O desastre da Índia tem consequências globais. Cá também

Não há certeza sobre o papel das variantes indianas nesta vaga, pois a informação é pouca. A principal variante indiana já foi detetada em cerca de 20 países e territórios, incluindo Portugal.

Ao fim de ano e meio de Covid-19, o mundo assiste à pior vaga da pandemia: o pico global de novos casos, que tinha sido atingido em janeiro, foi ultrapassado em abril. A última semana terá sido a pior da história desta pandemia em número de novos contágios. Pode ter sido também a pior em número de mortes, embora as estatísticas oficiais não o confirmem.

No coração deste tsunami está a Ásia e, em particular, a Índia. O gráfico abaixo, da Organização Mundial de Saúde (OMS), mostra como o sudeste asiático (a roxo) está a ganhar peso na evolução global da pandemia.

Nas últimas 24 horas foi ultrapassada, pela primeira vez, a barreira dos 400 mil novos casos diários. Nas últimas semanas houve mais de um milhão de novos infetados a cada três dias no subcontinente indiano. Na última semana completa medida pela OMS (semana iniciada a 19 de abril), foram 2,172 milhões de novos casos, um crescimento de 52% em relação à semana anterior. A semana que termina hoje terá valores ainda mais graves.

As previsões matemáticas indicam que o pior ainda está para vir: em pouco tempo deverá haver um milhão de novos casos a cada dois dias. A mortes acompanham a tendência – no total, desde o início da pandemia na Índia, já ultrapassaram as 200 mil, e esta semana houve dias com mais de três mil óbitos. Mas estes são números oficiais, que levantam imensa desconfiança entre especialistas indianos, ONGs no terreno, e são postos em causa por relatos de jornalistas e cálculos de observadores internacionais.

Há um problema com as estatísticas de mortalidade na Índia, mesmo em tempos normais. Segundo este texto da Economist, uma em cada sete mortes nunca é reportada e, por regra, os valores oficiais de mortes são estabelecidos com cerca de dois anos de atraso. Por outro lado, só 22% das mortes na Índia tem uma causa identificada por um médico. Tudo isto se agravou com a pandemia.

A regra é atribuir a morte por covid apenas nos casos em que exista um teste positivo, num país onde o nível de testagem é baixíssimo e os resultados estão a demorar muitos dias. Em Nova Deli, a cidade com mais capacidade de testagem, cerca de um terço dos testes realizados tem resultado positivo (no pior momento da pandemia em Portugal, a taxa de positividade chegou aos 20%; o limite recomendado é de 4%).

Números não refletem a realidade

E há a realidade que entra pelos olhos dentro e não deixa margem para dúvidas sobre uma tragédia que não é espelhada pelos números. Nas grandes cidades indianas há filas de espera à volta de dois tipos de equipamentos:

  1. os hospitais, que não têm camas disponíveis, nem oxigénio, nem ventiladores, nem recursos humanos para acudir à catástrofe;
  2. os crematórios, onde as piras funerárias queimam cadáveres noite e dia, 24h sobre 24h, indiciando que o volume de mortes será bem maior do que o que revelam os dados oficiais. Esta reportagem do New York Times dá bem conta dessa realidade. É uma leitura dura.

Há relatos de famílias que ao fim de vários dias não conseguem cremar os seus familiares falecidos, ao mesmo tempo que as morgues não têm mais capacidade de armazenagem. Há familiares que optam por esperar nas longas filas que se formam à volta dos crematórios, com os cadáveres nos seus carros e motas, à espera de vez. Os crematórios, esses, nascem por todo o lado, improvisados em parques de estacionamento e em terrenos baldios.

Há ONGs cuja principal missão passou a ser ajudar as famílias mais pobres nas cerimónias fúnebres dos seus mortos – retirá-los de casa e levá-los até aos locais de cremação, segundo o rito hindu. Nuns casos, porque são famílias tão pobres que não conseguem sequer assegurar essa logística de transporte; noutros, porque o pânico provocado por esta vaga faz com que muita gente simplesmente se recuse a sair de casa…

No meio deste caos, a contagem dos mortos por covid esbarra em vários obstáculos:

  • famílias que escondem a causa da morte por vergonha ou receio de estigma social;
  • em muitos estados, os funcionários dos crematórios estão instruídos para não detalharem a covid como causa de morte, mas simplesmente “doença”;
  • há suspeitas de que diretores de hospitais estarão a subavaliar a mortalidade nas instituições que dirigem, como forma de gerir o impacto mediático dos números;
  • os vários governos estaduais, de diferentes partidos, estarão também a subestimar os dados, numa guerra política sobre quem é mais competente (ou incompetente) na gestão da pandemia.

