“A esquerda que votou a favor do OE foi mais penalizada” eleitoralmente que o BE, diz Fernando Rosas

Fernando Rosas, um dos fundadores do Bloco de Esquerda, alerta em entrevista ao ECO que "PS é um partido muito perigoso" quando tem maioria absoluta. Quanto ao OE 2022, já há "sintomas" maus.

O histórico bloquista alinha com a atual direção do Bloco de Esquerda por se demarcar do Partido Socialista, que acusa de querer tomar o centro político e afastar-se da esquerda, e desvaloriza a oposição interna do partido. Em entrevista ao ECO, em antecipação da convenção bloquista deste fim de semana, Fernando Rosas diz que “a esquerda que votou a favor do OE foi mais penalizada” eleitoralmente do que o Bloco de Esquerda que decidiu, pela primeira vez desde 2016, votar contra em 2021.

Quanto ao Orçamento do Estado para 2022 (OE 2022), ainda está tudo em aberto, mas já há “sintomas” maus para as negociações, desde logo o arranque ser apenas em junho. “Quanto mais se estreitar o prazo de negociação mais indícios há da falta de credibilidade da negociação“, diz Fernando Rosas, ressalvando, porém, que o espírito do Bloco é sempre de abertura para acordos à esquerda em temas como o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a legislação laboral e a proteção social.

Rosas deixa ainda uma série de alertas sobre o PS, “um partido muito perigoso em termos de maioria absoluta“, por querer controlar o “centrão” político em Portugal dada a aproximação do PSD ao Chega. O professor diz que os socialistas apostam numa maioria absoluta nas próximas legislativas, mas avisa que, como demonstrou no passado, será um “abuso absoluto”.

António Costa disse, a propósito da relação com o Bloco, que já viu reconciliações após divórcios. Acha possível neste caso?

Fui um entusiasta da primeira e única geringonça. A primeira legislatura correu bem. Quem rompe esse acordo é o PS nas eleições de 2019 porque não conseguiu maioria absoluta, mas pensou que com o resultado que tinha tido podia andar a pescar à linha os votos que lhe faltavam para fazer as maiorias de que precisava. Foi um erro — para a esquerda em geral — não ter renovado a chamada geringonça e deveu-se exclusivamente à expressa vontade do PS. Agora não pode queixar-se disso. Não quis entender-se sobre um plano comum de intervenção político-parlamentar. Não havendo entendimento, negoceia-se à peça e aí ou se está de acordo ou não se está. A experiência desta segunda legislatura mostra que o PS promete coisas que quando são traduzidas na prática não são bem o que se tinha comprometido e mesmo essas não as cumpre, como aliás se está a verificar, porque mesmo o PCP, que aprovou o OE 2021, protesta que o PS não cumpre. Nós já tínhamos essa experiência. O PS tem demonstrado muito pouca abertura para políticas à esquerda.

O PS tem governado ao centro desde 2019?

O PS tem aproveitado a aproximação do PSD ao Chega para se afirmar como um partido do centro. É uma má escolha porque os problemas do país têm de se resolver, no meu entender de quem é de esquerda, com políticas que até agora não têm sido aplicadas e que são de esquerda em matéria de economia, sociedade e cultura. O PS regressar ao centrão é voltar para trás.

O PS está nesta segunda legislatura mais ao centro do que estava na primeira?

Claramente.

O partido está a apostar numa maioria absoluta nas próximas legislativas?

Claro, a esperança é essa. O PS é um partido muito perigoso em termos de maioria absoluta. A última maioria absoluta do PS… escuso de lembrar o que é que foi. É de triste e tenebrosa memória. Maioria absoluta é abuso absoluto. A Assembleia passa a ser uma coisa automática. Estão-se nas tintas para a representação das minorias e para qualquer forma de oposição. A maioria absoluta é uma espécie de perversão, ainda que dentro do sistema democrático, contra o funcionamento da democracia normal. Não estou a dizer que são soluções antidemocráticas, resultam do voto, mas são soluções fortemente atentatórias do equilíbrio.

