Francisco Cortez: “A lentidão da nossa Justiça é de um país de terceiro mundo”, diz sócio da ML

Francisco Cortez é sócio da ML e coordenador de contencioso/arbitragem e de desporto/ entretenimento. É o advogado escolhido pela Advocatus para a rubrica "Como é fazer contencioso em plena pandemia?"

Francisco Cortez colabora com a Morais Leitão desde 2006, sendo sócio desde 2007. É cocoordenador do departamento de contencioso e arbitragem e do grupo de desporto e entretenimento. É um dos advogados da sociedade com mais experiência de contencioso nas suas várias vertentes, em especial na área do contencioso civil, comercial e societário. É responsável por diversos processos judiciais e de arbitragem voluntária. Como advogado e como árbitro participou, desde 2000, em mais de três dezenas de arbitragens em Portugal.

Foi advogado associado na Pena, Machete & Associados de 1991 a 1998 e sócio da Osório de Castro, Verde Pinho, Vieira Peres e Lobo Xavier de 1998 a 2005. Foi também jornalista no “O Independente”.

As férias judiciais são um tema que é politicamente recorrente. Perante este contexto da pandemia, concorda que deveriam ser reduzidas, de forma a recuperar o tempo perdido? Parece-me uma solução simples mas que terá alguns anti-corpos.

Sou a favor de todas as medidas que permitam de forma eficaz recuperar este tempo perdido de praticamente um ano nas nossas vidas e também no andamento normal dos processos pendentes nos Tribunais.

Quando a pandemia terminar, ou pelo menos abrandar – o que que esperamos todos que aconteça em breve como resultado da vacinação – teremos todos que fazer um esforço para que os litígios por resolver possam ter uma solução em tempo útil para as partes.

Se isso acontecer antes do verão, e apenas como medida excecional, penso que faz sentido reduzir as férias judiciais até ao final do ano de 2021, como também faz sentido conceder uma redução de custas para estimular que as partes terminem os processos por acordo, o que, aliás, foi anunciado pelo Governo em junho de 2020 passado e inexplicavelmente nunca mais teve qualquer desenvolvimento (RCM 41/2000).

Fala-se ou falou-se em situações de pre-rutura do SNS. E do sistema de Justiça? O que se pode esperar com esta paragem derivada da pandemia?

Podemos esperar o óbvio: maior atraso nos processos que estavam pendentes e maior acumulação de processos, porque muitos não foram concluídos e outros deram entrada, ou vão dar entrada, logo que terminar o presente período de suspensão.

Mas também devia acontecer algo que não é tão evidente agora em plena pandemia: um salto tecnológico enorme, que permita a realização de boa parte das audiências – em especial, as prévias – em modo virtual, por via telemática, que poderá simplificar, modernizar e acelerar a administração da Justiça. A resposta à COVID-19 pode provocar nas audiências o salto tecnológico que o Citius provocou na fase dos articulados.

Quem serão as maiores vítimas desta paragem?

Em primeiro lugar, os clientes. Os cidadãos e as empresas que são partes nos processos pendentes e que praticamente – como no restante das nossas vidas – sofreram um intervalo de um ano na resolução dos seus litígios. E só em segundo lugar, os “trabalhadores” da Justiça, os Juízes, os Procuradores, os Advogados, os Funcionários, que trabalharam – como todos os outros – em condições difíceis.

O discurso dos atrasos na Justiça é recorrente. Já foram adiadas 50 mil diligências devido à Covid-19. Esta passará agora sempre a ‘desculpa’ para esses mesmos atrasos?

Boa pergunta. Espero que não, porque ninguém vai acreditar nisso. Os atrasos já existiam e já eram absolutamente inaceitáveis, sobretudo nos Tribunais de Comércio e nos Tribunais administrativos. A lentidão da nossa Justiça é de um país de terceiro mundo, um verdadeiro travão que prejudica o desenvolvimento de uma sociedade livre, justa, moderna e democrática e o crescimento económico do país.

Faz sentido reduzir as férias judiciais até ao final do ano de 2021, como também faz sentido conceder uma redução de custas para estimular que as partes terminem os processos por acordo, o que, aliás, foi anunciado pelo Governo em junho de 2020 passado e inexplicavelmente nunca mais teve qualquer desenvolvimento”

Não é fácil ser PM ou ministra da saúde nesta fase. Mas como avalia a atuação do Governo ao lidar com a pandemia? Estamos reféns das opiniões de demasiados especialistas?

Também não sou especialista e por isso poupo-lhe delicadamente a minha opinião e prefiro responder com uma pitada de humor, pode ser? Esta entrevista começa a parecer uma salada russa!

Fazer contencioso em confinamento é possível?

Claro que sim, é mais difícil, como aconteceu com todas as profissões, mas possível. Os clientes continuam a ter problemas que precisam de ser resolvidos por advogados experientes e empenhados em encontrar soluções.

