Falar de falhanço é gozar com quem trabalha
Conversar sobre fracasso é uma graça. Mas, porque é que temos de gozar para falar das coisas que (talvez) mais nos marcaram na vida?
Um dia destes, em conversa com um amigo, ele disse-me: “Já reparaste que talvez a voz mais crítica da política deste país seja um humorista?”. A pergunta fez-me pensar: Ricardo Araújo Pereira é, com humor, um dos mais críticos observadores da atualidade económica, política e social portuguesa, uma espécie de relatador do que se passa, tantas vezes de ridículo, no dia-a-dia de todos os portugueses. Com graça, ele descreve a (des)graça e a falta de graça de decisores, responsáveis, de gente comum ou com muita responsabilidade que falha, publicamente.
Uns dias mais tarde, outra humorista, Mariana Cabral aka Bumba na Fofinha, lançou o seu mais recente projeto: entrevistas a média luz, intimistas, gravadas em vídeo e publicadas no YouTube. O projeto chama-se “Reset” – que significa, segundo o dicionário de Cambridge, “desligar um equipamento e voltar a ligá-lo para iniciar corretamente” ou “mudar os detalhes de algo”, e a ideia assenta mesmo nesse processo de reprogramação. Mariana Cabral apresenta-o como “um podcast de vídeo só sobre o fracasso”. Todos os domingos, a humorista tem um novo convidado: pelo frente a frente já passaram Ricardo Araújo Pereira, Carolina Deslandes, Rui Maria Pêgo e Gisela João que, com sinceridade, recordaram fracassos das suas carreiras e vidas pessoais, histórias que ficam tantas vezes longe da opinião pública, guardadas em cofres emocionais a que poucos têm acesso.
A ideia de contar falhanços não é nova por si só (é, de resto, uma discussão permanente quando se trata de divulgar, por exemplo, as coisas que correram menos bem aos empreendedores); mas a resistência com que, tantas vezes, os escondemos dos outros (e até deixamos de os admitir a nós mesmos) é sinal de pouca autoaceitação, e um complexo qualquer que revela que nos levamos demasiado a sério. Nós e os outros (porque deles vêm, muitas vezes, as maiores críticas e julgamentos).
Esta abordagem de Mariana Cabral parece-me notável no sentido em que, desmistificando os falhanços dos “grandes” – Bumba na fofinha garante que o relato fala dos “fails, arrependimentos, projetos que deram cocó, tiros ao lado, fases más e inevitáveis tropeções no caminho sinuoso para se ser realmente bom (como eles são todos)” – humaniza os ídolos de muitos que, através da sua exposição pública, tornam o falhanço uma coisa normal, natural. E isso, se tudo correr bem, vai humanizar-nos a todos, um pouco mais.
Mariana Cabral sustenta o produto do “seu recomeço”. “Depois de uma autêntica sova que foram estes dois anos e da overdose de positividade tóxica aqui no feed — ‘vai-ficar-tudo-bem-vai-ficar-tudo-bem’ — eu acho que estamos todos a precisar de fazer RESET ao embuste da perfeição e da invencibilidade, e eu só conheço uma boa forma: rindo da desgraça”, escreve a humorista na apresentação de “Reset”. Falar do falhanço devia ser tão humano como ele próprio é na nossa vida. E o facto de, nos dois casos, se olhar para a realidade – através do humor, a média luz, é antigo. É que, já na Grécia antiga, quando Sócrates falava de democracia, a busca pela perfeição era a utopia. E continua a ser.
Devíamos falar com tanta naturalidade dos falhanços como falamos dos êxitos: nossos e dos outros. Mas, porque é que o sucesso deste “Reset”, cujos episódios publicados no YouTube contam com uma média de mais de 280 mil visualizações (no caso do primeiro, com Ricardo Araújo Pereira, o episódio tem mais de meio milhão de visualizações) é obviamente, além de reflexo de um produto de realidade – que é também o humor – bem conseguido? Porque revela falhas de uma forma leve, como parte do caminho. Como se elas fizessem parte da vida. E não é que fazem?
A propósito de Sócrates, vale a pena espreitar este vídeo (o The School of Life é, de resto um projeto a não perder):
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