Não é um divórcio porque dá a ideia de que nunca mais se negoceia nada. O BE tem repetidamente manifestado a sua disponibilidade para negociar.

Fernando Rosas

Fundador do Bloco de Esquerda

Mas houve um divórcio ou não?

Não é um divórcio porque dá a ideia de que nunca mais se negoceia nada. O BE tem repetidamente manifestado a sua disponibilidade para negociar, nomeadamente no âmbito do Orçamento. Agora que temos uma má experiência do Orçamento anterior, temos. Que os sintomas que se estão a acumular para este Orçamento não são muito animadores, não são.

Quais são esses sintomas?

A intransigência absoluta de fazer pagamentos mais do que duvidosas do ponto de vista legal e moral ao Novo Banco. A intransigência absoluta de mudar com alguma substância a legislação laboral imposta pela troika. A situação do SNS que foi uma das razões pela qual votámos contra no Orçamento anterior. E a falta de proteção social. Foram quatro pontos onde se fez muita força, mas pouco progressos. Muito insuficientes.

Dito isso, a probabilidade de o Bloco viabilizar o OE 2022 é baixa?

Não diria que é baixa nem que é alta. As negociações ainda não começaram. Vamos ver como é que o PS se apresenta às negociações. Mas esta coisa de adiar as negociações para junho não é um bom sinal.

Deviam começar mais cedo?

Sim porque são negociações muito complicadas do ponto de vista das propostas, das diferenças, etc. Exige uma negociação prolongada, calma e rigorosa com base nos números, na documentação produzida, no balanço. E há ainda a questão do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] que ninguém sabe muito bem o que vai ser porque depende de autorizações da Comissão Europeia. Tudo isso merecia uma muito maior atenção.

Afastemos esse fantasma [da crise política] que tem algo de chantagem para se poder negociar de espírito aberto o Orçamento.

Fernando Rosas

Fundador do Bloco de Esquerda

Teme que se fale novamente em crise política?

Não me parece ser sério vir dizer que ou se aprova o Orçamento ou há uma crise política. Temos de engolir tudo o que o Governo nos quer fazer engolir? Não pode ser. Afastemos esse fantasma que tem algo de chantagem para se poder negociar de espírito aberto o Orçamento.

O PS não vai para as negociações de forma séria, com a intenção de chegar a acordo?

O que digo é que há indícios. O que a realidade mostra é que estamos a ver um PS muito tentado a ser um partido super árbitro da situação ao centro com políticas centristas e de recuo em relação a alguns progressos que tinham sido feitos. Mas posso estar enganado. Os negociadores do Bloco irão seguramente partir para isto com um espírito aberto e preparados para negociar. Mas quanto mais se estreitar o prazo de negociação mais indícios há da falta de credibilidade da negociação. É tudo à pressa? Não quero dizer que em junho é à pressa… Mas adia-se a reunião e depois à última da hora dizem “ou é isto ou não é nada”. Não é forma de negociar.

Enquanto historiador, o que justifica a viabilização do OE por parte do PCP?

As bases sociais típicas do PCP foram alvo de uma grande pressão e modificação, o que torna as eleições mais arriscadas. No meu entendimento pessoal, isso coloca o PCP numa posição defensiva do ponto de vista eleitoral, ou seja, não tem interesse em que haja eleições antecipadas. Aliás, isso provavelmente seria arriscado para a esquerda toda, mas para o PCP em particular.

O Bloco não teve custos eleitorais por ter votado contra o OE2021?

Não, sinceramente. De todo. As sondagens mostram isso mesmo: o Bloco de Esquerda está relativamente próximo do score de 10% das eleições legislativas. O Bloco aparentemente recuperou e estabilizou o seu eleitorado, a crer nas sondagens. Não acho que tenha havido um preço [por votar contra o OE]. Acho até pelo contrário: a esquerda que votou a favor do Orçamento foi mais penalizada do que o Bloco de Esquerda que votou contra. Há uma parte do eleitorado à esquerda que percebeu bem que o BE tinha razão para votar contra. Bastou ver o aperto que foi do SNS nos primeiros meses deste ano para se perceber que tínhamos toda a razão.

