Em entrevista ao ECO, Duarte Gomes Pereira, novo presidente da ASFAC, refere que as empresas financeiras estão "abertas a apresentar soluções" após o fim das moratórias privadas.
As moratórias foram a tábua de salvação para quem não podia pagar os créditos, mas estão a chegar ao fim. Enquanto a suspensão do pagamento da habitação continua até setembro através do regime público, há moratórias que começaram já a terminar, como é o caso do crédito ao consumo. Duarte Gomes Pereira, o novo presidente da Associação de Instituições de Crédito Especializado (ASFAC), diz em entrevista ao ECO que não é uma “maldade” do setor perante os clientes. Garante que o setor tem muitas outras soluções para os ajudar neste contexto adverso.
Gomes Pereira, que protagonizou a primeira mudança de liderança da ASFAC em quase 30 anos, assume o cargo numa altura marcada pela pandemia e consequente crise económica, mas afasta cenários de crise. Diz que o incumprimento não está a aumentar com o fim das moratórias. Ainda assim, alerta que o grande desafio será quando terminar a moratória pública.
Apesar de admitir que foram necessárias precauções para provisionar o futuro, o novo presidente da ASFAC, que é também head of legal & compliance no Banco Credibom, considera que as instituições de crédito especializado têm solidez para aguentar o que se segue.
Qual é o cenário que encontra? Já temos quase um ano de pandemia. Qual está a ser o impacto da pandemia nas instituições de crédito?
O impacto principal é de recursos humanos. De repente, as instituições tiveram de se adaptar a uma realidade de teletrabalho. Apesar de algumas já terem uma capacidade parcial de teletrabalho, tiveram de se adaptar a 100%. Essa foi a adaptação interna que teve de ocorrer. Depois teve de haver uma adaptação operacional, não só da moratória que foi implementada, como soluções de avaliação de risco de crédito e como soluções para clientes em dificuldades, porque nem todos puderam ou quiseram recorrer às moratórias e não deixaram as instituições de salvaguardar os interesses dos clientes. Portanto foi uma adaptação operacional complicada em todos estes âmbitos: interno, avaliação de risco de crédito e soluções para clientes em dificuldades.
Como acabou por ser o nível de adesão das moratórias e como evoluiu ao longo do tempo?
A ASFAC foi a primeira associação em Portugal a criar uma moratória privada. Mobilizámos imediatamente todos os associados para a criação do texto de uma moratória que teria de ser feita à luz das guidelines da EBA [Autoridade Bancária Europeia], que só nos permitiram ter a moratória no final de março, o que nos obrigou ainda à redação da própria moratória e, entre todos os associados que quiseram aderir — que no início foram cerca de 16 –, ter um texto comum, de interesse comum dentro das guidelines. Houve uma grande mobilização inicial. Alguns perentoriamente não quiseram aderir por questões internas, eventualmente de concorrência, apesar de a moratória ter sido feita sempre em consonância com a Autoridade da Concorrência.
Mas tínhamos de cumprir com os requisitos, que era haver uma adesão substancial e representativa do mercado e que todas as possibilidades, que eram passíveis de considerar dentro da moratória, estivessem em linha com as guidelines. Obviamente tínhamos já uma referência, que era a moratória legal, e tentámos ao máximo que a nossa moratória se aproximasse da moratória legal embora dando um espetro maior de soluções aos clientes. Houve uma adesão de 16 associados, trabalhámos em conjunto e houve uma convergência de opiniões. Num tempo recorde conseguimos aprovar, implementar e apresentar aos clientes a moratória que na altura considerámos que era uma forma de os ajudar.
Tentámos ao máximo que a nossa moratória se aproximasse da moratória legal embora dando um espetro maior de soluções aos clientes.
Quantos não quiseram aderir? Houve depois alterações nos 16 que quiseram?
Cerca de oito não quiseram aderir. Desistências nunca houve. O que aconteceu foi que as adesões à moratória estavam previstas até ao final de junho e com termo no final de setembro. Inicialmente era o que estava previsto nas guidelines e foi o que fizemos. Em julho, a EBA permitiu uma extensão do prazo do fim das moratórias (não alterando a permissão de novas adesões) e juntámos os associados para perceber quem queria aderir.
