governo já disse que tem intenção de subir o salário mínimo em 2021, mas os empregadores dizem que este não é o momento de falar de aumentos. Qual a sua opinião? O salário mínimo devia ou não subir no próximo ano?
É uma questão difícil. Uma grande parte da economia portuguesa tem condições para suportar, mesmo numa situação difícil, um aumento do salário mínimo. Outros setores terão um pouco mais de dificuldade. Suponho que isso esteja a ser analisado. Julgo que o congelamento do salário [mínimo] daria um sinal negativo. Agora, se podemos ter o ritmo que tínhamos previsto, isso já é outra questão. Aquilo que eu sei é que temos de monitorizar muito bem o impacto, como fizemos ao longo destes últimos anos, talvez até com mais atenção para ver como é que a economia reage e como é que o emprego reage, sendo que não é o salário mínimo que determina o emprego. Pode ajudar os rendimentos, mas é a dinâmica global da economia [que determina o emprego].
A economia cresce basicamente por três dimensões: a procura das famílias e das empresas internamente, o investimento e a procura externa. Hoje, temos muito pouca capacidade de influenciar a procura externa e uma parte da nossa procura externa vem de países que foram muito atingidos pela crise, nomeadamente Espanha. Portanto, os nossos instrumentos para ganharmos competitividade externa são menos eficazes, porque a procura do outro lado está muito periclitante. Por isso, temos de valorizar muito a procura das famílias. Sem rendimentos das famílias, há postos de trabalho que se perdem. E depois [temos também de valorizar] o investimento em setores estruturantes que criam emprego e ajudam a economia a preparar-se para a fase seguinte.
As nossas políticas públicas tiveram um efeito travão muito relevante da máquina destrutiva que uma crise deste tipo põe em marcha.
A par dessa subida do salário mínimo, o Governo diz que está pronto para prolongar e até mesmo aprofundar o apoio à retoma progressiva. Que avaliação faz desse apoio?
Foi uma medida absolutamente essencial para limitar os primeiros efeitos da pandemia. De uma forma ou de outra, quase todos os países criaram instrumentos relativamente semelhantes e acho que é prudente que se faça um acompanhamento e não se deixe cair uma medida destas de um momento para o outro, porque o impacto pode ser avassalador. Portanto, que haja um período de transição em que o Estado mantenha [o apoio]. Tudo isso tem custos, impacto orçamental e para isso precisamos de um Orçamento. Todas essas medidas podem ser mais dificultadas se o Orçamento não tiver margem para as suportar.
Que avaliação faz do bolo total de medidas lançadas pelo Governo para mitigar a escalada do desemprego face à pandemia de coronavírus?
Com a dimensão da crise que tivemos, julgo que, por comparação a outras economias, as nossas políticas públicas foram aquelas que eram possíveis e tiveram normalmente um efeito travão muito relevante da máquina destrutiva que uma crise deste tipo põe em marcha.
Recordo-me que havia uma estimativa que um mês de confinamento tinha impacto potencial no crescimento económico do ano inteiro de 6,5%. E se não existissem essas medidas de apoio ao emprego [estariam em causa] consequências muito mais intensas e agudas naquilo que são os indicadores do emprego.
No mesmo sentido, que avaliação faz da sua sucessora no Ministério do Trabalho?
Acho que as pessoas que abandonam o Governo devem manter o recato, ainda por cima quando é um Governo chefiado pelo mesmo primeiro-ministro que aquele onde eu estive.
O Ministério [do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social] sofreu um embate muito forte. Uma grande parte das medidas que foram desenvolvidas passou por ali. Às vezes não se percebe isso. A linha da frente do combate à pandemia é a área da Saúde, naturalmente, mas depois noutro plano de resposta foi ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social que coube dar respostas muitas vezes muito difíceis, em prazos muito curtos, com alterações muito significativas e acho que isso deve ser reconhecido por todos.
É completamente destrutivo usar contratos a prazo como período experimental e era isso que acontecia. Portanto, estou tranquilo com as opções que ajudei a tomar. Sei as críticas que foram feitas. Agora, não utilizem a pandemia como prova.