Por todas estas razões, há cálculos que estimam que os novos casos diários podem ser entre 10 e 30 vezes mais do que dizem os números oficiais (no quadro em baixo, feito pela Economist, vemos as estimativas feitas pelo Imperial College de Londres e pelo Institute of Health Metrics and Evaluation). Segundo especialistas contactados pelo NYT, o número real de mortos pode ser duas a cinco vezes superior ao que é reportado oficialmente.

Corrida às vacinas na grande fábrica das vacinas

Uma das primeiras consequências práticas deste tsunami foi o reforço da campanha indiana de vacinação, que até março decorria a passo de caracol. Mesmo agora, após uma autêntica corrida às vacinas, a Índia continua com índices de administração muito baixos: só 9% da população recebeu a primeira dose, e 1,8% têm vacinação completa.

A baixa taxa de vacinação na Índia é tanto mais estranha se tivermos em conta que se trata de um dos poucos países do mundo que não se deparava com a grande dificuldade da vacinação global: a escassez de vacinas. A Índia é o maior país produtor de vacinas a nível mundial — a UE, no seu conjunto, produz mais, mas se olharmos para cada país por si, nenhum bate a Índia.

A maior fábrica de vacinas do mundo é indiana, também. É o Instituto Serum, um negócio familiar criado nos anos 60 do século passado, que se tornou uma espécie de fábrica de vacinas do mundo, graças à produção massiva de medicamentos genéricos, a baixo preço, que são distribuídos em 170 países diferentes, sobretudo de baixo rendimento. É uma história improvável de sucesso global a partir de um racho de criação de cavalos – pode lê-la aqui.

Atualmente, sem contar com as vacinas contra a Covid-19, o Instituto Serum faz mais de 1,5 mil milhões de vacinas por ano, sobretudo contra doenças infantis. Tem parcerias com diversas organizações da ONU, como a Unicef e a OMS, e com a Fundação Bill & Melinda Gates.

Desde maio do ano passado que o Serum está a trabalhar com a Universidade de Oxford e com a AstraZeneca para a produção da vacina contra o SARS-Cov2 – uma decisão arriscada, tomada pelos dois multimilionários que são os donos da fábrica – pai e filho – muito antes de haver certezas sobre a eficácia do fármaco. O contrato de parceria para o Instituto Serum produzir mil milhões de doses da vacina da AZ destinados a países em desenvolvimento foi divulgado em junho. Quando, no final do ano passado, a vacina da AZ começou a receber luz verde das autoridades do medicamento, a farmacêutica indiana já tinha produzido cerca de 400 milhões de doses.

Metade dessa produção foi exportada (nomeadamente para o Reino Unido), e a outra metade foi comprada pelo governo indiano – mas só uma pequena percentagem foi administrada no país: a maior parte foi vendida ou oferecida a outros 70 países, com a Índia a tentar ombrear com a China e a Rússia na diplomacia de vacinas que se tornou a nova moeda do soft power global. Estávamos em janeiro e fevereiro, as autoridades de Nova Deli estavam confiantes no bom desempenho do país no controlo da pandemia, e a projeção da imagem global do país parecia, então, mais importante.

A meio de janeiro, Modi anunciou aquela que seria a maior campanha de vacinação do mundo, com o objetivo de inocular 300 milhões de pessoas até julho — muita gente mas, ainda assim, apenas um quinto da população indiana. E sem pressa que se visse. No início de fevereiro, a Índia tinha administrado 3 milhões de vacinas (ou seja, só 0,3% da população tinha recebido a primeira dose). A 1 de abril, eram 68 milhões. Ontem, eram mais de 150 milhões.

A súbita necessidade de acelerar a vacinação da sua população levou o Governo indiano a travar a exportação de vacinas da AstraZeneca há cerca de um mês. Só do Instituto Serum, são mais de 2,4 milhões de doses produzidas diariamente que ficam, na totalidade, em território indiano. Contando só março e abril, isto significou que uns 200 milhões de doses para exportação ficaram retidos na Índia.

