Algofobia e os novos cargos da felicidade

  • André Fontes
  • 6 Agosto 2021

A definição de felicidade, em si, varia de cultura para cultura e de pessoa para pessoa. Esta subjetividade retira credibilidade aos diversos rankings de felicidade que são feitos pelo mundo a fora.

Mário: Vi no Linkedin a atualização, mas não percebi muito bem… foste promovido a quê?

José: Happiness Manager! Também há quem chame a este cargo Chief of Happiness ou algo semelhante. Basicamente sou responsável por manter toda a gente na empresa feliz!

Mário: Ah, a sério? Parece interessante! Então, mas tens poder para influenciar a decisão sobre recrutamento, progressões de carreira, sistemas de compensações e benefícios à medida de cada um, desenhar e implementar um sistema de gestão de talento, budget para formações que façam as pessoas evoluir? Vais fazer parte da administração?

José: Não… são mais as coisas do dia a dia… garantir que há sessões de pilates, cestos de fruta, que há boa música ambiente no escritório, que temos plantas e uma decoração que motive os colaboradores, organizar o jantar de Natal e pressionar as pessoas a irem, organizar umas palestras para motivar as pessoas…. esse tipo de coisas que deixa as pessoas felizes!

Mário: Hmmm… e quem não está feliz? Como contornas a situação?

José: Sou responsável por quem está satisfeito, mas claro que toda a gente tem problemas e a maioria dos quais são pessoais. Já não interfiro nessa esfera, tenho que respeitar a vida privada de cada um.

Mário: Mas a administração não te cobra isso? Que garantas o bem-estar permanente de todos?

José: Sim, toda a gente no escritório tem que estar feliz!!

Mário: E como avalias isso?

José: Faço questionários, onde pergunto coisas como: “De 1 a 5, quão feliz estás nesta organização?” e depois tiro fotos da equipa com todos a sorrir amarelamente e meto nas redes sociais.

Mário: Mas essa pergunta é tendenciosa. Qualquer que seja a resposta, a interpretação é que o colaborador está sempre feliz: está feliz ao nível 1 ou ao nível 5, mas está feliz! Não dá muita margem para outras interpretações, não achas?

José: Oh pá, tenho que justificar o meu posto de trabalho e fazer o que me mandam. Estou aqui para que toda a gente diga que é feliz e para que a empresa conste no ranking das melhores empresas para se trabalhar!

Chief Happiness Officer é o novo cargo da moda. A posição ocupada por quem está algures no meio entre a gestão de pessoas e o departamento de apoio psicológico e cujo objetivo é evitar birras e amuos no escritório ou garantir que não existe falta de consenso entre os colaboradores. Porque discordar e ter visões diferentes, gera conflito e isso é desconfortável e, por isso, evitável.

Algofobia é o nome que se dá ao fenómeno social que vivemos hoje em dia e que diz respeito ao medo generalizado da dor. Para quê mostrar a dor, ou sequer senti-la, se temos hoje à nossa disposição tantos meios para ocultá-la? Seja com filtros ou avatares, personagens recriadas ou perfis falsos, há tanto para onde canalizar a dor e o desconforto que não justifica enfrentar esses sentimentos negativos. Para quê?

Entre threads, emails, calls e scrolls, o dia passa a voar e não há tempo para lidar com a dor! Já ninguém está habituado a isso: os desgostos amorosos são uma perca de tempo quando comparados aos três minutos que demora a instalar e criar perfil no Tinder; as desavenças entre colegas que começam quando se partilham opiniões diversas são rapidamente resolvidas com uma talk interna, sob um qualquer tema relacionado com os benefícios da cultura corporativa focada no positivismo, logo seguida de um coffee break recheado, com cocktails à mistura. A pressão do consenso aumenta. Em vez de se lutar por melhores argumentos, aplicam-se cuidados paliativos às pessoas com este tipo de ações anestesiantes.

E esta anestesia social, a aversão à dor, provoca reações extremistas de quem, farto de não sentir e de não viver, se sente subitamente motivado a fazê-lo de forma radical. São necessários estímulos cada vez mais fortes para que as pessoas se sintam vivas.

Positivismo – coragem ou medo?

Ser positivo num contexto social e laboral que é hoje altamente instável não é natural ao ser humano. O positivismo é a máscara ideal que usamos para lidar com a imprevisibilidade que o futuro nos reserva, com a rápida evolução da tecnologia (e da vida, no geral!) que nos atira frequentemente para fora da nossa zona de conforto.

O mundo sofre com as alterações climáticas como nunca antes, mas sejamos positivos! Os países irão chegar a um acordo sobre a emissão de gases e tudo se vai resolver pelo melhor.

Um novo vírus assola o mundo criando uma pandemia mortal, mas sejamos positivos! Se todos lavarmos as mãos e utilizarmos máscaras, tudo se vai resolver.

Milhões de refugiados e pessoas a morrer à fome, mas o mundo nunca foi tão evoluído como nos tempos em que vivemos.

Canalizar o medo que temos das consequências dos acontecimentos, sejam eles a uma escala global ou individual, torna-nos apáticos, incapazes de reagir perante os mesmos.

Ser positivo não é sinónimo de coragem, de quem enfrenta o mundo de frente de cabeça erguida esperando que os astros se alinhem para que tudo corra bem. Esperando que o miúdo pare de fazer birra no supermercado só porque somos capazes de manter um sorriso na cara o tempo todo, continuando positivamente à espera que ele se cale.