Os sindicatos dizem que as mudanças feitas em 2019 ao Código do Trabalho vieram piorar a situação de muitos trabalhadores durante a pandemia. Por exemplo, ao se ter aumentado o período experimental, deixou-se os trabalhadores mais tempo sem proteção. Continua a defender o prolongamento do período experimental?
Obviamente, aquelas medidas não foram feitas para nenhuma situação pandémica. Agora, temos de levar em linha de conta que aquelas medidas não foram criadas do nada. Foram criadas ao mesmo tempo que se retirou da lei a possibilidade de contratar a prazo por muito mais tempo os jovens ou os desempregados só porque eram jovens ou desempregados. A possibilidade de ter, durante um tempo maior, pessoas em situação de precariedade era muito maior do que a que existe agora.
A pandemia veio tornar a avaliação dessas medidas muito mais difícil, mas continuo a pensar que o racional que está por detrás de criar um período [experimental de 180 para pessoas à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração], que aliás é o que está nos textos europeus… Do ponto de vista da dimensão estrutural, creio que é uma boa proposta porque nós precisamos de continuar a combater a precariedade e, ao contrário do que alguns dizem, esse é um instrumento de combate à precariedade e de reforço da possibilidade de empregadores e trabalhadores terem contratos sem termo.
É completamente destrutivo usar contratos a prazo como período experimental e era isso que acontecia. Portanto, estou tranquilo com as opções que ajudei a tomar; sei as críticas que foram feitas. Agora, não utilizem a pandemia como prova, porque a pandemia não é prova de nada. A pandemia destrói tudo, destrói empregos permanentes, destróis empregos a prazo, provoca despedimentos coletivos. Tem riscos tremendos em todas as áreas. Sinceramente, não atribuo muita importância a essa correlação porque acho que ela é completamente forçada.
Outra das novidades que 2019 trouxe ao Código do Trabalho foi a chamada taxa de rotatividade, que ainda não saiu do papel. Perante o estado atual do mercado de trabalho, considera que é importante colocá-la em prática.
A própria Administração Pública sofreu diretamente os efeitos da pandemia e, portanto, é natural que algumas medidas que são tecnicamente mais exigentes tenham agora um prazo de aplicação que não é exatamente o mesmo que estava previsto quando foram concebidas, porque nada é igual e porque outras prioridades se colocam.
O Governo já entregou em Bruxelas o Plano de Recuperação e Resiliência. Que é que lhe pareceu a proposta? Foram escolhidos os caminhos certos para levar Portugal à recuperação?
Para complicar toda esta situação, ela [a pandemia] acontece num momento em que a Europa já discutia dois desafios de enorme dimensão. O desafio climático, que tem atingido com grande dureza o nosso planeta e com perspetivas de agravamento, se nada for feito. E o outro é a questão da transformação tecnológica, com grande impacto na vida das pessoas e das empresas. Portanto, esta crise cai em cima desses dois desafios.
O Plano de Recuperação [e Resiliência] elaborado pelo Governo português dá muita atenção a essas duas dimensões, dá muita atenção a que a recuperação seja uma recuperação da crise da pandemia, mas também um caminho de nos por a par de uma mudança positiva na resposta à crise climática, nas energias renováveis, na eficiência energética nos edifícios, nos transportes, na ferrovia, por aí fora.
Esta combinação entre a resposta a uma emergência e um salto em frente é muito difícil, é muito exigente. Acho que temos de estar todos muito atentos para que não corramos o risco de perder a visão de conjunto da nossa economia e da nossa sociedade. Temos ter quem esteja à frente, mas isto não é uma corrida de ciclismo, temos de levar o pelotão todo.
Já houve momentos na nossa história económica recente em que se fizeram grandes apostas em transformações tecnológicas muito rápidas, em planos para a indústria para saltar para um outro patamar e queimar etapas. Normalmente, não correu bem e foi preciso voltar a olhar para a economia e pensar que a inovação tem de estar em todos os sítios. Não há um setor inovador e os setores que temos de suportar, porque são velhos. Não é assim que a economia funciona. A inovação tem de estar na robótica, na inteligência artificial, mas tem de estar também na agricultura, no comércio, nas indústrias ditas tradicionais.
O alerta que eu deixo é que é preciso ter muito cuidado para não fraturar o país no país das startups e da inovação e o país da produção tradicional, que faz parte do nosso modo de vida, que tem de mudar e está a mudar.