As farmacêuticas da Índia estão a produzir também uma segunda vacina, de patente nacional – a Covaxin -, igualmente abrangida pela suspensão de exportações. Mas mesmo assim, a Índia não tem capacidade de responder ao súbito pico de procura de vacinas. Ontem, Bombaim, a capital financeira do país e pólo de uma das suas maiores áreas metropolitanas, anunciou a suspensão da vacinação, por falta de doses.

Apesar das dificuldades, o Governo indiano mantém a decisão de usar apenas vacinas made in India, e não comprar vacinas feitas noutros países – aceita as que forem oferecidas, autoriza os Estados e as empresas que queiram importar vacinas a fazê-lo, mas o governo central não o fará.

Um problema para os países pobres… e para a UE

A decisão de travar exportações é uma péssima notícia para dezenas de países em todo o mundo, sobretudo para 92 nações mais pobres, que contavam com o apoio da iniciativa Covax, através da qual o mundo rico tem canalizado dinheiro e vacinas para os países em desenvolvimento. A maior parte das vacinas deste programa é fabricada na União Europeia e, sobretudo, na Índia. Para já, o contributo indiano secou, o que significa que nos próximos tempos a Covax vai fornecer 145 milhões de doses a esses países mais pobres, em vez dos 240 milhões previstos. A iniciativa internacional patrocinada pela OMS até tem recebido alguns donativos generosos – mas, com os países ricos a açambarcar as poucas vacinas que há, e a Índia a cortar as exportações, esse dinheiro pouco pode comprar.

Do total estimado de dois mil milhões de doses que a Covax espera entregar às populações mais frágeis do mundo até ao final deste ano, ainda só 41 milhões são uma realidade. A vacinação nos países africanos de expressão portuguesa, por exemplo, depende desses fornecimentos. Sem a Índia nesse pipeline, tudo se tornará mais difícil, o que levou o Wall Street Journal a escrever há dias que o abrandamento na vacinação desses países significa “um risco para o mundo”.

Um risco também para a Europa, por tabela. Mas também há consequências diretas no Velho Continente. No processo que a União Europeia interpôs contra a AZ, por incumprimento da quantidade de doses negociadas para os 27, a UE exige que uma parte das vacinas produzidas nas duas fábricas situadas no Reino Unido seja desviada para território continental. Esta já seria uma exigência difícil de concretizar em qualquer circunstância, tendo em conta que o contrato da AZ com o governo de Londres é mais claro na exigência de cumprimento de objetivos, e o governo de Boris Johnson não permite que saiam doses das Ilhas Britânicas enquanto a sua campanha de vacinação não estiver completa. Mas a decisão de Nova Deli de travar a exportação de vacinas da AZ complica tudo ainda mais, pois uma parte das doses administradas no Reino Unido estava a chegar da Índia.

A razão por que os britânicos tiveram tanta capacidade de vacinação nos primeiros meses foi o fluxo permanente de fornecimento, assegurado pelas fábricas inglesas, pelas fábricas europeias, e pelo Instituto Serum. Aliás, quando estalou o conflito entre a AZ e a Comissão Europeia, a farmacêutica tentou compensar as falhas prometendo fornecimentos oriundos da Índia, hipótese que Bruxelas começou por rejeitar. Agora, o Reino Unido vê-se sem vacinas produzidas nos 27, e sem as vacinas indianas. E a Europa, mesmo que queira, tão cedo não pode contar com a produção do Instituto Serum.

O papel da “variante indiana”

Outra razão para a preocupação global com o que se passa na Índia são as variantes. Há duas variantes indianas que têm merecido mais atenção. A principal é a B.1.617, detetada no outono, que representa 30% dos novos casos – essa é a que que tem sido genericamente referida como a “variante indiana”, com 13 mutações. Porém, há outra, a B1.618, identificada já este ano, que é responsável por 12% dos novos casos. Essa é a terceira variante com mais peso atualmente na Índia. A principal ainda é a variante inglesa.