Na altura decidimo-nos pelo final de dezembro, que considerámos ser o prazo correto para as moratórias que estivessem em curso e para os clientes que assim o desejassem. Chamo a atenção que a nossa moratória era para todo o crédito ao consumo, incluindo cartões de crédito, porque eram os tipos de créditos que estavam fora da moratória legal. Desta extensão de setembro para dezembro, nem todos os associados quiseram e ficaram oito.
Mas, ao contrário das públicas, as moratórias privadas acabaram por não ser novamente prolongadas. Faz sentido que assim seja tendo em conta a evolução da pandemia e o novo confinamento?
Penso que faz sentido porque as pessoas já têm o seu maior encargo — o crédito à habitação — salvaguardado até setembro deste ano. Se todos decidissem estender a moratória até setembro, então em outubro o encargo seria muito mais violento para os consumidores porque iam estar a pagar o crédito à habitação e ao consumo. Por outro lado, as pessoas estarem em moratória é um risco adicional na aceitação e na avaliação de solvabilidade dos clientes porque as entidades, quando estão a fazer a avaliação de um cliente em moratória, não sabem se está realmente em dificuldades ou não. Veem que o cliente tem tudo perfeito e talvez até atribuam um novo crédito. Em setembro, quando tiver de pagar tudo, vai ser um problema.
Portanto a perspetiva de reiniciar o pagamento das prestações de uma forma gradual e poder ter uma avaliação de solvabilidade mais correta foi a principal questão tida em conta para não estender mais a moratória. Além disso, as moratórias no âmbito da EBA preveem e obrigam que haja uma adesão substancial e representativa do mercado. Não houve, nem de perto nem de longe, uma vontade do mercado substancial numa eventual extensão do prazo. Logo por aí, não nos permitiria. Mas eu estou totalmente alinhado com os critérios apresentados pelas associadas: as pessoas neste momento têm capacidade para ir pagando de forma gradual.
Se todos decidissem estender a moratória até setembro, então em outubro o encargo seria muito mais violento para os consumidores.
O que é que se segue agora?
O facto de não haver moratórias não significa que não haja modalidades de pagamento para quem está em dificuldades. Já estavam disponíveis antes, estiveram durante as moratórias e continuarão a estar. Nós temos um leque mais alargado de soluções para os clientes do que a permitida pela moratória. É muito importante que não haja um entendimento de que a não adesão às moratórias significa que não há soluções para os clientes. Porque elas existem sempre.
Que soluções são essas?
Por exemplo, a moratória prevê a suspensão de pagamento. Entre as soluções que podem ser apresentadas pelos associados está a suspensão de pagamentos, extensão do prazo, redução das prestações (nomeadamente a redução de taxa de juro, que não é permitida nas moratórias). Poderá haver uma mera redução da prestação, soluções de refinanciamento… Há um sem fim de soluções que são criadas à medida das necessidades de cada um dos clientes e não de acordo com a moratória, que dá uma ou duas opções que são aplicáveis a todos os clientes.
O que é preciso para ser elegível para essas medidas?
Não há um critério de elegibilidade, basta que se contacte a instituição onde está o crédito sediado e que se informe que se está em dificuldade ou em incumprimento, mas isso a instituição saberá e contactará o cliente pró-ativamente. E entre a instituição e o cliente será alcançado um acordo entre as possibilidades do cliente e as opções. Não há um critério, é para quem necessita. Até porque sabemos que houve muita gente que recorreu às moratórias e não precisava.
Essas medidas são suficientes para colmatar o risco para o qual a Deco tem alertado de que o fim das moratórias privadas pode resultar num agravamento das penhoras e insolvência das famílias?
Certamente que vão colmatar. Mas estas medidas não são atuais nem são uma reação a alertas de quem quer que seja. Já existiam e vão continuar a existir no período pós-pandemia. Além de que existem obrigatoriedades de soluções no âmbito da lei. Existe o regime do PARI [plano de ação para o risco de incumprimento] e o PERSI [procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento] que as instituições são obrigadas pelo Banco de Portugal a implementar.