A questão das qualificações das pessoas continua a ser o nosso principal défice. Não há inovação, nem avanços tecnológicos se não recuperarmos um défice que é o maior que nós temos face aos nossos concorrentes.
O Governo planeia fazer um investimento na qualificação das pessoas. Considera que o PRR faz uma aposta suficientemente forte para dinamizar o emprego?
Na minha opinião, não podemos perder a ideia que a questão das qualificações das pessoas continua a ser o nosso principal défice. Não há inovação, nem avanços tecnológicos se não recuperarmos um défice que é o maior que nós temos face aos nossos concorrentes. Estamos a fazê-lo de forma rápida, na formação superior dos mais jovens, mas no cenário demográfico que temos não podemos deixar de contar com as pessoas que têm uma formação menos avançada, que tiveram um percurso escolar mais curto e que têm um papel importante a desempenhar na nossa economia. Não os podemos perder, em particular numa altura em que estamos numa contração demográfica muito forte.
Tendo em conta as profundas carências do país, deveria recorrer-se mais aos empréstimos e não apenas a subsídios, no PRR?
O que o primeiro-ministro disse foi que o nosso plano de investimentos era feito com base nas duas componentes que têm estes planos que são as subvenções e os empréstimos. Percebo essa opção [a preferência pelas subvenções], porque Portugal tem uma dívida pública muito elevada. Portanto, apesar de os empréstimos que vierem associados a este plano serem muito previsivelmente empréstimos em condições muito favoráveis, a primeira prioridade é pôr a economia a recuperar. Julgo que utilizar nessa recuperação principalmente as subvenções é uma atitude prudente. Nada nos impede de vir a reavaliar, se for necessário.
[Marcelo Rebelo de Sousa] contribuiu muito positivamente para a normalização da vida democrática e para a defesa do equilíbrio institucional e do rigor constitucional.
No próximo ano, há eleições presidenciais. As sondagens indicam que, se se recandidatar, Marcelo Rebelo de Sousa continuará a ocupar o cargo de chefe de Estado. Que lhe parece? É o Presidente indicado para os próximos anos?
Não fui votante do professor Marcelo Rebelo de Sousa, mas faço um balanço globalmente positivo da [sua] ação. No essencial, tendo atenção à dimensão institucional, constitucional e política do Presidente da República, acho que o balanço que se pode e deve fazer é que contribuiu muito positivamente para a normalização da vida democrática e para a defesa do equilíbrio institucional e do rigor constitucional.
Com críticas que se fazem sempre aos Presidentes. Já vivi com Presidentes que tinham origem política na família política de que faço parte, o Partido Socialista, e também nem sempre concordei com algumas das decisões tomadas. Não é essa a questão. A avaliação global que faço é positiva.
Não conheço ainda qual é o programa [de Marcelo Rebelo de Sousa], a estratégia para um segundo mandato, sendo que será um mandato que vai ser exercido em condições muito complicadas ou com risco de serem muito complicadas, o que faz sobressair a necessidade de uma grande estabilidade institucional e de uma defesa dos interesses nacionais, num quadro que será extremamente exigente.
Dito isso, na sua opinião, o PS devia apoiar Ana Gomes?
O Partido Socialista tem prevista uma reunião para discutir essas questões, estou expectante sobre essa discussão. Não vejo, sinceramente, que haja vantagens em que o Partido Socialista apresente um candidato saído dos seus quadros ou da sua área política de influência. As eleições presidenciais também têm uma dimensão de combate político-ideológico, mas não são o espaço privilegiado para esse combate. Esse é o da governação, do debate parlamentar, do dia-a-dia da contraposição de propostas políticas.
Neste momento, tanto quanto me é possível observar, não estou a ver que uma candidatura do Partido Socialista tenha condições de reforçar a posição da esquerda democrática, que é aquilo que eu acho essencial. O facto de, por vezes, personalidades dos partidos apresentarem-se e os partidos não se reverem nessas candidaturas já aconteceu a todas as áreas políticas. Acho que os sinais que nos dão os estudos de opinião são de que o povo português, com críticas maiores ou menores, avalia positivamente a prestação do atual Presidente da República.
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