As duas estirpes indianas são preocupantes por causa da “dupla mutação” na proteína espícula (a parte pela qual o vírus se agarra à célula humana recetora), à semelhança do que acontece com as variantes de Manaus e da África do Sul – mutações que lhes dão uma capacidade maior de contágio e de fugir à deteção pelos anticorpos do sistema imunitário, tornando-as, portanto, mais difíceis de combater, e podendo provocar reinfeções com maior facilidade. A B.1.617 tem ainda uma terceira mutação na spike, conhecida como E484Q, mas os investigadores ainda estudam o seu impacto.

Na Índia parece não haver dúvidas de que esta vaga tem um comportamento atípico e um crescimento exponencial, e não faltam na comunicação social relatos de médicos apontando o dedo à estirpe indiana. Como o caso de um grande hospital de Deli, o Sir Ganga Ram Hospital, onde 37 médicos já completamente vacinados terão sido infetados com a variante indiana no início de abril.

A verdade é que não há certeza sobre o papel das variantes indianas nesta vaga, pois a informação é pouca. A OMS, apesar dos avisos sobre a B.1.617 — nomeadamente a possibilidade de ser mais resistente às vacinas existentes –, ainda não a classificou como “variante de preocupação”, mas como “variante de interesse”.

Sobre o que já se sabe a respeito da variante indiana, sugiro este artigo do El Pais e este do Wall Street Journal.

A principal variante indiana já foi detetada em cerca de 20 países e territórios, incluindo Portugal e outros países europeus como Reino Unido, Alemanha, Bélgica, Suíça e Turquia. Um caso suspeito está sob investigação em Espanha. Esta variante também já foi detetada nos Estados Unidos e no Brasil.

Apesar de estar por demonstrar a causalidade entre a nova variante e o súbito aumento de novos casos, no estado de Maharashtra – onde fica Bombaim, e o primeiro onde esta vaga se tornou descontrolada — 60% dos novos casos são desta variante. Porém, a Índia está a fazer a sequenciação genómica de muito poucos casos, o que não permite retirar conclusões definitivas. Aliás, o baixo nível de sequenciação do vírus na Índia é uma das razões por que as autoridades não foram capazes de perceber os sinais de que a pandemia poderia fugir de controlo em poucas semanas.

Esta incapacidade, aliada ao descontrolo da pandemia, coloca outro risco internacional: a Índia pode tornar-se o berço de novas variantes, potencialmente mais perigosas, e potencialmente mais capazes de escapar à imunidade conferida pelas vacinas ou pela infeção com estirpes anteriores.

“Quando temos essa quantidade de gente infetada, há mais hipóteses” de surgirem novas estirpes, pois há mais oportunidades para o vírus sofrer mutações, diz Alina Chan, investigadora do MIT. “É a dimensão da população infetada que conduz à emergência de novas variantes.” Se para além disso a Índia não conseguir fazer a sequenciação para seguir o rasto a novas variantes atempadamente, nenhum país estará a salvo.

Como é que a Índia chegou a este ponto?

Um funeral em massa para as vítimas de Covid-19 num local destinado a cremar os mortos em Nova Deli. EPA/IDREES MOHAMMED

Para além do eventual efeito das variantes, há outras razões para esta grande onda. Todas relacionadas com decisões políticas e excesso de confiança:

