Hélder Pedro lamenta que, ao contrário do que acontece noutros países, não haja um plano de estímulo para a indústria automóvel. Teme o estigma do Governo perante um setor com tanto peso na economia.
O setor automóvel, como outros da economia portuguesa, foi fortemente castigado pela pandemia. Continua sem recuperar os níveis pré-pandemia, mas também sem apoios que permitam acelerar as vendas. Hélder Pedro, secretário-geral da ACAP, lamenta a inação do Governo português. Teme que haja “um estigma” relativamente a uma indústria que tanto peso tem na economia nacional.
“Reunimos no verão do ano passado com o ministro da Economia, para ver se ainda em 2020 havia um plano [de estímulo para o setor], não houve nada, veio o Orçamento do Estado, não houve nada”, desabafa Hélder Pedro em entrevista ao ECO. E com o Plano de Recuperação e Resiliência aconteceu o mesmo, ao contrário de outros países, nomeadamente Espanha.
Diz que há “um complexo de apoiar o setor automóvel”. “Haverá um estigma… mas é o principal setor, é o principal pagador de impostos”, atira, admitindo pouca esperança quanto a medidas que impulsionem esta atividade no Orçamento do Estado para 2021. Há medidas concretas, há drafts sobre essas medidas, mas depois o “Governo atola-se em processos burocráticos”. Em Portugal, diz, “não se chuta à baliza”.
Hélder Pedro diz que “a esperança é a última a morrer”. E “não baixa os braços” na sua luta para garantir que o Governo toma medidas para o setor, que nem precisavam de o ser no Orçamento do Estado, que em Portugal acaba por ser “muito usado para fazer mini reformas fiscais”. Mantém a pressão, mas sem agitar muito as águas porque, “às tantas, é um bocadinho: ‘se mexe ainda fica pior’”.
Além da Covid-19, o setor automóvel está a ser castigado pela crise dos chips. Que impacto está a ter?
A crise dos chips está a ter um impacto muito negativo na indústria automóvel, levando a paralisações de produção. Não se esperava que depois da crise pandémica viesse esta crise dos chips que não se sabe quando ficará resolvida.
Há estimativas que apontam para dois anos…
Dois anos, sim. A nossa expectativa é que com o investimento que a Comissão Europeia está a fazer, mas também que os EUA estão a fazer, é de que num ano as coisas se consigam resolver e haja já uma oferta suficiente para a procura. A Comissão Europeia meteu muito dinheiro e está muito empenhada. E os EUA também. Agora, até que ponto isso depois se reflete no mercado… pode haver essa perspetiva dos dois anos, o que seria dramático porque afeta claramente a produção automóvel. Pára a produção. Há uma dependência de um país, a China, mas esperamos que a Europa e os EUA consigam colmatar e substituir-se na produção dos chips.
Siza Vieira alertou nesse sentido. Vê algum trabalho no sentido de Portugal fazer parte de uma solução para esta crise dos chips?
O ministro da Economia, na última reunião que tivemos, manifestou essa preocupação na questão dos chips, mas também relativamente às baterias [para os carros elétricos]. Nós temos um cluster de baterias, que foi criado recentemente, e Portugal poderia ter aqui um papel quer na produção, quer na reciclagem de baterias. Há uma preocupação do Governo, mas Portugal tem a escala que tem. Nós vemos o Governo espanhol mais uma vez em força, a anunciar que quer que o país seja o motor da mobilidade elétrica. Estão a apostar fortemente e a atrair investimento. Podemos dizer que temos o lado positivo, que é o de que há um cluster ibérico. Estamos ao lado de um país que tem essa presença, que está a anunciar investimentos. Vemos que há preocupação do Governo português, agora em termos concretos, de medidas, isso é que é mais complicado.
O que falta para conseguir atrair esses investimentos?
No arranque da pandemia fomos logo recebidos pelo Governo e tivemos reuniões com o Ministério da Economia. Falou-se que o principal era haver um plano de estímulo à procura. Os meus colegas espanhóis ainda não estavam, em março, a falar com o governo espanhol, mas no final de junho, Espanha tinha um plano montado. Nós, até agora, não houve nada. Isto mostra a diferença. O governo de Pedro Sánchez apresentou no final de junho um plano, o Governo italiano anunciou um plano de estímulo à procura no OE 2021, França também, enquanto o nosso Governo nunca nos conseguiu dar saída.
Reunimos no verão do ano passado com o ministro da Economia, mais uma vez, a ver se ainda em 2020 havia um plano, não houve nada, veio o OE, não houve nada. Em outubro de 2020 houve a cimeira luso-ibérica. Nós, com a nossa congénere espanhola, fizemos cartas conjuntas para cada um dos primeiros-ministros, a pedir que nos PRR houvesse uma componente específica para a indústria da mobilidade, indústria automóvel, com plano de renovação. A própria Comissão Europeia, nas guidelines que enviou para os países, dizia para haver apoios para a renovação dos parques automóveis para reduzir as emissões. A essa carta que enviámos para o primeiro-ministro, não obtivemos resposta até hoje. Em Espanha, em novembro, a ministra da Indústria anunciou que 14% do PRR espanhol seria para este setor. Isto atrai investimento.
"Não há atenção [do Governo] para com um setor que é o principal exportador.”
Perdemos por falta de comparência?
A indústria automóvel é o principal setor exportador do país. São dados. Nas 10 principais exportadoras estão seis ou sete do setor automóvel. O Governo deixa passar o PRR, já o governo espanhol foi extremamente atento… Tem uma medida concreta e há 14% do PRR para investir na mobilidade elétrica, nós temos no PRR verbas para a compra de autocarros elétricos.
O que é que falha?