Pelo contrário, este tipo de positivismo que nos tem sido incutido é sinónimo de cobardia. De falta de coragem para enfrentar as coisas como elas são e lidar com as consequências das mesmas. O que isto provoca em nós, não é mais que o acumular de uma tensão interior que nos torna hipersensíveis à mais pequena discórdia. Somos vulcões por dentro, prestes a explodir.

Ditadura da Felicidade

“Sabia que a resiliência, que advém da capacidade de nos mantermos positivos independentemente de tudo o que de mau nos rodeia, é a chave para alcançar uma melhor performance? Tal como os atletas de alta competição, o pico da felicidade acontece quando alcançamos o nosso nível máximo de desempenho – pessoas felizes produzem mais e melhor” (por isso aí de ti que não sejas feliz).

Não se impõe a felicidade, tal como não se muda a vocação ou as preferências de alguém. E, por isso, investir em pessoas como os Chiefs of Happiness é tão útil como comprar uma mesa de matraquilhos para o escritório: alguns colaboradores podem gostar e ficar verdadeiramente mais felizes com esta aquisição. Outros irão preferir uma mesa de pingue pongue.

Assim começa a palestra de um ditador da felicidade. Daquele que ignora que dor e felicidade são duas faces da mesma moeda e que se atenuam uma à outra quando são encaradas assim mesmo. Os mesmos que defendem que se deve viver a vida de forma intensa e positiva, esquecem-se que tudo o que é intenso é também, naturalmente, doloroso.

Como afirma o autor Arthur Brooks, o conceito de bem-estar é, de todos, o considerado menos universal. A definição de felicidade, em si, varia de cultura para cultura e de pessoa para pessoa. Esta subjetividade retira credibilidade aos diversos rankings de felicidade que são feitos pelo mundo a fora.

Se fossem credíveis então seguíamos todos a receita dos finlandeses, frequentemente considerados o povo mais feliz do mundo, e íamos passear na floresta e nadar em lagos gelados para sermos felizes.

As diferenças culturais e as definições de felicidade que cada nação tem tornam impossível generalizar tal conceito a nível global.

Até a origem da palavra felicidade tem diferentes conotações consoante as línguas em que é pronunciada. Em alemão, por exemplo, a palavra felicidade está ligada à sorte e a um destino fortuito. O conceito de happiness tem origem no inglês hap que significa “sorte”. Já nas línguas que vêm do latim, o termo deriva de felicitas, o que traduzia, na Roma antiga, não só o conceito de sorte, mas também o de crescimento, fertilidade e prosperidade.

Então, o que nos faz feliz?

Culturalmente falando, podem ser, ainda de acordo com o estudo e teoria do autor Arthur Brooks, identificadas quatro diferentes fontes de felicidade:

Relação com as pessoas que amamos
Nesta perspetiva, a felicidade está dependente da relação que temos com os nossos amigos e familiares. Nos EUA, por exemplo, a felicidade está diretamente relacionada com esta fonte;

Estado de Consciência
Modelo de felicidade associado a pessoas altamente espirituais, filosóficas ou religiosas, especialmente importante para os que têm o papel de unir a comunidade. Para os que vivem no Sul da Índia, por exemplo, atingir este Estado é o que traz verdadeira felicidade.

Hobbies e Lazer
Ter oportunidade de realizar atividades que nos preenchem, geralmente com quem mais gostamos. As pessoas nórdicas, por exemplo, dão muito valor a este modelo de felicidade.

Sensação de bem-estar
A felicidade advém do simples facto de nos sentirmos bem, seja a beber um copo de vinho ou a ler um livro. Quando damos prioridade a experiências que nos fazem sentir bem, quer sejam partilhadas com outros ou não. Os povos latinos dão muito valor a este tipo de felicidade.

Um estudo de longo prazo de Harvard conseguiu concluir que o nosso nível de felicidade está diretamente relacionado com a qualidade das nossas relações e que, também elas, têm uma influência real na nossa saúde.

Este estudo de foro essencialmente psicológico conclui ainda que as relações próximas são precisamente o que nos mantém feliz ao longo da vida, mais do que o dinheiro ou o reconhecimento social. Os laços sociais fortes protegem as pessoas não só do impacto dos desgostos da vida, mas também ajudam a atrasar o declínio físico e mental inerente ao envelhecimento.

Um dos investigadores deste estudo, Waldinger, partilhou numa “Ted Talk” um facto interessante: as pessoas que estavam mais satisfeitas com as suas relações aos 50 anos, foram precisamente as consideradas mais saudáveis quando chegaram aos 80 anos. Afirmou ainda, também em tom conclusivo, que a solidão pode mesmo matar e que é tão fatal como fumar ou sofrer com problemas de alcoolismo.

Se, por um lado, não há uma receita universal para alcançar a felicidade e, tendo presente que este é um conceito tão subjetivo e cultural, por outro é amplamente reconhecido que o foco na qualidade das nossas relações sociais é definitivamente o ingrediente principal para chegar lá. Independentemente do país de origem, todos temos família e somos, essencialmente, seres sociais pelo que não é difícil de perceber a importância de investir nas relações de cada um com o(s) seu(s) par(es).

O que não resulta são relações impostas, quer sejam pessoais ou profissionais. Não se impõe a felicidade, tal como não se muda a vocação ou as preferências de alguém. E, por isso, investir em pessoas como os Chiefs of Happiness é tão útil como comprar uma mesa de matraquilhos para o escritório: alguns colaboradores podem gostar e ficar verdadeiramente mais felizes com esta aquisição. Outros irão preferir uma mesa de pingue pongue.

  • André Fontes
  • Consultor e Professor na Porto Business School e IPAM para as áreas de gestão de talento e liderança

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