  • O alívio quase geral de medidas de restrição após a primeira vaga da pandemia, que se prolongou por quase um ano, entre março de 2020 e janeiro passado. A Índia era, desde o início da pandemia, um dos cenários de maior preocupação a nível global, devido à altíssima densidade populacional das suas áreas metropolitanas e aos elevados níveis de pobreza (falamos disso abaixo). Daí que o Governo tenha agido depressa e com firmeza em 2020: quando se tornou evidente o crescimento de casos, que teve um pico em setembro, decretou um lockdown nacional que, apesar de muito desrespeitado, cumpriu a sua função essencial: evitar o descontrolo da propagação. Em dezembro, os estudos sorológicos indicavam que cerca de 22% da população já teria estado infetada, e formou-se a crença de que já existiria alguma espécie de imunidade de grupo. Em janeiro, o pior parecia ter passado. E, com uma economia em aflição, as autoridades permitiram o regresso a uma vida praticamente normal, com o chefe do Governo, Narendra Modi, a prometer “uma mudança rápida na frente económica”.
  • Esse regresso à normalidade incluiu a realização de grandes festivais religiosos, juntando enormes multidões. O festival hindu Kumbh Mela, no norte do país, foi autorizado, supostamente com regras de distanciamento social — que ninguém cumpriu e nenhum agente das autoridades seria capaz de impor. Foram milhões de pessoas na mesma cidade, seguindo o mesmo percurso, até às famosas escadarias que dão acesso ao Rio Ganges, onde os fiéis mergulham para lavar os seus pecados. Num só dia (12 de abril), pelo menos dois milhões de pessoas repetiram esse ritual – nesse dia, a Índia já registava mais de 160 mil novas infeções diárias, e as televisões já mostravam imagens de gente amontoada nas ruas, à porta dos hospitais, sem cuidados médicos e com dificuldades de acesso a oxigénio. Apesar disso, um peregrino afirmava a um canal de televisão que “não existe coronavírus. O Ganges protege-nos. Não temos de nos preocupar.
  • E chegamos à política pura e dura: a decisão de manter os calendários eleitorais na maior democracia do mundo também teve a sua parte de responsabilidade no surto — e, a par disso, a realização de grandes comícios partidários, provocando também enormes ajuntamentos. A imprensa indiana deu conta da relação entre os Estados onde houve eleições e o crescimento dos contágios. O primeiro-ministro Modi, um populista nacionalista, fez questão de celebrar o feito do seu governo na gestão da pandemia, com gigantescos comícios em que se gabava do tamanho da multidão, como prova da vitória sobre o vírus. O seu partido aprovou mesmo uma resolução saudando essa vitória, em fevereiro, quando o país vivia a fase com menos contágios diários desde junho. Era cedo demais para celebrações.

Esta entrevista a um virologista indiano é elucidativa sobre os erros cometidos e a complexidade da situação indiana. Estamos a falar do segundo país mais populoso do mundo (1,3 mil milhões, apenas superado pela China), com megatrópoles como Nova Deli (uma área metropolitana com 31 milhões de habitantes) ou Bombaim (20 milhões), e uma altíssima densidade populacional, sobretudo nas zonas urbanas, que coincide com um quarto da população que não tem acesso a qualquer tipo de saneamento básico.

A população indiana que vive abaixo da linha de pobreza ascende a 22%. Uma grande parte destes pobres amontoa-se nos bairros de lata das grandes cidades, onde não há qualquer hipótese de distanciamento social, ou mesmo de isolamento doméstico, em “casas” de madeira, de lata ou em tendas paredes-meias com os vizinhos. É também aqui que as regras de confinamento têm menos sucesso: a pobreza e o desespero obrigam estas pessoas a sair de casa todos os dias à procura de meios de subsistência.

Mais: a saúde pública deixa muito a desejar — apenas 3,5% do Orçamento do Estado vai para a saúde (compara com 9,4% em Portugal, e 9,9% na média da UE, de acordo com o CIA World Fact Book, de onde retirei estes dados estatísticos), e o número de camas de hospital por cada mil habitantes (0,5) é muito baixo (como comparação: em Portugal temos 3,5 camas de hospital por cada mil habitantes; Espanha 3; a Alemanha 8; o Reino Unido 2,5). Mesmo antes da Covid, o risco de apanhar doenças infecciosas na Índia era considerado “muito alto”.

Se há poucos meses a Índia apostava na diplomacia das vacinas para se posicionar junto de países onde esperava ganhar influência, competindo com a China e a Rússia, agora são os países ocidentais que se mobilizam para ajudar o subcontinente indiano. Os Estados Unidos e a Europa já começaram a partilhar com a Índia matérias-primas e componentes para a produção de mais vacinas, bem como oxigénio, outro bem que se tornou escasso no país. E os milhões de doses da AZ que estão armazenados nos EUA, mas nunca foram usados (o regulador americano ainda não autorizou a vacina anglo-sueca), vão começar a ser partilhados com o mundo, incluindo a Índia.

Modi, que daqui a uma semana deveria estar em Portugal para a cimeira UE-Índia – pensada pela presidência portuguesa para reforçar as relações entre os dois blocos — já não virá, e a cimeira será virtual. O reforço das relações entre a Europa e a Índia, neste momento, passa pela capacidade que os europeus tenham de responder à calamidade que se propaga do outro lado do mundo.

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