Não há atenção para com um setor que é o principal exportador. O Governo visita as fábricas, até com o Presidente da República, mas depois… Nesta crise, fui acompanhando o que estava a ser feito com os meus colegas de outros países. E eu via como eles estavam a evoluir com os seus Governo e nós aqui parados.
Qual é o estigma?
O estigma? Eu penso que haverá um complexo de apoiar o setor automóvel. Será? Haverá um estigma… mas é o principal setor, é o principal pagador de impostos. Eu até digo várias vezes que não será uma questão ideológica porque o Governo espanhol ideologicamente é próximo do nosso, o francês também… mas há um estigma de criar algum plano de apoio ao automóvel, um estigma que não há em Espanha.
O Governo tem uma fiscalidade elevada sobre o setor, não tem nenhum plano de estímulo à procura… é um desinteresse pela indústria automóvel, é o que notamos.
Mas isso custa dinheiro à economia…
Custa dinheiro à economia, sim. Vai custar dinheiro. Não renovámos o parque automóvel, Espanha, França e Itália estão a fazê-lo. Espanha está a atrair investimento, está a ter projetos concretos… Os investidores nesta área, se veem que há um país que tem medidas concretas de estímulo ao setor, considera-o um país amigo do setor. Por isso, é natural que consiga atrair investimentos neste setor. O Governo tem uma fiscalidade elevada sobre o setor, não tem nenhum plano de estímulo à procura… é um desinteresse pela indústria automóvel, é o que notamos. Fizemos uma carta aberta ao primeiro-ministro e não tivemos resposta. As reuniões no Ministério da Economia são completamente infrutíferas.
Se não é ideológico, há um problema com os interlocutores…
As coisas perdem-se nos gabinetes. Há boa vontade. O nosso ministério da tutela é o da Economia. Sempre nos receberam. Não é por falta de reuniões, mas depois não se chuta à baliza. As coisas adiam-se, surgem outros problemas, talvez, e de facto não se concretizam. Perdemos um OE, que não teve nada e ainda veio agravar os impostos sobre os híbridos, depois tivemos ainda o fim da isenção total dos benefícios fiscais sobre os veículos comerciais, não são de lazer… Foi só 10%. Mas são 3.000 euros mais IVA, para as empresas. É uma falta de sensibilidade que continua a grassar nos sucessivos Governos. Penso que não se quer enfrentar os problemas.
Mas vivemos num país em que tanto Governo como a oposição andam a discutir se devemos ter três ou quatro Autoeuropa.
É normal os políticos dizerem que precisamos de três Autoeuropa, mas depois não se cria o ambiente para isso.
Na corrida automóvel nos PRR, os espanhóis ganham por quilómetros…
Completamente.
O PRR não tem esse incentivo. Disse que perdemos um OE. Acha que este próximo OE pode trazer alguma coisa?
Perdemos um OE em época de crise. Era o instrumento ideal, como outros países perceberam. Em Portugal ainda se penalizou um segmento [o dos híbridos]. Perdemos um PRR, que tem verbas genéricas para a indústria, mas não tem verbas concretas para o setor, e agora o próximo OE estamos na expectativa. Já reunimos com o Governo, mas em termos concretos estamos céticos quanto ao que poderá conter.
Mas nessas reuniões há algum sinal de que possam regressar medidas como o incentivo ao abate de veículos em fim de vida?
Nós vemos recetividade. O próprio Governo atola-se em processos burocráticos.
Mas a medida não é difícil de tomar. Já existiu.
Ela está escrita, está montada. Há drafts sobre isso, mas depois o Governo enrola-se em questões administrativas, de verbas, etc… Ninguém nos diz que não.
Falta de dinheiro não é…
Pensamos que não. Mas também não nos dizem que não [haverá esse apoio], porque ao menos podíamos dizer que o Governo está contra. Mas também achamos que esta medida podia ser lançada fora do Orçamento. Nós achamos que os OE, em Portugal, são muito usados para fazer mini reformas fiscais, o que não devia ser.
Mas vê margem para que possa acontecer… É que o OE acaba por ser muito político, com um Governo que não tem maioria.
É. A conjuntura não é nada favorável. Não quer dizer que com Governos com maiorias mais sólidas as coisas sejam mais fáceis. Mas por isso é que achávamos que fora do OE o Governo poderia ter instrumentos, através das verbas que tem e dos programas que lançou, como o Apoiar, para usá-los para integrar este setor. Não era preciso esperar pelo OE, até porque depois é motivo de grande discussão pública.
"Os OE, em Portugal, são muito usados para fazer mini reformas fiscais, o que não devia ser.”
Não o vejo esperançoso…
A esperança é a última coisa a morrer. Não podemos baixar os braços. Mas lembro-me de me questionarem se não sentia frustração de não ter havido, em tantos anos, uma reforma. Eu respondi: “pelo menos evitamos que se façam disparates”. Estamos nessa linha de tentar fazer o damage control, para não se aumentarem mais os impostos.
Não pressiona mais para não ter um resultado pior.
Às tantas, é um bocadinho: “se mexe ainda fica pior”.
O OE 2022 traz o quê, então? Os cheques para os elétricos?
Sim. Traz os cheques para os elétricos. O Governo já disse que não vai ser descontinuado. É positivo que haja, mas achamos que podiam ser mais elevados como os de Espanha e França que os aumentaram durante a pandemia. Já para não falar da Alemanha, com cheques de 9.000 euros. É o que há. Este ano foram descontinuados os cheques para veículos ligeiros de passageiros para as empresas, que eram comprados para frotas de vendedores. Aumentou-se os cheques para os comerciais ligeiros, mas descontinuou-se para estes. Mais uma vez, as empresas perderam um benefício.
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“Há um estigma em apoiar o setor automóvel que não há em Espanha”
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