Há uma perceção errada de que a não existência de moratórias não equivale à não existência de soluções. As pessoas acham que o fim da moratória é uma maldade que os bancos estão a fazer aos clientes. Não é e os clientes têm de saber que há sempre soluções, que os bancos estão sempre abertos a apresentar soluções. Nós faremos tudo e seremos um suporte para a recuperação dos clientes e da economia. Nós temos sempre as portas abertas.
Existe a perceção de que a pessoa tem de estar mesmo “debaixo de água” para poder pedir ajuda…
De maneira nenhuma. Qualquer pessoa que esteja em real dificuldade pode. Não podemos é falar dos casos em que se pretende reduzir uma prestação para ir contrair outro crédito porque isso é o maior erro que poderá fazer… Mas nós não queremos, de maneira nenhuma, incumprimento. Nós queremos os clientes em cumprimento, não haverá nunca essa questão. O negócio é esse. E as medidas taylor-made são muito mais vastas do que as medidas one fits all, que é o caso das moratórias. As medidas feitas caso a caso são medidas transversais e feitas à medida da pessoa.
Há abertura para outras medidas (além das que tinham antes) que se sigam ao fim das moratórias?
Há. Podem ser criadas novas medidas. Não consigo ter agora imaginação para dizer quais porque já existe um sem fim de medidas que as instituições aplicam. Não podemos é criar medidas que sejam incomportáveis para os clientes, como por exemplo ficar a pagar um crédito ao consumo durante 30 anos.
Às vezes a única solução é entrar em insolvência e não conseguir pagar, mas esperamos que isso seja no menor número possível porque o incumprimento é de uma gravidade enorme para as instituições, pois vão ter de provisionar o valor em incumprimento muitas vezes a 100%, o que não acontece com as moratórias. Portanto, as moratórias até são um benefício adicional para as instituições. Não queremos, de todo, o incumprimento. É de uma gravidade, para nós, muito elevada.
A suspensão de pagamentos está a traduzir-se na qualidade dos ativos? As instituições de crédito especializado também estão a reforçar as provisões como a banca?
Não posso comentar como é que cada um internamente está a gerir porque, enquanto associação, não temos acesso aos números de moratórias ou incumprimento. Para já não podemos avaliar se os ativos são de boa ou má qualidade porque quando estão em moratória não há degradação, embora as associadas façam um acompanhamento permanente para saber qual é a capacidade dos clientes de virem a pagar.
Quando se vai ver a qualidade dos ativos vai ser agora. Agora que começou o pagamento é que vamos poder avaliar o incumprimento, que tanto quanto sei não é de todo elevado. E mais: o incumprimento não é de todo relevante nas pessoas que voltaram ao pagamento após a moratória. Com o futuro, a eventual evolução negativa do emprego, a incapacidade de pagamento das pessoas, aí poderá haver — esperamos que não — uma degradação da qualidade. Por enquanto, mantêm-se sãos.
O incumprimento não é de todo relevante nas pessoas que voltaram ao pagamento após a moratória.
Quais as perspetivas para o futuro das empresas financeiras? Há solidez para continuar a enfrentar esta pandemia?
Isso há. As empresas estão sólidas. As moratórias não foram propriamente um benefício que tivemos em termos de liquidez. Não ajudou, de todo, principalmente para as associadas da ASFAC, que não têm os depósitos bancários que os bancos comerciais têm. Nós vivemos do que é pago pelos clientes e emprestamos através do que é pago pelos clientes. O nosso crédito tem como base o funding e o que é pago pelos clientes. Não foi bom para nós.
Houve alguma situação de falta de liquidez ou em que as associadas tiveram de tomar medidas?
Não, não houve nenhuma medida de emergência que tivesse uma falência ou uma insolvência em perspetiva. Houve provisionamento, embora saibamos que as taxas de juro estão tendencialmente num valor baixo para o funding, mas todas as empresas tiveram de se precaver para eventuais situações e para provisionar o futuro, como é claro. Mas nenhuma delas entrou em risco grave, que eu saiba.
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“Pessoas acham que fim das moratórias é uma maldade que os bancos estão a fazer aos clientes. Não é”, diz o presidente da ASFAC
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