Por telefone, Teams ou Zoom, à distância, foi possível negociar soluções e resolver os litígios. Isso também é contencioso. Alguns processos judiciais urgentes, recursos e alguns processos arbitrais prosseguiram normalmente, apenas com a diferença de que tivemos menos sessões presenciais e mais sessões por vias telemáticas.

As diligências feitas à distância são uma miragem, um discurso enganoso do poder político? A Justiça ainda não é suficientemente tecnológica?

Uma das principais consequências que este ano de pandemia teve para as nossas vidas foi a capacidade que tivemos, a nível mundial, de viver e trabalhar online, à distância, usando as tecnologias que felizmente já estavam disponíveis. Numa entrevista recente ao “Financial Times” (publicada no nosso Expresso, de 12.03.2021), Yuaval Noah Harari, o conhecido autor de “Sapiens – História Breve da Humanidade”, explicou isto de uma forma muito clara: “Em 1918 era impensável que escritórios, escolas, tribunais ou igrejas continuassem a funcionar em confinamento. Com estudantes e professores refugiados em casa, como podia haver aulas? Hoje sabemos a resposta. A mudança para o online tem inúmeras desvantagens, a começar pelos imensos efeitos mentais. Também criou problemas antes inimagináveis, tais como advogados a aparecer em tribunal como gatos. Mas o mero facto de poder ser feito é espantoso”.

Em suma, para responder diretamente à sua pergunta: a nossa justiça deu um primeiro salto tecnológico com o Citius e pode dar um segundo salto tecnológico com as audiências virtuais. Nem todas podem ser feitas por essa via, muitas terão de ser feitas presencialmente, mas muitas outras (audiências prévias e algumas inquirições de testemunhas, partes e peritos) podem ser feitas à distância, poupando tempo e dinheiro. O mito de que só presencialmente o Juiz percebe se a testemunha mente ou diz a verdade se estiver frente a frente com ela, não passa disso mesmo, um mito. O “nariz de Pinóquio” não existe na vida real, é apenas uma bela ficção que criou um simpático boneco.

“A nossa justiça deu um primeiro salto tecnológico com o Citius e pode dar um segundo salto tecnológico com as audiências virtuais”.

Dá-se ao “luxo” de poder recusar casos?

Não é propriamente um luxo, é um dever. Mas sim, recusei casos e clientes, felizmente muito poucos, contam-se pelos dedos de uma mão ao longo destes anos.

O facto de estar integrado num escritório de grande dimensão, corta-lhe as vazas para aceitar alguns clientes?

Apenas aqueles que as regras relativas aos conflitos de interesses nos impedem de aceitar. O que faz todo o sentido, não me queixo.

Sente que o escritório onde está, pela estrutura que tem, dá menos valor ao contencioso e mais a uma advocacia de negócios?

Não, de todo. Na Morais Leitão o contencioso e arbitragem, a chamada resolução de litígios, sempre teve e continua a ter uma enorme importância, quer em termos económicos, quer de prestígio e reputação. Beneficiamos de termos trabalhado e aprendido com grandes advogados de contencioso, como o João Morais Leitão e o Miguel Galvão Teles, e de ainda trabalharmos com outros grandes advogados como o José Manuel Galvão Teles e o António Pinto Leite. Grandes advogados formam bons advogados.

E realmente hoje temos várias equipas extraordinárias, quer no contencioso cível/comercial, quer no contencioso criminal e de contraordenações, como também no fiscal e no direito público.

O contencioso já foi mais valorizado do que é?

Só nos filmes. Na realidade, no mercado português atual, nos principais escritórios que conheço bem, estamos todos muito bem considerados pelos nossos pares e pelos clientes.

E as boutiques nesta área fazem sentido?

Sim, mas apenas para algum tipo de contencioso muito específico, como o dos seguros e o do direito marítimo, por exemplo. O que não significa que um grande escritório full service não possa desenvolver com sucesso algumas dessas áreas.

Já foi ameaçado ou insultado em tribunal?

Nunca. E também nunca insultei ou ameacei ninguém, já agora.

Qual foi o caso em que saiu do tribunal e pensou “saí-me mesmo bem!”? Sem falsas modéstias.

O dever de confidencialidade impede-me de falar de todos os processos que tive em Tribunal.

A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública. Como explicar ao cidadão comum que não é esse o caminho?

Não acho que seja essa a ideia dominante, pelo menos na opinião publica informada. Mas, de qualquer modo, sempre defendi que qualquer sentença tem sempre de ser escrita de forma a convencer não quem ganha, mas quem perde.

Como é a sua relação com a magistratura. É do tipo de advogado conflituoso, diplomata, respeitador ou mais provocador?

Sempre respeitador, claro. Mas o advogado tem de atuar na defesa do seu cliente, adaptando-se às circunstâncias e às personalidades dos vários intervenientes no processo, sejam os Juízes, sejam os restantes advogados. O bom senso e a experiência ajudam bastante.