Há uma parte do eleitorado à esquerda que percebeu bem que o BE tinha razão para votar contra. Bastou ver o aperto que foi do SNS nos primeiros meses deste ano para se perceber que tínhamos toda a razão.

Fernando Rosas

Fundador do Bloco de Esquerda

Os dados económicos, nomeadamente a taxa de desemprego, não são tão negativos quanto se poderia esperar. A crítica do BE de que as medidas não são suficientes continua a fazer sentido?

Fazem duplamente sentido. Primeiro porque não foram de facto suficientes. E em segundo porque não se está a ter em conta que estão aí a acabar as moratórias. Vamos ver o que acontece em matéria de despedimentos, falências ou despejos. A intervenção, sob a pressão dos partidos da esquerda, que o Governo fez — e fez corretamente — ajudou a aguentar o emprego. Os níveis de emprego agravaram-se, mas não catastroficamente.

Teme que o pior ainda esteja para vir?

Isso pode acontecer. Não quero emprestar a isto um ar catastrofista, como é evidente, mas vem aí ainda muita dificuldade e há setores da população que deveriam ter tido uma proteção mais eficaz do que aquela que foi concedida. E provavelmente estão a levantar mecanismos de proteção do SNS ou das pessoas, antecipando uma normalização da pandemia, para as quais devíamos ser provavelmente mais prudentes. Esperar, esperar…

Será uma afronta política ao BE caso o Governo injete dinheiro no Novo Banco sem pedir autorização ao Parlamento?

É de uma enorme gravidade do prestígio do Estado. (…) Não sei o que é isso de maiorias negativas. É uma expressão antiparlamentar. É antidemocrática. No Parlamento formam-se maioria à volta de objetivos. Eleitorados, mesmo com orientações políticas diferentes, podem coincidir em reivindicações que são comuns. São inteiramente legítimas.

Os governos em Portugal estão pouco habituados a isso?

O Governo do PS é que acha que pode governar como tendo maioria absoluta sem a ter. Esse é que é o problema. Não tem. E não tem por vontade dos portugueses que não é acidental, é significativa.

A oposição interna no BE ganhou mais espaço na convenção deste fim de semana. É sinal de que há mais divisões internas?

Não me parece nada de extraordinário. Sempre houve listas de oposição e estes resultados são semelhantes aos anteriores. O Bloco é um movimento político plural. As correntes tiveram sempre a maturidade de perceber que era necessário entenderem-se em torno de uma plataforma comum. Se cada um puxasse para o seu lado naturalmente todo o esforço comum de haver um entendimento entre esses setores se perdia. A democracia interna do partido é muito grande. Analisando as várias listas — e estou relativamente à vontade para o fazer porque sou militante sem grande atividade –, estas não têm grandes divergências teóricas ou estratégicas. Há uma lista um pouco mais radical, essa é a que se distingue mais do ponto de vista doutrinário, mais esquerdista. Mas quase todas as listas concordam que a atual coordenadora tem feito um bom trabalho e se deve manter. Não vi nenhuma delas contestá-la.

O ex-deputado do BE, Pedro Soares, acusa a direção de centralismo nas decisões. Como responde a esta crítica?

Isso tem a ver com percursos pessoais. Não traduz uma divergência político-estratégica significativa. São os conflitos internos próprios de partidos com um funcionamento democrático.

Esta direção não é mais centralista do que outras?

Não. Não é mesmo. E falo com experiência porque também tive na direção. Pelo contrário, há uma larga descentralização. (…) A lista [da oposição] que teve mais votos até me surpreendeu porque eles reclamam que o Bloco faça politicamente aquilo que está a fazer.

Que é uma maior divergência com o PS?

Sim, demarcar-se do PS que foi o que aconteceu, quando a certa altura se percebeu que o PS, sistematicamente, não cumpre as suas promessas, faz promessas parciais que depois não cumpre, em questões fulcrais, como legislação laboral, Novo Banco, SNS, não se mostra disponível a abrir caminho a uma política à esquerda.

Seria benéfica uma mudança de liderança?

Não. A liderança está muito bem.

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