Mas, de qualquer modo, sempre defendi que qualquer sentença tem sempre de ser escrita de forma a convencer não quem ganha, mas quem perde”.

Se fosse ministro da Justiça quais seriam as suas três prioridades?

“Salada russa” (humor) outra vez, mas vou responder. Três medidas mais urgentes, nesta situação de pandemia no sector da Justiça.

Primeira: apresentar com urgência um plano estratégico de retoma segura do funcionamento pleno dos tribunais e de recuperação dos atrasos dos processos pendentes, agravados pela suspensão dos prazos e audiências por causa da pandemia Covid, incluindo medidas que assegurem a segurança e a saúde de todos os intervenientes nos processos, e outras que permitam recuperar atrasos (redução de custas para estimular os acordos, suspensão parcial das férias judiciais);

Segunda: Usar a “bazuca” para provocar um enorme salto tecnológico nos nossos tribunais: para formação profissional de magistrados, funcionários e advogados, na adaptação dos tribunais às novas tecnologias e plataformas de hardware e software que permitam audiências por via telemática – prévias e finais – e gravação vídeo de todas as audiências;

Terceira: em Lisboa, usar “bazuca” para demolir e transferir para a periferia o EPL (Estabelecimento Prisional de Lisboa), remodelar (ou demolir, se a remodelação não for possível) o Palácio de Justiça de Lisboa e construir no mesmo local um novo centro judiciário moderno e funcional, com gabinetes adequados e dignos para os Magistrados e funcionários, e salas de audiência mais pequenas e dotadas de todos os equipamentos necessários para a realização de julgamentos, se necessário, por via telemática (usando Webex, Skype, Teams, Zoom, ou outro).

E bastonário da Ordem dos Advogados?

Faria tudo o que estivesse ao meu alcance para que o Ministro da Justiça cumprisse essas três prioridades.

E, finalmente, se fosse PGR?

Idem.

Qual foi ou é para si o melhor ministro/ministra da Justiça desde o 25 de abril?

Não faço ideia e não quero ser injusto. Pelas minhas contas (vi agora no Google, confesso), foram 24, mais de metade deles antes sequer de eu ter entrado no curso de Direito. Não consigo dar um Óscar de Melhor Ministro quando viveram em épocas tão diferentes, da minha vida e de Portugal.

Estamos (Portugal) muito obcecados com a corrupção?

Sim, e com toda a razão.

Pretende algum dia pôr em prática a regra de denúncia obrigatória por parte de advogados que se deparem com suspeitas de lavagem de dinheiro?

Só mesmo se for mesmo obrigado por lei a fazê-lo.

Se pudesse escolher, em que jurisdição (europeia ou mundial) trabalharia e porquê?

Portugal.

Os advogados têm horizontes mais abertos que os magistrados (juízes ou procuradores)?

Não, de forma alguma. Trabalhei e trabalho com grandes Juízes com mente aberta, enorme cultura, muito bom senso e sentido de Justiça. O que se revela na forma como conduzem os processos e como decidem. Admito que exista algum preconceito nesse sentido, que não sei explicar, mas que, na minha opinião, é errado e injusto.

As decisões judiciais – de primeira ou segunda instância – são muito dependentes ou influenciadas pelo mediatismo?

No contencioso a que me dedico mais, cível e comercial, quer judicial, quer arbitral, não sinto essa influência, porque normalmente não são os casos que interessam aos jornais. Mas admito que sim, apenas na medida em que os Juízes e árbitros são homens e mulheres que leem jornais.

Mudaria as regras dos advogados poderem falar de casos concretos, de forma a que o vosso trabalho fosse mais compreendido?

Não mudaria. O sigilo profissional, a reserva, a discrição, são palavras chaves da nossa profissão. Em casos excecionais podemos pedir autorização à Ordem para falar, na defesa do cliente. E, pelo contrário, seria mais severo com as apreciações feitas publicamente, nos media e nas redes sociais, de advogados sobre processos que não lhe estão confiados.

Gostaria que houvesse uma instância totalmente independente – com maioria de não magistrados – que avaliasse a ética e imparcialidade de um magistrado. Um canal direto entre cidadãos, advogados e magistratura?

Não, francamente nem percebo como é que esse sistema poderia funcionar sem pôr em causa o princípio da independência dos Juízes.

A prestação de contas dos nossos magistrados é necessária?

Sim, mas já é feita.

Arbitragem versus tribunais. Este meio de justiça privada vai engolir os tribunais, mais cedo ou mais tarde?

Não. Mas a arbitragem vai complementar cada vez mais a tarefa dos tribunais judiciais. Há clientes e assuntos, tanto pequenos casos como casos de elevado valor e complexidade, que são mais bem resolvidos por via da arbitragem. E outros não, são mais bem resolvidos nos tribunais judiciais. São duas formas complementares de fazer Justiça, nenhuma vai “engolir” a outra.

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